Exclusivo

Mulheres estão na direção de apenas 23% dos filmes da Mostra

LabJor FAAP convida quatro diretoras, de diferentes países, para falar de seus filmes e da participação feminina no mercado audiovisual

LabJor
LabJor
Published in
10 min readNov 1, 2020

--

Ariane Carvalho e Marco Bueno*

Nos 198 filmes do catálogo da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, 54 mulheres aparecem como diretoras ou co-diretoras. O número equivale a 23% dos títulos e representa um aumento na participação feminina em relação à Mostra do ano passado (17%). Na 43ª edição, dos 319 filmes, havia 56 filmes dirigidos apenas por mulheres, sozinhas ou em parceria, e 16 dirigidos por mulheres em parceria com diretores homens. Na soma, a Mostra 2019 contou com 72 mulheres na direção frente a 247 homens.

Ao analisar os dados, o LabJor FAAP levou em consideração tipo de filme, identificação de gênero do realizador e se houve “parceria”, ou co-direção entre no mínimo um homem e uma mulher. Co-direções entre dois homens foram contabilizadas como filmes dirigidos por homens e entre mulheres como co-direções exclusivamente femininas. Veja nos gráficos abaixo.

DIRETORAS DE DIFERENTES PAÍSES FALAM DA PARTICIPAÇÃO FEMININA NO CINEMA

Há uma pluralidade temática e estética no trabalho de cineastas mulheres, com obras que não falam apenas de questões tidas como femininas. O LabJor FAAP convidou quatro diretoras, de diferentes países, para falar de seus filmes, da participação feminina no mercado audiovisual e de como tem sido a experiência de participar da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Confira a seguir.

MOARA PASSONI, DIRETORA DE 'ÊXTASE' (BRASIL, 2020)

Presente nas categorias Novos Diretores e Mostra Brasil, Êxtase mistura ficção e documentário para fazer uma reflexão sobre a anorexia e sua linguagem singular. A protagonista é a personagem Clara, uma adolescente que enfrenta a doença e seus conflitos psicológicos e físicos.

Em conversa exclusiva com o LabJor FAAP, a diretora Moara Passoni, contou que sua própria experiência com a anorexia foi o ponto de partida para o longo e gradual processo de pesquisa e construção do filme.

Para ela, a subjetividade e a experiência pessoal são fatores que influenciam muito a forma com que se faz audiovisual. Moara apontou como exemplo as salas de roteiro, sobretudo de séries de televisão, que, segundo ela, são cada vez mais compostos por pessoas que representam realidades diversas. A diretora defende que, quanto mais diversidade existir nas linhas de frente do cinema, mais interessantes e ricas serão as produções.

“Eu não afirmo que um homem não é capaz de fazer um personagem feminino maravilhoso, afinal existem filmes incríveis com mulheres fortes sendo retratadas por homens. Assim como mulheres fazem filmes muito bons sobre homens. Não sou essencialista de jeito nenhum nesse sentido. Mas depois do que vivi com o meu corpo, sobretudo na anorexia, acho muito difícil que um homem fizesse aquele filme com tanta veracidade.”

Personagem Clara em cena do filme ‘Êxtase’. Foto: Reprodução

Nesse sentido, Moara acredita que a conquista feminina por espaço nas linhas de frente do audiovisual é parte de uma luta que precisa continuar para tornar-se uma vitória permanente. Um exemplo é a Suécia, onde existem festivais que precisam conter pelo menos 50% dos filmes dirigidos por mulheres no catálogo. Por isso, Moara celebra o fato de que a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo também esteja trilhando o caminho para aumento da participação de mulheres na direção.

“Acredito que foi uma batalha nessa luta que, bem ou mal, as mulheres venceram. Sinto que eu mesma tive uma mudança epistemológica nos últimos anos: percebi que me questionava sobre a forma como construo o cinema e minhas narrativas. Foi uma construção que veio das mulheres estarem ali reivindicando espaço e afirmando que participariam do cinema como realizadoras.”

Um fato que lhe influenciou bastante nessa mudança, conta, foi a fundação do Coletivo Vermelha, em São Paulo, anos antes de ir morar nos Estados Unidos. Inspirado no Film Fatale, um coletivo feminista presente em diversos países, o movimento cria redes de conexão de mulheres do audiovisual para se ajudarem nos processos de criação, produção e distribuição de projetos. “É preciso lembrar que não se trata de uma disputa entre homens e mulheres. E eu vejo nisso uma solução: a gente consegue mudar esse cenário por meio de redes, com uma mulher ajudando a outra.

