Descuido Sexualmente Transmissível

O Tabuleiro
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7 min readNov 2, 2015

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Por Renan Fagalde e Monique Comitre

Das DSTs existentes, em suas assustadoras variedades, existem duas no Brasil que ainda assustam e infectam um grande número de pessoas: HIV e Hepatite C. Não por menos, ambas não têm cura, mas ainda há esperança.

As vacinas contra essas doenças, noticiadas há anos pela mídia, irão sair do papel alguma hora? É isso que buscam, correndo contra o tempo, um grupo de pesquisadores brasileiros que conversaram com O Tabuleiro.

Antes da esperança por um novo tratamento, vem o choque da descoberta. Rui Garcia Júnior, recebeu a notícia de que havia contraído o vírus HIV há 15 anos, enquanto doava sangue. O diagnóstico, diz, tirou o chão de seus pés.

“Foi um choque, achava que o mundo tinha desabado”, diz o ex-cobrador de ônibus da zona sul de São Paulo. “Foi um descuido… quase nunca usava camisinha”, lamenta.

O impacto causado pela notícia foi aliviado por amigos e parentes, que não o abandonaram mesmo quando o HIV, no fim da década de 90 e início dos anos 2000, ainda era um grande bicho-papão. “Tive apoio de pessoas que me disseram que tinha tratamento e medicação. E comecei a estudar mais sobre a doença.” A busca por decodificar esse vírus tão agressivo não era só uma busca empenhada por um leigo.

O doutor médico Edecio Cunha Neto, chefe do núcleo de Apoio a Pesquisa do Instituto de Investigação em Imunologia da Universidade de São Paulo, dedica seus esforços para encontrar uma vacina mais efetiva contra o HIV.

O prototipo elaborado pela equipe de Edecio ganhou manchetes no início de 2014. À época, veio o anúncio sobre os primeiros testes bem-sucedidos do medicamento antiviral em macacos. Um ano depois, a pesquisa encontrou um obstáculo burocrático.

“Para continuar os testes, precisávamos de uma instalação nova para testar uma nova formulação de vacina nos macacos. Para esse tipo de experimento precisamos de uma instalação, que chamamos de ‘nível de segurança dois’. É um nível de segurança biológica mais alta para trabalhar com os tipos que vacina que vamos usar”, conta o doutor.

Mesmo com o entrave, os cientistas estão animados. “A resposta inicial ao primeiro protótipo da vacina foi muito positiva, e isso nos sugere que as próximas etapas terão resultados ainda mais fortes. Vamos usar uma formulação que costuma ter respostas mais intensas”, constata Edecio.

O laboratório precisou ser encomendado dos Estados Unidos e as negociações demoraram alguns meses, mas o pesquisador afirma que a universidade está “fechando as negociações”. Após o negócio ser fechado, levará até seis meses para que as instalações sejam entregues ao Brasil e permita a retomada dos testes no início do segundo semestre do ano que vem.

Rui, que contraiu HIV e corre ignorante aos ventos do escritório de Edecio, também está animado com as perspectivas oferecidas pela Medicina, ainda que a vida lhe tenha ensinado a ter certo ceticismo. “Demorar não é um problema. “Acredito que as esperanças são boas, já que a medicina cada vez avança mais mas não acredito em uma cura. Já uma vacina, sim, na vacina eu acredito”.

Hepatite C
A hepatite, assim como a AIDS, é uma doença na maioria dos casos silenciosa e que leva tempo para mostrar os primeiros sintomas. Em alguns casos, o portador do vírus HCV é completamente assintomático.

Joel*, portador de hepatite há mais de 10 anos, é um ponto fora da curva entre os pacientes convencionais. Zeloso sobre os cuidados sobre a própria saúde, ele faz exames regularmente e foi assim que descobriu que possuía a doença. “Minha saúde é de ferro, mas também, tenho só 25 anos,” disse, rindo, o empresário autônomo. Na realidade, Joel tem 60 anos.

“Sinceramente? Não sei como peguei. Não sei se foi alguma namorada, não sei se foi em algum hospital. Mas não tem problema, eu cuido muito bem e controlo direitinho”, diz. Ele precisou se tornar ainda mais atento após descobrir a doença. Como já evitava o álcool — “Tive um tio alcoólatra, sabe?” — capaz de agravar uma cirrose hepática, ele precisou se lembrar de ler bulas de medicamentos para saber efeitos sobre o fígado. Fora isso, existem os eventuais cortes que acontecem em sua linha de trabalho.

“Minha empresa é de instalação e manutenção de ar-condicionado. Então tenho que cortar tubo, mexer em duto, teto e em paredes. Às vezes acontece de bater em algum lugar e me cortar. E aí? Imagina se cair em alguém uma gota desse sangue?”

