O Abismo (Flying High) — Parte 1

Jorge Flávio Costa
L.E.I. & A.
Published in
4 min readMar 2, 2015

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Dizem que, quando se olha para o abismo, o abismo olha de volta para você. Erick estava encarando o precipício, e tudo que viu foi o vazio, aliado ao som de sua respiração ofegante e o tamborilar do coração no peito. Poucas e rarefeitas nuvens pairavam naquele vale, e não se ouvia o canto de uma ave sequer.

Ele havia treinado o salto com wingsuit mais de duas centenas de vezes, mas nunca naquelas condições. O equipamento fora testado e retestado, e todas as salvaguardas estavam ativas. Além do wing, estava usando dois paraquedas, o principal e o reserva. O sensor de pressão fora ajustado para disparar e abrir o reserva em caso de desmaio. Os óculos de proteção suportariam um impacto de mais de 200 kg sem se quebrar. O traje era bastante leve e resistente, porém o peso extra, devido aos equipamentos de proteção, acabava por limitar os seus movimentos, dificultando a execução de uma manobra rápida de escape, em caso de necessidade.

Mas nada disso era o que lhe preocupava. O que realmente lhe fazia tremer era o intenso vento noroeste que soprava a mais de 30 km/h. Tremia pelo frio, e pela direção que aquela corrente tomava, batendo diretamente contra o penhasco e formando um redemoinho mortal pouco abaixo da zona de salto. Aquele vento era até razoavelmente comum, mas não com essa intensidade.

Esta situação lembrava-lhe de quando encarou os 530m da Serra do Mar. Na ocasião também ventava muito e Erick sentiu bastante dificuldade em controlar o ângulo de ataque, o que influenciava diretamente na velocidade de descida e na estabilidade do voo. Por pouco não atingiu Miguel, seu fiel companheiro e o melhor cameraman que conhecia. Uma rajada de ar mais forte fez com que se aproximasse perigosamente das escarpas e, ao abrir os braços para frear, a redução da velocidade foi tão alta que pegou Miguel de surpresa e ambos passaram a centímetros de distância. A sorte era que não haviam aberto ainda os paraquedas e bastou Miguel reduzir a velocidade dele e ambos voltaram à posição normal e ideal para a captura das imagens.

Porém, o Monte Agulhão não era a Serra do Mar. Apesar de possuir pouco mais de 380 metros de altitude, ainda assim era o mais alto do Vale das Agulhas. Não era difícil perceber o porquê dessa denominação. Observando a paisagem do cume do Agulhão, entrevia-se dezenas de pequenos picos estreitos e pontiagudos, lembrando de fato agulhas espetadas numa almofada de espuma.

Em alguns casos, a distância entre um pico e outro não ultrapassava os 40 metros. Pode parecer muito, mas planar a velocidades próximas dos 120 km/h e tentar desviar dos cumes usando apenas as asas artificiais do wingsuit definitivamente não era uma tarefa para amadores. Com seus 14 anos e 852 saltos de experiência, Erick sabia ser capaz de encarar um dos maiores desafios da sua carreira como paraquedista profissional.

A diferença é que, dessa vez, não contaria com o auxílio do seu fiel amigo. Miguel machucara o tornozelo após uma aterrissagem de mal jeito, deixando-o de molho por duas semanas. Nenhum outro cameraman aceitou aquele desafio, então Erick decidiu que faria mesmo assim. Devido ao relevo altamente acidentado, o apoio aéreo por helicóptero era inviável a até pelo menos um quilômetro após o início do salto. A equipe de solo com os bombeiros e paramédicos o esperava próximo ao ponto de descida; contudo, até lá estaria praticamente por conta própria.

Por diversas vezes, Miguel alertou dos riscos envolvidos e insistiu exaustivamente pra que o amigo não realizasse este salto sozinho. Além de não ter o auxílio de um segundo par de olhos, seria impossível captar as imagens desta aventura em terceira pessoa. Erick não conseguiu segurar o riso ao ouvir essa última parte.

— Eu saltarei de um dos picos mais perigosos do país, e você se preocupa com o registro das imagens? Levarei uma câmera 3D presa ao capacete! — disse Erick, sorrindo para o amigo.

Não é com as imagens que me preocupo, e sim com sua segurança, seu tolo inconsequente!! — respondeu Miguel, indignado, enquanto dava as costas e saía mancando por causa da tala na perna.

Contudo, o que Miguel desconhecia era a nova tecnologia que Erick pretendia testar. Algo extremamente ousado, que nenhum outro paraquedista, ou até mesmo atleta, poderia imaginar. Naquele momento, sentiu-se traindo o parceiro por não contar-lhe a verdade. Se Miguel soubesse do que realmente se tratava, jamais permitiria que Erick embarcasse naquela aventura insana sozinho. Ou pior, insistiria para saltar junto, mesmo sem estar em condições físicas para tal.

E, de forma alguma, Erick perderia aquela oportunidade única. A Techson tinha lhe enviado o protótipo em primeira mão, com a condição de que o salto fosse realizado na abertura da CompuShow, como forma de dar publicidade à empresa e seu novo produto. A responsabilidade — e os riscos — eram imensos, mas não seria dessa vez que ele desistiria. Foram anos de luta para chegar a esse nível de profissionalismo, muitas horas e dinheiro investidos, para enfim receber o merecido reconhecimento. Ele seria o primeiro paraquedista a realizar um salto solo, de olhos vendados…

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[Este texto é faz parte de um exercício criativo desenvolvido em colaboração com Daniel Capua, para a publicação L.E.I.A., e se você se interessou por ele pode acompanhar a segunda parte no link a seguir]

https://medium.com/l-e-i-a/do-outro-lado-do-abismo-24902ef20269

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Jorge Flávio Costa
L.E.I. & A.

Computeiro, apaixonado por séries e romances policiais, tentando compilar de forma inteligível o caos de ideias que habitam sua mente.