Descrição da imagem: Cinco bonequinhos alinhados. Do lado esquerdo um boneco azul claro simbolizando um homem. Ao lado dele, um azul escuro como se estivesse “começando a ter um vestido”. No meio, um boneco roxo escuro que estaria entre o boneco masculino e o feminino. Ao lado dele um boneco roxo claro com um vestido maior. Por último, um boneco rosa de vestido simbolizando uma mulher.

Porque pessoas trans não reforçam estereótipos de gênero — e outras mentiras mais que espalham por ai

Koda Gabriel
kodagabriel
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5 min readFeb 21, 2019

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Se você tem uma rede minimamente diversificada no twitter — e em outras redes ou no seu dia a dia — você já deve ter visto uma pessoa trans criticando a ideia de que a existência de pessoas trans reforça estereótipos de gênero. Talvez tenha visto o contrário: alguém defendendo essa ideia. Fato é que esse é um tema constantemente levantado por uma dita vertente feminista — que no fim parece mais uma vertente de gente branca com vagina e dinheiro no bolso — e usado para atacar pessoas trans em geral. Entretanto, essa fala é no mínimo mentirosa.

Devemos começar sabendo o que é gênero e também é importante saber o que são estereótipos e papéis de gênero. Partindo dessas definições, podemos chegar no cerne da questão: o que gênero tem a ver com expressão de gênero e papéis de gênero? A resposta simples é: nada. Mas, claro, a vida não é simples. Por vivermos em uma sociedade historicamente sexista (isto é, onde sexo e gênero importam e são fatores de opressão), cissexista (isto é, com a crença de que toda pessoa é cis — e a surpresa e ofensa são guardados para aqueles que não o são) e de heterossexualidade compulsória (isto é, acredita-se que toda pessoa é hétero — e é guardado o preconceito para quem não o é), é necessário contextualizar e trazer nossa discussão pra realidade.

Portanto, refaço a pergunta: o que gênero tem a ver com expressão de gênero e papéis de gênero na nossa sociedade? Para a população em geral, mesmo que eles desconheçam as terminologias, as três coisas tem tudo a ver — a ponto de praticamente serem uma coisa só. Para a população ser mulher é ter uma vagina, se expressar de forma dita feminina e se comportar de uma forma feminina. Ser homem é ter um pênis, se expressar de forma dita masculina e se comportar de uma forma masculina. Isso, é claro, é uma convenção social antiquada, mas estou me atendo à realidade quando falo isso. É o que a sociedade acredita, em geral.

Por isso, quando uma pessoa se entende transgênero — ou seja, como de um gênero diferente do qual foi designado ao nascer — espera-se que ela fuja de tudo que é dito do seu gênero designado e se aproxime de tudo do gênero que realmente é. Espera-se que uma mulher trans seja extremamente feminina e um homem trans extremamente masculino, quase que como hipérboles. Utilizam, muitas vezes, o quanto nos pareceremos com pessoas cisgênero para definir o quanto de respeito merecemos. A sociedade nos mede na régua cis, como se tudo girasse em torno do quão parecidos estamos com uma pessoa “realmente” de tal gênero.

Isso tudo é a teoria e a prática do dia a dia na nossa sociedade. Mas não tem que ser assim. Gênero não tem de vir embutido de uma expressão de gênero padrão e papéis de gêneros nem deveriam existir. As expectativas impostas em cima de pessoas e seus gêneros fere não só pessoas trans, mas pessoas cis que simplesmente não são conforme a sociedade espera. Mulheres não afeminadas e homens afeminados demais — todos são criticados usando o machismo, sexismo e a cisgêneridade como topo da cadeia alimentar. Mas isso não é a cereja do bolo, porque é aqui, nesse limbo e no meio do alvo, apanhando de todos lados e com todas as armas na testa que estão as pessoas trans.

Quando chamo esse local — ou não local, como diria bell hooks — de limbo, quero dizer que ele é contraditório e infeliz. Pessoas trans estão no limiar da sociedade, isso é fato. A nós são destinados subempregos, de nós são arrancados anos de vida e sanidade mental todo segundo de todo o dia. E a nós é designado o local de nunca ser suficiente pra ninguém. Por que?

De um lado temos uma sociedade que compulsoriamente nos obriga a decidir entre enfrentar todos os preconceitos (que não deixarão de ser destinados a nós), mas nos esforçar ao máximo para caber na caixa cisgênero mesmo assim, ou desistir de ser quem realmente somos e voltar a viver uma cisnormatividade falsa pra viver socialmente em paz — mas não sem piadinhas ocasionais sobre quem um dia fomos.

Do outro lado temos uma onda crescente de pessoas que se recusa a enxergar pessoas transgênero como pessoas dignas de respeito — algo bem similar ao que a o sociedade em geral pensa, mas com um motivador diferente — e simplesmente as divide em vários grupos, utilizando um preconceito diferente pra justificar cada coisa.

Às mulheres trans que seguem padrões da dita feminilidade resta o escárnio por supostamente reforçarem padrões de estereótipos femininos — ignorando totalmente que uma classe tão marginalizada socialmente não tem poder sequer de pedir direitos, quanto mais de reforçar estereótipos.

Às mulheres trans que não seguem padrão algum, ou a pessoas não-binárias com pênis é destinado o simplesmente ódio e desrespeito. Essas tem sua identidade completamente deslegitimada baseando-se totalmente em… estereótipos de gênero. Novamente, parece bem com o que a sociedade em geral prega, embora o catalisador seja diferente.

À pessoas com vagina (homens trans, pessoas não-binárias, etc) é destinado um suposto amparo que mascara mais preconceito — somente são dignos de carinho as pessoas por compartilharem o genital, e, portanto, serem supostamente “fêmeas” que só estão tentando fugir do machismo. Pessoas intersexo com genitais vários, como ficam? Não ficam, porque o recorte quase sempre passa longe da vida dessas pessoas.

No fim, resta o ódio, o preconceito, o estigma. Pessoas trans diariamente lutam contra muitas regras sociais simplesmente para poderem existir com seus corpos vários, expressões várias e gêneros vários. Cada ato, decisão ou vivência é questionado com os mais diversos embasamentos — metade é achismo, a outra metade é uma tentativa de enfiar uma teoria goela abaixo de gente que tá vivendo acima de qualquer livro, acima de qualquer literatura. De gente que tá sofrendo independente do que tá escrito no seu livro de dez, quinte, cem anos atrás. De gente que tá sofrendo independente do que você pensa ou acha.

Dizer que pessoas transgênero reforçam estereótipos de gênero é como dizer que uma mulher (cis) que escolhe continuar performando a dita feminilidade tem culpa das opressões que ela e outras mulheres sofrem. Não faz sentido, certo? A pessoas cis, dentro de ambientes mais diversificados, é dado o direito de escolha entre seguir ou não a normatividade e os papéis de gênero impostos.

A pessoa trans temos o não-lugar a oferecer. É isso ou nada — e nossa expectativa de vida de trinta e cinco anos tá falando direitinho pra onde estamos sendo obrigados a ir.

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Koda Gabriel
kodagabriel

25 anos, bissexual e não binário. escrevo romances, ficção especulativa e putarias em geral https://kodagabriel.com.br