Assim como o HIV, o HCV teve um histórico de identificação. Até 1993, não existia um teste confiável para diagnosticar a doença, o que ajudou a propagar o vírus. Joel, porém, ainda não sabe que a hepatite C já tem cura. E com eficácia de 99%.

Um coquetel de medicamentos formado sufosbuvir, daclatasvir e simeprevir chegará ainda em 2015 no SUS. A estimativa é que atenda cerca de trinta mil pacientes, anunciou o Ministério da Saúde. Contudo, no anuário epidemiológico sobre a doença, o departamento do próprio órgão calcula que infectados pelo vírus são cerca do dobro do de infectados pelo HIV: 1,4 milhão de pessoas.

Segundo pesquisas recentes realizadas por meio do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, cerca de 3 mil mortes por ano estão relacionadas à Hepatite C no Brasil. A doença também é uma das principais causas de transplantes de fígado no país. As estimativas oficiais contam que por volta de 10 mil novos casos sejam notificados por ano.

Algo curioso sobre a doença, no entanto, é seu status como doença sexualmente transmissível. O HCV é transmitido pelo sangue, o que teoricamente pode ser associado a uma DST, mas nem especialistas do governo tem uma definição exata: “A transmissão sexual do HCV entre parceiros heterossexuais é muito pouco frequente, principalmente nos casais monogâmicos. Sendo assim, a hepatite C não é uma Doença Sexualmente Transmissível (DST); porém, entre homens que fazem sexo com homens (HSH) e na presença da infecção pelo HIV, a via sexual deve ser considerada para a transmissão do HCV”, segundo relatório lançado pelo departamento em 2014.

O doutor Sylvio Quadros Mercês Júnior, coordenador geral do Departamento de DST- Doenças Sexualmente Transmissíveis da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), defende que a hepatite C não é considerada uma DST por sua via de transmissão ser “diversa”.

Mundo
A ONU lançou diversas metas para os próximos quinze anos em sua Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, e entre elas, na área de Saúde, há o objetivo de erradicar o HIV e combater a hepatite.

Da Agenda 2030 da ONU: “Até 2030, acabar com as epidemias de AIDS, tuberculose, malária e doenças tropicais negligenciadas, e combater a hepatite, doenças transmitidas pela água, e outras doenças transmissíveis”. O Brasil adotou essa meta, e o Departamento de AIDS, DSTs e Hepatites Virais, através de assessoria, afirmou que ela será cumprida.

Porém, na opinião do doutor Edecio Cunha-Neto, o pesquisador da USP que desenvolve para a erradicação do HIV, o objetivo não é alcançável. “Pra isso acontecer, precisaria existir ou uma vacina ou um tratamento que atingisse a totalidade dos infectados e que reduzisse a transmissão a zero. Eu acho que isso é bem difícil erradicar a doença sem uma vacina.”

Questionado sobre quando a vacina pesquisada pela USP chegará ao mercado, ele disse que não é possível prever, “já que essa etapa em que estamos agora nós já queríamos ter ultrapassado há um ano… Não é possível assegurar um tempo para que a vacina esteja pronta para teste definitivo com humanos. São muitos anos na luta ainda.”

Algo que pode ajudar a conter o avanço das duas doenças é a solução do antigo problema de detecção e notificação em novos casos, principalmente nas regiões do país com menos cobertura especializada. Isso exige mais investimentos, campanhas de conscientização e uma coordenação firme das três esferas do governo — federal, estadual e municipal, afirma especialistas consultados por O Tabuleiro.

O doutor Sylvio é taxativo sobre o assunto: “ A questão da subnotificação é antiga e, pelo seguimento que as coisas vão no país, não vejo luz no fim do túnel… Agora, com a crise pela qual o país atravessa, ficará ainda mais difícil vislumbrarmos medidas que efetivamente nos aproximem das organizações dos países avançados do globo”.

Apesar do horizonte sombrio, a cura para hepatite C já existe, antes mesmo da vacina. Talvez o otimismo de Rui, Joel, do governo e até da meta da Agenda 2030 da ONU sobre o HIV e a hepatite C não seja tão infundado assim — desde que a medicina continue a surpreender.

Enquanto espera, Rui tornou-se um ativista em Guaianazes, seu bairro, e vem buscando trazer um Serviço de Assistência Especializada (SAE) em HIV/AIDS, que consiste em um pequeno hospital especializado nesse tipo de tratamento. “Vamos lutar, né?”, sugere rui. A luta aparentemente se estendeu um pouco, mas é verdade que será eventualmente vencida.

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