Inconstitucionalissimamente!

Soletre-me, se for capaz!

Tassio Denker
Justiça
Published in
6 min readJun 12, 2018

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Há algum tempo me pediram para falar ou fazer um vídeo sobre “Controle de Constitucionalidade” um dos bichos de 7 cabeças do Direito (acho que são 7 bichos de 7 cabeças, sete vezes sete, cabala pura!), mas como sou meio radical — no sentido de gostar da raiz dos temas — eu preferi começar falando primeiramente da própria Constituição. Mas aí eu vi que ainda não estava pronto para falar de controle de constitucionalidade, porque ainda não tinha falado de… inconstitucionalidade, oras bolas.

E hoje chegou a sua vez. Apenas reprisando algo que é bem lugar comum, nós todos sabemos que a Constituição Federal, dentro de um ordenamento jurídico, encontra-se no topo da hierarquia normativa. É a pica das galáxias legais. É ela quem dá a forma do nosso país, suas diretrizes mais básicas e orienta como todas as outras demais leis devem ser construídas.

Mas como já vimos a respeito nos textos Civil law & common law, bem como no É legal, nosso sistema jurídico é mais do que saturado. Temos mais de 5 milhões de normas editadas no Brasil somente desde a Constituição de 1988 e, como é de se esperar, muitas dessas normas não se adequam ou não são compatíveis com o que determina a Constituição Federal.

E toda e qualquer norma, ação ou omissão do Estado — englobando aqui a União, os Estados e os Municípios, direta ou indiretamente — que contrarie o texto constitucional vai para o tártaro do Direito, por meio do que chamamos carinhosamente de inconstitucionalidade.

A inconstitucionalidade é um assunto tão importante para o Direito que nós, inclusive, criamos classificações para vislumbrarmos quais as naturezas dessas contradições legais (ou melhor, ilegais!).

Poderíamos começar dizendo que a Constituição Federal, além de dar as diretrizes substanciais das demais normas, ela também determina como as leis devem ser feitas. Na nossa Lei Maior, os artigos 59 ao 69 tratam exatamente da forma, do procedimento que deve ser adotado para sua elaboração.

Por exemplo, uma emenda constitucional precisa ser aprovada em dois turnos pela Câmara e pelo Senado, por pelo menos três quintos dos seus membros. Ah, e tem um detalhe: não pode ser proposta durante a vigência de uma intervenção federal, por exemplo (alô, alô, Congresso, eu sei que tem PEC tramitando aí em plena intervenção, hein!)

Uma lei ordinária, por outro lado, precisa apenas de uma maioria simples (metade mais um) para ser aprovada. E claro, existem muitos outros detalhes na Constituição, a respeito do teor, prazos e iniciativas, que também precisam ser obedecidas.

Quando uma lei não obedece a qualquer um desses trâmites legais, dessa burocracia legal, independente do seu conteúdo, nós temos uma inconstitucionalidade formal, pois a forma prescrita pela Constituição não foi obedecida.

Quem já leu algumas das minhas colunas aqui já deve estar esperto: sempre que tem algum conceito “formal” no direito, também deverá esperar pela outra face da sua moeda, o seu primo “material”. E com a inconstitucionalidade não é diferente.

A inconstitucionalidade material é aquela em que constatamos que, embora a lei tenha seguido todo o seu trâmite corretamente, seu teor, seu conteúdo, sua matéria é contrária ao que dispõe a Constituição Federal. Por exemplo, o STF declarou que uma lei do Estado de Alagoas, que tratava do reconhecimento de diplomas internacionais, é inconstitucional, exatamente porque contraria a Constituição Federal no que tange a competência legislativa de bases e diretrizes da educação — tal matéria é tema privativa do Congresso Nacional e não pode ser legislada pelos Estados Federados.

Além de material vs. formal, a inconstitucionalidade pode ser, também, por ação ou por omissão do Poder Público. Uma lei editada de forma equivocada, por exemplo, além de inconstitucionalmente formal, também pode ser classificada como uma inconstitucionalidade por ação — foi preciso um ato, uma atividade executada de forma errada para dar luz à ilegalidade. Tecnicamente, poderíamos dizer que as inconstitucionalidades por ação se dividem em formais e materiais, que vimos há pouco.

Por outro lado, o Poder Público pode se calar ou se esquivar de fazer algo que a Constituição tenha determinado. Para ilustrar o caso, podemos citar que a Constituição Federal determinou, por exemplo, que o Congresso deveria editar leis fixando prazos e condições para compensar os Estados e o Distrito Federal pela isenção de ICMS sobre exportações de produtos primários.