ZEINA DURRA, DIRETORA DE ‘LUXOR’ (EGITO E REINO UNIDO, 2020)

O longa-metragem de ficção de Zeina Durra conta a história de Hana, uma médica emergencista que, após viver momentos traumatizantes em uma clínica entre a Jordânia e a Síria, busca refúgio numa nostálgica cidade egípcia onde estudou quando jovem: Luxor. Vagando entre templos e saguões de hotéis, Hana reencontra Sultan, antigo namorado que ainda vive na região, e busca recuperar a felicidade que um dia sentiu, ao mesmo tempo em que lida com memórias recentes de guerra.

Pôster do filme ‘Luxor’. Foto: Divulgação

Em entrevista exclusiva ao LabJor FAAP, Zeina Durra, cujo filme entrou na competição Novos Diretores da Mostra, conta que a jornada de Hana dialoga com o período depressivo vivido por ela enquanto trabalhava em outro filme. Revela que esse período da sua vida foi influenciado por dificuldades no processo criativo, na arrecadação de fundos para seu projeto, além de seguidas gravidezes. “Ou eu estava depressiva, ou estava engravidando novamente”, brinca a diretora, que gravou o longa logo após um parto.

Segundo Zeina, a ideia do projeto surgiu de forma inesperada e a notícia de que ele realmente se materializaria a chocou. “Tive um sonho muito intenso de uma mulher caminhando pelas ruínas de Luxor e pensei: ‘Uau!’”, diz a diretora. “Em seguida, falei com minha diretora de fotografia sobre ele. E ela, depois de ouvir, disse: ‘Você viria ao Egito para fazer esse filme a troco de nada?’”

A diretora conta ainda que a jornada por uma ressignificação da vida dissocia Luxor das típicas produções comerciais protagonizadas por mulheres. Para ela, o filme fala sobre a busca do sujeito que, em meio a dúvidas e traumas recentes, guia a trajetória de Hana vis-a-vis com a insegurança de um futuro incerto e a busca por felicidade e equilíbrio. E a protagonista, explica Zeina, teve seu coração partido pela vida, não necessariamente por causa de um homem.

A diretora Zeina Durra. Foto: Reprodução

Sobre as dificuldades em financiar seus últimos projetos, a diretora reflete que esse tipo de impedimento lança luz sobre o posicionamento do mercado cinematográfico inglês em relação a produções dirigidas por mulheres, por vezes subestimadas.

“Jornais ingleses falaram muito sobre mudança, mas o que estão fazendo a respeito? Se eu falasse sobre minha cobertura de imprensa na Inglaterra, você simplesmente riria. Sou uma mulher diversa, que amamentou o bebê enquanto fazia um filme no Norte da África. Se é um momento tão bom assim, onde ele está? Na Inglaterra, há uma forma insidiosa e inconsciente de preconceito.”

BOJENA HORACKOVA, DIRETORA DE ‘WALDEN’ (FRANÇA E LITUÂNIA, 2019)

Dirigido pela checa Bojena Horackova e na categoria Perspectiva Internacional, o longa Walden é ambientado numa Lituânia anterior à queda do comunismo. O filme transita entre a juventude e a vida adulta de Jana, que, após 30 anos de exílio em Paris, regressa a seu país em busca do lago de Walden, assim apelidado pelo seu primeiro amor, Paulius. Enquanto a protagonista, ainda jovem, se envolve no mercado negro, sua versão já adulta entra numa jornada em busca do lago que marcou suas vivências ilegais da adolescência.

Os jovens personagens Jana e Paulius, em cena do filme ‘Walden’. Foto: Reprodução

Com uma narrativa intimista e atemporal, Walden (2019) é capaz de despertar nostalgia mesmo abordando temas como mercado negro, regimes políticos e busca pelo sujeito feminino. Assim como Jana, a diretora partiu de seu país rumo a Paris ainda jovem e, em entrevista ao LabJor FAAP, relatou como sua experiência dialoga com a da protagonista, mesmo não sendo um filme autobiográfico.

“Não filmei na República Checa, mas na Lituânia, pois queria um país que não conhecesse, precisamente para fugir de qualquer coisa que pudesse ser uma memória”, conta. “Jana, quando retorna 30 anos depois à Lituânia (…), não procura ver como a Lituânia mudou. Eu queria fugir de algo realista porque esse Lago Walden é uma utopia, um sonho.”

