Kodawari: a essência japonesa da perfeição

Anna Ligia Pozzetti
Komorebi.trd
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3 min readOct 1, 2019

No idioma japonês, “Kodawari” é mais uma daquelas palavras incríveis que não têm uma tradução exata, sendo uma expressão ou até mesmo uma ideia que é definida em uma só palavra. Em um dicionário português-japonês bastante utilizado, a definição é “preocupar-se demasiadamente com picuinhas”. E até mesmo em alguns dicionários japoneses, a palavra tem uma conotação negativa, de dar atenção excessiva a coisas pequenas. No entanto, achamos que essas explicações não refletem o seu real significado, já que essa palavra carrega numerosos aspectos culturais evidentes na cultura japonesa.

Para mim, a explicação que mais representa o espírito do Kodawari é “a busca incansável e inflexível pela perfeição”. Nessa busca, não há espaço para atalhos ou justificativas. O foco está na máxima qualidade que um serviço, produto ou experiência pode ter. E essa tradução faz sentido quando se vai ao Japão. Apesar de haver exceções (e outros problemas), os turistas costumam elogiar muito a qualidade dos serviços, a limpeza impecável e a atenção a detalhes que nem poderíamos imaginar.

Mas, aqui no Brasil, também temos a oportunidade de apreciarmos essa dedicação em busca da perfeição em vários lugares. No caso do consultor de café Márcio Shinagawa, a sua relação com o café é de muito Kodawari. A temperatura e a umidade do ambiente, que varia de acordo com as estações do ano (ou de dias, no caso de São Paulo), demanda uma atenção especial na regulagem dos moedores e máquinas de café dos quais ele cuida. Tudo para que o cliente não tenha uma experiência aquém da que poderia ter, caso seja a sua primeira xícara, ou para que não tenha um sabor diferente daquele que tomou há alguns dias e fez questão de voltar para mais uma xícara. E esse esmero na preparação de uma xícara de café, a qual, para muitos, é uma simples xícara de café, evidencia um compromisso com a qualidade e um respeito pelo cliente que todos nós deveríamos ter em tudo o que fazemos.

Trata-se de um padrão quase que pessoal, definido por você mesmo e pelo qual você sente orgulho de estar nesse caminho sem fim em busca da perfeição. No livro Awakening your Ikigai: How the japanese wake up to joy and purpose every day, escrito por Ken Mogi, o autor indica que um aspecto crucial do Kodawari é a superação das expectativas razoáveis estabelecidas pelas forças de mercado. Se você quiser ter sucesso, para início de conversa, você precisa atingir uma qualidade aceitável. Mas a partir do momento em que se atinge esse nível, superar essa marca é cada vez mais difícil e demanda um esforço muito maior para algo que parece mínimo. Se isso vale a pena? Bom, isso depende se você é uma pessoa que tem Kodawari ou não.

Pois, na verdade, Kodawari não é para todos. Os atalhos e escolhas confortáveis devem ser evitados a todo custo e o estudo, bem como a dedicação constante estão o tempo todo em cena. Por exemplo, se for o caso, os grãos de café que, para muitos, estão em perfeito estado serão descartados por terem perdido suas propriedades originais. Da mesma forma, um serviço ou um produto que já pode ser considerado bom ainda tem margem para ser lapidado até atingir o nível de excelência pelo qual o seu criador, com muito Kodawari, se esforçou tanto para alcançar.

Para quem não entende esse conceito, uma pessoa com Kodawari pode ser vista como um chato perfeccionista ou um ridículo obstinado por picuinhas e detalhes inexpressivos. Mas em uma cultura que identifica a beleza na efemeridade e transitoriedade das coisas e que dá valor aos encontros únicos que podem nunca mais se repetir (expressos no provérbio ichi go ichi e;一期一会, que literalmente significa “um momento, um encontro”), as experiências, mesmo que sutis e que demorem o tempo de tomar um café, precisam ser as melhores possíveis. Afinal, quem não prefere tomar um café, ler um livro, assistir a uma aula, comer um ramen, utilizar uma cerâmica ou até receber um material traduzido, tudo isso feito e produzido por uma pessoa que tem tanto zelo e respeito por você?

Agradecimento especial aos queridos Cristina Sagara e Márcio Shinagawa, pela valiosa oportunidade de compartilharmos ideias e uma boa xícara de café!

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Anna Ligia Pozzetti
Komorebi.trd

Intérprete e Tradutora de Japonês ❤ E também ecomista e mestre em história econômica!