“O POEMA APARECE COMO UM ESPAÇO QUE O PATRIARCADO JAMAIS ALCANÇARÁ”

Entrevista com leticia feres

kza1
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7 min readMar 17, 2018

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leticia feres

Um dos lançamentos do catálogo de estreia da kza1 é [há o desastre que não nos olha], o novo livro da leticia feres. leticia é uma poeta mineira nascida em 1979, vive no Rio de Janeiro. Em 2013, autopublicou os ebooks de poesia Da estranheza das coisas, Meus piores poemas — vol. I e o infantil A cortina, o tapete, a menina; em 2016, saiu, pela coleção Leve um Livro, o Como vai ser este verão, querida? Participou do grupo poesia hoje e do coletivo não macule minha faca. Sem aliviar, leticia traz uma poesia crua, em combate. Esse novo trabalho provoca para além da certeza sobre o texto poético, sua forma, seu contexto. Alimentada do mundano, intui o verso como uma construção da beleza burguesa: nefasta, inescrupulosa, patriarcal; abandonando-o: “é com você, bonner.” Na entrevista a seguir, leticia fala um pouco sobre algumas das peças que se colidem em [há o desastre que não nos olha]. Ela escreve no Medium, onde lemos um aforismo maravilhoso logo abaixo de seu nome: “Escrever é tornar-se, mas não é de modo algum tornar-se escritor. É tornar-se outra coisa.” É a partir daí que começamos a conversar. Ao fim, publicamos o poema “[Amiga,]”.

A entrevista foi feita dias antes do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, a quem prestamos homenagem, desejando alento aos familiares e amigos. Força para transformar o sentimento de indignidade em luta por justiça.

thadeu c santos: Leticia, acompanho seu trabalho há pelo menos cinco anos e, embora as faces do poder sempre apareçam desmoronando aqui e ali nos seus poemas, não me vem à memória um conjunto de textos seus que travem tão acirradamente uma batalha entre poesia e a opressão. É claro pra você essa “mão mais pesada” ou se trata de uma impressão inocente minha sobre sua produção anterior?

leticia feres: Você reparou bem. Sempre gostei do poema do Boris Vian em que ele diz: “Se os poetas fossem menos bestas/ E se fossem menos preguiçosos/ Fariam todo mundo feliz/ Para poderem tratar em paz/ De seus sofrimentos literários”. Sempre tentei lidar com a estranheza das coisas do mundo de uma maneira ácida e jocosa, ou até mesmo buscando o nonsense, mais ingênuo, que cria outras ordens para o sentido, mas sem um foco claro. Não sei exatamente a partir de que momento as questões das chamadas minorias passaram a fazer parte do meu imaginário poético. Talvez tenha sido o Golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, que tem tido grande sucesso em promover a desigualdade social e a violência dirigida a grupos minoritários. Ou a proximidade com os 40 anos tenha feito com que tenha ficado urgente responder a pergunta “o que é essencial?”. Pode ser que o gatilho tenha sido algo mais trivial, como sentir medo de ser atacada por andar de mãos dadas com minha esposa num sábado à tarde, ver que minha mãe e minha irmã não recebem o devido tratamento na rede pública de saúde, cruzar o Rio de Janeiro de ônibus todos os dias e ir percebendo que paisagem arruinada aumenta à medida que me distancio da Zona Sul. Ou talvez, quem sabe?, um pouco disso tudo.

T: Sempre destaquei o humor ácido como uma de suas vertentes mais interessantes dentro do poema. O deboche visando a desestabilização do estabilizado parece ganhar uma conotação cada vez mais política e intencional agora, fugindo um pouco do que nos acostumamos a chamar de inspiração. Como isso funciona na sua cabeça quando você produz poemas?

L: O país está ruindo, estamos vivendo uma intervenção militar inconstitucional no Rio de Janeiro, a segunda maior cidade do país, que funciona hoje como laboratório social para experimentos perversos do Estado. Então a existência do poema, esse espaço de resistência, tem que ser uma resposta a esse contexto. Tenho pensado muito a quem — e para que — serve o que escrevo. Não deixo de acreditar que a escrita seja por si só mobilizadora, revolucionária, qual sejam o tema e a forma. Mas me parece que em tempos como este é preciso também tomar uma posição clara, contra a opressão, contra o patriarcado. Principalmente quando, como eu, circula-se em um ambiente elitizado.

T: Editando seu novo livro [há o desastre que não nos olha], me chamou a atenção como sua crítica ao patriarcado é “transferida” a partir dos problemas da sociedade brasileira para os problemas do mercado editorial. Você é editora e convive cotidianamente com essa estrutura abissalmente grotesca. A poesia se torna um grito diante do absurdo? Ou é um sussurro em meio ao desespero? Como você pesa essas relações entre o poema e o corpus social que provém da literatura industrial?

