O mito do amor romântico e a violência contra mulher

Jo Melo
jomelo
4 min readAug 10, 2020

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Conhecer pessoas legais, se relacionar, namorar e até casar, parece que essas são as maiores metas e sonhos de algumas pessoas. Se bobear, se achassem o gênio da lâmpada e um desejo fosse concedido, deveria ser possível que alguns desejos seriam relacionados a isso.

escrevi aqui outras vezes sobre como temos muitas opções de escolha atualmente e como isso acaba dificultando nossa interação em profundidade. Essa palavra: p r o f u n d i d a d e parece tão esquecida nesses tempos que vivemos, mas isso tem um nome, paradoxo da escolha (falo sobre isso na frase linkada neste parágrafo).

O fato de querermos tanto alguém não é ruim, aliás, é saudável… desde o começo o ser humano vive em grupos, aliás, foram esses mesmos grupos que criaram as civilizações que temos hoje, mas o que mais me deixa intrigada nisso tudo é a ânsia das pessoas por encontrar alguém, é como se toda a sua felicidade dependesse disso. Carência? Falta de amor-próprio? Acho que não, mas quando isso passa a ser a maior meta da sua vida, sem pensar em outras possibilidades, pode ser que sim!

A necessidade de estar com alguém a todo momento é como se fosse um alimento fundamental para o nosso corpo, no caso, o cérebro. Colocamos na nossa cabeça que só seremos felizes se encontrarmos o que muitos chamam de “metade da laranja”.

“A solidão produz insegurança — mas o relacionamento não parece fazer outra coisa. Numa relação, você pode sentir-se tão inseguro quanto sem ela, ou até pior. Só mudam os nomes que você dá à ansiedade.” Bauman.

O ‘mito do amor romântico’ é isso, criamos na nossa cabeça a ilusão que o amor (não no sentido universal, mas romântico) é a solução para todos os nossos problemas. O individuo escolhido para passarmos algum tempo de nossas vidas passa a ser visto como um remédio, como uma necessidade tanto quanto beber água. E há muito perigo nisso.

Quantas vezes você não viu noticiários falando sobre feminicídio e as principais causas eram “término de relacionamento”, “ciúmes” e outras coisas mais? Obviamente estamos inseridos num sistema patriarcal onde o homem é colocado como superior e mantenedor, mas se formos parar pra pensar em suas ideias de amor, veremos claramente que os mesmos colocam suas vítimas como propriedade, culpabilizando-as, muitas vezes, por suas ações violentas.

Temos músicas sobre isso:

Não sei de onde vim, não sei pra onde vou
Perdi a memória, não sei quem eu sou
Sou preso num quarto com grades de aço
Estão dizendo que matei por amor. Gilberto & Gilmar — Assino Com X.

A idealização do amor nos é ensinada desde pequenos. Crescemos lendo conto de fadas que sugiram de histórias como Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, nos fazem desde pequenas, acreditar no príncipe encantado que com seu cavalo branco irá salvar a princesa e ambos viverão felizes para sempre e acabamos perpetuando esse desejo de amor eterno.

O casamento, por exemplo, esse evento que muitos sonham durante toda sua vida foi criado como instituição econômica, mulheres eram prometidas a meninos e homens mais velhos como promessa de aliança entre as famílias, só depois esse conceito mudou, a filha dada em promessa não era mais responsabilidade da família, mas sim do marido (o que chamamos de patriarcado), depois disso, nós sabemos todas as implicações dessa história.

Com o surgimento do romantismo, o amor passou a ser visto como um direito do ser humano. Aquele amor que explode, que corações saem da sua cabeça, avassalador, intenso. O conceito de casamento, que era visto apenas para fins comerciais, começou a caminhar para a “mudança” apenas em 1940 com o surgimento da televisão e do cinema.

A partir daí, já sabemos como funciona o andar da carruagem, histórias de amor onde o sofrimento deveria ser o principal tempero para dar certo, onde a morte poderia ser a maior e melhor solução para um coração partido e que, sem sofrimento, não há amor de verdade (lembre-se das histórias citadas acima e dos contos de fada).

E parece que ainda hoje esse pensamento ainda caminha. Como dito acima, músicas onde aquele amor avassalador é sinônimo de dor e sofrimento, além de muita violência, se tornou comum.

Atualmente, a cada 2 segundos, uma mulher é vítima de violência física ou verbal e a maioria desses acontecimentos, além de todo um enraizamento machista e patriarcal, surge de ciúmes e posse. Homens que se veem no direito de colocar suas mulheres em caixinhas e ditar para elas como devem se portar.

‘Matei por amor’, diz homem preso por esfaquear ex-mulher em Jaru, RO

Bom, quem nunca ouviu casos de mulheres que nunca trabalharam fora porque o marido não deixava? De mulheres afastadas de suas famílias com a ideia de “amor”, onde ela pertence ao homem e nada mais? Ou de mulheres que apanharam ou sofreram violência psicológica por ter possíveis amigos que seriam possíveis pivôs de separação? Talvez até você tenha passado por isso.

Por mais que a ideia romântica do amor seja “linda”, onde a gente espera uma pessoa que nos compreenda, nos ame do jeito que somos e todas aquelas idealizações que filmes, contos de fada e novelas nos fez pensar, existe a outro lado da moeda, onde a idealização desse amor, com toda a raiz de problemas que envolve ser mulher na nossa sociedade, levanta números alarmantes de violência contra nós.

E, a partir disso, surge a pergunta: estamos realmente seguras para amar?

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Jo Melo
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Mãe, autista/tdah com hiperfoco em escrita e premiada na Suíça. Escrevo sobre autismo, mulheres, maternidade. @jomelo.escritora. Aqui tem textos desde 2016.