A busca por liberdade e independência na juventude marca Jana, que acaba se envolvendo na venda de drogas ilícitas após conhecer Paulius. No universo da ilegalidade, em pleno regime comunista, ela se distancia do pai e de seu núcleo familiar e passa a trilhar uma jornada solitária em que estão presentes fronteiras não só físicas como imaginárias. “Talvez seja o medo do desconhecido, responsável por formar fronteiras, que nos separam dos outros”, opina Bojena.

A diretora Bojena Horackova. Foto: Reprodução

Além de falar sobre o longa, a diretora se posicionou sobre o crescimento do número de mulheres no mercado cinematográfico e em seu país, onde mais e mais mulheres estão dirigindo filmes.

“Para mim, deve ser normal que haja num festival tantos filmes femininos quanto masculinos. Não devemos considerar isso excepcional. Como eu morava em um país do Leste Europeu (República Checa), onde havia maior igualdade entre mulheres e homens, havia mulheres que dirigiam bondes, administravam canteiros de obras. parecia normal que uma mulher dirigisse filmes.”

JOYCE PRADO, DIRETORA DE ‘CHICO REI ENTRE NÓS’ (BRASIL, 2020)

O longa-documental de Joyce Prado compete nas categorias Novos Diretores e Mostra Brasil. Ele reflete sobre o papel da memória coletiva na construção de uma identidade do povo preto, principalmente quando a história oficial é contada de um ponto de vista único: o do colonizador.

O filme resgata a figura histórica de Chico Rei, um rei do Congo trazido ao Brasil para ser escravizado, que teve uma atuação importante no apoio à população negra de Ouro Preto. Essa história, apesar de famosa em Minas Gerais, é ainda pouco conhecida em outros Estados brasileiros.

Cartaz de ‘Chico Rei Entre Nós’. Foto: Divulgação

Em entrevista exclusiva ao LabJor FAAP, Joyce Prado conta que ela mesma conheceu há pouco tempo a história de Chico Rei. Mas enxerga, por ser de São Paulo, muitas relações entre as figuras que conheceu e o rei congolês — segundo ela, porque a cultura negra dos diferentes Estados do Sudeste está muito interligada.

No encontro de tantas vozes criativas e subjetivas, Chico Rei Entre Nós (2020) fala sobre o passado e o presente em Minas Gerais e São Paulo, apresentando núcleos de resistência da cultura negra. Segundo Joyce Prado, o cartaz de divulgação é fruto desse olhar.

“Por mais que o título traga o nome de uma figura masculina, penso que a narrativa tem muito da força das mulheres que estão à frente desses movimentos sociais. Ela é uma rainha conga de uma das guardas que estavam no longa e cedeu a imagem para nós. Acredito que ela traduz muito dessa ancestralidade em vida, possuindo todos os elementos da tradição pela qual o filme transita.”

A opção por dar voz ao protagonismo da mulher preta nos movimentos sociais foi fruto de longa pesquisa na realização do documentário, segundo Joyce. Para ela, figuras como Xica da Silva tiveram atuações análogas às de Chico Rei. Questionada sobre sua luta pessoal como mulher no audiovisual e se isso foi importante para sua concepção artística, lembrou que a luta para conquistar espaço já vem de décadas e as redes sociais potencializaram muito a possibilidade de levar essa discussão para a sociedade.

A diretora Joyce Prado. Foto: Reprodução

“A importância da presença das mulheres vem muito no caminho sobre o que é o olhar crítico delas em relação a essa produção, às maneiras como nossas vivências na sociedade são distintas. A relação da mulher com o corpo feminino é muito diferente da relação do homem com esse mesmo corpo. A questão de gênero na nossa relação com o mundo, na relação com a sociedade, consequentemente vai interferir na maneira como a gente constrói narrativas e pensa a dramaturgia. Às vezes tenho a impressão de que as discussões acabam sendo muito vagas, como se o ‘olhar feminino’ fosse algo vago. Não é: estamos falando sobre os espaços que essa mulher ocupa e o papel que ela exerce.”

SERVIÇO

Êxtase está disponível na Mostra Play até o dia 04/11 ou até o limite de 500 visualizações.

Luxor está disponível em Mostra Play até o dia 04/11 ou até o limite de 2 mil visualizações.

Walden está disponível em Mostra Play até o dia 04/11 ou até o limite de 2 mil visualizações.

Chico Rei Entre Nós está disponível em Mostra Play até o dia 04/11 ou até o limite de 2 mil visualizações.

Ariane Carvalho e Marco Bueno são estudantes de Cinema da FAAP

Com colaboração de pedro a duArte e supervisão da Profa. Lilian de Lucca Torres

--

--

LabJor
LabJor
Editor for

Um laboratório de informação: Descobrimos e contamos histórias que dão sentido ao presente.