No entanto, o Congresso não havia efetuado nenhuma medida neste sentido, e o Estado do Pará entrou com uma ação de inconstitucionalidade por omissão, sagrando-se vencedora. Como resultado, o STF determinou que, num prazo de 12 meses, o Congresso deveria dar cumprimento ao que determina a Constituição Federal.

Além de formal/material, por omissão/ação, as leis podem ser declaradas parcialmente ou totalmente inconstitucionais. Acho que nem demanda muita explicação: uma lei pode ser expulsa por completo do ordenamento jurídico, ou então apenas alguns artigos dela é que podem ser enviados ao limbo.

É o caso, por exemplo, da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que previa diferenças entre o cônjuge e o companheiro, em questões referentes à herança. O código civil, como um todo, permanece válido, excetuando-se apenas o artigo declarado inconstitucional por ferir o entendimento constitucional de que existe família, mesmo quando não há casamento.

Basicamente, essas são as três formas mais comuns de nos dirigirmos à uma inconstitucionalidade. Mas não são as únicas. Existem outras pequenas formas de inconstitucionalidades que podemos destacar, como por exemplo a inconstitucionalidade por arrastamento ou por reverberação. Parece complicado, mas não é.

Imaginemos que uma Lei foi editada e nessa lei ficou previsto que alguns detalhes seriam concluídos ou colocados em prática por meio de um decreto regulamentar do presidente. E posteriormente esse decreto foi feito pelo nosso nobre vampirão. Só que, mais tarde, alguém entrou com uma ação para declarar inconstitucional aquela lei, sem mencionar, no entanto, o maldito decreto do presidente.

Mas nem precisava; aquela lei, depois de declarada inconstitucional, acaba arrastando o decreto consigo, mesmo que não tenha sido feito tal pedido na ação, para o cemitério das leis. Ou seja, a inconstitucionalidade da lei reverbera sobre o decreto, tornando-o também inconstitucional.

Outra inconstitucionalidade que podemos citar, cuja base teórica nasceu na Alemanha, é a inconstitucionalidade progressiva (appellentscheidung). Nossa doutrina já a chamou de “norma constitucional em trânsito para a inconstitucionalidade” ou de “norma ainda constitucional”.

É um caso excepcional de uma norma que, embora seja vista e entendida como inconstitucional, se aplicarmos esse entendimento o prejuízo seria ainda maior do que mantivermos a norma valendo, ao menos até uma nova norma, devidamente constitucional, seja produzida.

É o caso, por exemplo, da atuação do Ministério Público em causas que sejam de iniciativa da Defensoria Pública mas que, em determinada Comarca, ainda não exista Defensoria Pública. Embora a atuação do Ministério Público possa ser vista como uma atuação contrária ao que determina a Constituição, a sua não atuação é ainda mais grave, de tal forma que a inconstitucionalidade é notada, mas dependerá da efetivação de outras circunstâncias que a autorizem — no caso, a implementação da Defensoria.

Outro exemplo é o artigo 192 da CLT, que prevê que a insalubridade deve ser paga sobre o salário-mínimo, contrariando a Constituição, que veda a vinculação do salário mínimo para qualquer fim. No entanto, extirpar tal benefício traria mais prejuízo a sociedade, razão pela qual o STF mantém válido tal dispositivo, até que uma nova lei corrija tal distorção.

Por fim, cabe também falar que muitas das nossas leis em vigor, como o Código Penal, por exemplo, foram criados muito tempo antes da nossa Constituição. E ai, como fica? Nestes casos, não cabe ao STF fazer julgamento da constitucionalidade de leis passadas com constituições passadas. O que cabe é analisar se estas leis são recepcionadas ou não pela Constituição de 1988.

Um exemplo que podemos citar é a Lei da Imprensa (Lei 5.250/67) que foi declarada inconstitucional pelo STF e não pode ser recepcionada pois feriria a liberdade de expressão, prevista na nossa atual Constituição. Em outras palavras, a constitucionalidade dela, à época da sua proposição, não é analisada; é apenas verificada se o seu teor é compatível — ou não — com a nossa atual Constituição.

Acho que, resumidamente, conseguimos entender o que vem a ser uma inconstitucionalidade — mesmo que não consigamos soletrar ou falar corretamente esse palavrão. O próximo passo, agora é falarmos sobre controle de constitucionalidade, pois parte da base necessária já foi construída.

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Tassio Denker
Justiça

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