L: Num chiste, eu diria que o patriarcado, assim como Minas Gerais, está em todo lugar. E ele não deixaria de se fazer presente também no mercado editorial, que, por sua vez, é um dos principais espaços de legitimação de poder simbólico. Nesse espaço, como é frequente, pessoas negras são a minoria; pessoas indígenas, trans e aquelas com deficiência física inexistem. E curiosamente, nesse espaço, mulheres são a maioria, mas não em cargos executivos. Mas pouca gente parece querer tratar disso e, por isso, as coisas permanecem como estão.

O mercado editorial parece aberto a aceitar a existência de outras identidades além da branca e heterossexual. Não por bondade, claro. E, como é regido pela lógica do patriarcado, ainda mantém barreiras muito fortes — a serem quebradas. Por exemplo, parece existir uma maneira certa de uma mulher, uma mulher negra ou uma mulher lésbica escrever. E não há maneira possível de escrever como mulher indígena, trans ou com deficiência física.

Ao mesmo tempo, fala-se em bibliodiversidade, que apenas existe a duras penas. Não estamos em uma sociedade que percebe valor em diferentes conteúdos e formas do livro. O patriarcado não deixa espaço para o que é diferente, para o que não pode ser controlado. Já aprendemos essa lição.

E isso torna quase inviável que se viva exclusivamente de escrever e produzir livros. Sei que é um problema enfrentado também em outros países, não é algo exclusivo do Brasil. Mas nem por isso posso me dar ao luxo de não tratar desse problema.

Então o poema aparece como um espaço que o patriarcado jamais alcançará. Não que ele não possa ser publicado por uma grande editora, por exemplo. Mas a ideia é outra: o poema é um ambiente regido pela lógica prevista pelo poeta. O poeta pode querer seguir a lógica do mercado, do patriarcado, e essa também deve ser uma escolha respeitável.

O “espaço que o poeta habita” — como Wlademir Dias-Pino definiu de maneira tão bonita — é para mim um lugar de possibilidades, de experimentação. E esse é um espaço necessariamente protegido, fora do controle do patriarcado. Mas eu preciso me lembrar disso a cada vez que escrevo, porque a liberdade é uma grande dificuldade e uma grande busca, que tenho como necessidade pessoal. Então, nesse sentido, não vejo o poema como um grito diante do absurdo, mas uma maneira possível de processar a realidade do mundo exterior e interior. E cada pessoa tem a própria maneira de fazer isso.

T: Muitas artistas reclamam dos termos recortados como, por exemplo, “literatura feminina” quando se debate as escritas de artistas mulheres. Me parece um termo bastante complicado pois mesmo no intento da visibilização a nomenclatura especial acaba por separar as mulheres da visão igualitária do que seria apenas literatura. Como você se posiciona nesse debate? Até que ponto a mulher leticia feres e a escritora leticia feres ponderam as questões da produção artística feita por mulheres?

L: Eu também não gostava do adjetivo “feminino”. Mas, em conversas com minha esposa Ana Luiza Libânio, passei a compreender o feminino como espaço potente de transformação. E note que aqui não digo “espaço de poder”, é outra lógica. Tenho entendido “feminino” como o que Deleuze e Guattari entendem como “devir-mulher”. É um tipo de escrita norteado pela terceira margem do rio. Não tem relação direta com o fato de que a pessoa que escreve se identifique como mulher. Não tem a ver também esse feminino cor-de-rosa e gasto. Tem a ver com instaurar outras formas — de existência, de criação, de relacionamento. É algo que percebo como próximo daquela personagem do Caio Fernando Abreu, a Dulce Veiga, de que gosto tanto — e que por acaso é uma mulher — , que está em busca de “algo além”, “mais além”. Assim, nesse sentido-Dulce-Veiga, minha escrita é feminina.

POEMA INÉDITO DE LETICIA FERES

*

[Amiga,]

Se fores escrever

Ufana o lúbrico falo

A coluna grega que sustém o mundo.

Rejubila-te pela inteligência,

pelo charme, gentileza

& devotado cavalheirismo

do macho que te lê

Deleita-te com o modo como lambem envelopes

ou dobram

teu poema de mulher

com o peso da mão que o protege

de tua própria fragilidade

Que deves simular haver.

*

Use o tu como convém a uma tradicional mulher distinta

Depreende os olhares abrasivos

desses Casanova-

-iorquinos

Aposta no eufemismo

Delicia-te com anacronismos

Se possível uses rimas

Métrica & forma fixa

Dê a eles um petisco

Abra uma garrafa

de pizco

Bebe

comandante do gargalo

das expectativas

Empenha-te na afasia

Se quiseres ser publicada um dia.

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