GUERRILHA CRIATIVA

O que fez do 'Jornal da Tarde' um exemplo de ousadia na forma e no conteúdo e um símbolo de culto ao texto

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Giordano Pienegonda

“A Dança dos Logotipos”, nome dado por Rubens Fernandes Junior à ousadia editorial do JT. Foto: Arquivo Pessoal/ Rubens Fernandes Junior

“No 'Jornal da Tarde' ninguém brigava por dinheiro, eu nunca vi. Saía era briga feia porque cortavam o texto.”

A frase é do jornalista Fernando Mitre, que no dia 23 de março contou nos Encontros de Comunicação da FAAP ca(u)sos e experiências jornalísticas curiosas e engraçadas sobre o período que passou na redação do Jornal da Tarde, onde, após ocupar vários postos, foi diretor de redação por 13 anos. Na mesa Experiência do JT, uma escola de vanguarda no Jornalismo brasileiro, dividida com o coordenador da área de Comunicação da FAAP, Rubens Fernandes Junior, o atual diretor nacional de Jornalismo da TV Bandeirantes contou histórias ora em tom de aula, ora em tom de conversa.

Natural de Oliveira (MG), Fernando de Lima Mitre nasceu em 15/04/1941 — segundo ele, desde que a vacinação contra a covid-19 começou, não tem problema em revelar a idade. Em 1963, iniciou sua carreira como estagiário no Correio de Minas, depois de trocar os cursos de Direito e Economia pelo Jornalismo. Mais tarde, passou pela revista Binômio e pelo Diário de Minas.

Fernando Mitre (à esq.) e Rubens Fernandes, nos Encontros de Comunicação. Foto: Giordano Pienegonda

No livro Jornal da Tarde: Uma ousadia que reinventou a imprensa brasileira, Ferdinando Casagrande lembra que Mitre fez parte do grupo de jovens jornalistas mineiros que formaram o JT— e que tinha também Ivan Ângelo, Carmo Chagas, Antonio Lima, Dirceu Soares, Moisés Rabinovici, Flávio Márcio, Marco Antônio de Menezes, Marco Antônio de Lacerda, Ezequiel Neves e Ramon Garcia.

Na conversa com alunos e professores da FAAP, Mitre lembrou que o JT surgiu em 1966 com uma proposta ousada na forma de escrever, que seguia na contramão dos manuais de jornalismo. A ideia era não seguir a ditadura do lide, modelo estadunidense que prevê pôr as informações mais importantes na parte superior do texto jornalístico e ir afunilando para as menos importantes. Assim, o editor podia cortar o último parágrafo caso o texto não coubesse na diagramação da página. Chamado de pirâmide invertida, esse modelo era utilizado no Jornal do Brasil e servia de base para (quase) todos os jornalistas. No JT, no entanto, a ideia era escrever em forma de retângulo, distribuindo as informações ao longo do texto e dando importância a um fecho de ouro. Ou seja, se a informação era menos importante, não tinha de estar no texto.

Além dos jovens jornalistas mineiros, Mitre destacou que faziam parte da equipe de redação do Jornal da Tarde o italiano Mino Carta e outros jornalistas, como Murilo Felisberto (1939–2007) e Ruy Mesquita (1925–2013). Além de mulheres, como a jornalista Cláudia Baptista, atualmente mais conhecida como Monja Cohen, entrevistada no ano passado pelo LabJor FAAP.

“As capas do JT tinham um sentido conotativo, mas permitiam a leitura e a busca de outros significados”, lembrou o jornalista, ao falar da criatividade e da liberdade que se tinha na redação para fazer capas e reportagens. “Não foi um jornal como os outros: nasceu e já virou um laboratório.”

Um dos destaques do que Rubens chamou na conversa de o “filho” rebelde do “carrancudo” O Estado de S. Paulo, o outro jornal dos Mesquitas, era o investimento visual. O JT levou os fotógrafos para dentro da redação, utilizando recursos visuais e textuais para informar e colocando a fotografia como uma das cinco editorias do jornal, ao lado de política, economia/geral, esporte e variedades.

A ousadia daquele grupo de jornalistas atiçou a censura durante a ditadura militar. Mas a falta de conhecimento dos censores possibilitou alguns dribles, segundo Mitre. Quando a polícia chegou para segurar uma edição censurada de O Estado de S. Paulo, em 1968, por exemplo, enquanto alguns jornalistas conversavam com os policiais na frente da redação, a edição do jornal saía pelos fundos do prédio em direção às bancas.

“O censor censurava o texto, mas era ignorante em relação às imagens. As imagens trouxeram uma vida inteligente ao jornal”, contou Rubens, ressaltando a ousadia do JT ao trabalhar com fotos que muitas vezes falavam pelo texto que havia sido calado.

Entre as muitas histórias contadas durante a palestra sobre o caráter ousado e inovador do jornal, a notícia da morte do guerrilheiro e líder da Aliança Libertadora Nacional (ALN) Carlos Marighella — morto pela polícia em 4 de novembro de 1964 — chamou atenção. Segue o relato do próprio Mitre:

“Na morte do Mariguella, a única versão permitida foi a da polícia. E não tinha conversa, era aquilo ou não publicava. Como o jornal era muito livre em termos de edição, nós fizemos a capa e colocamos no olho: ‘Marighella é morto em rua de São Paulo. Aqui a versão completa contada pela polícia’. No dia seguinte, um tal de coronel Américo, que sempre chamava a gente — eu quero até um dia saber quem é esse coronel Américo –, nos chamou e disse:

– O que é isso!?

– É para prestigiar a polícia, coronel!, eu respondi.

Então tinha essa guerrilha ali, mas muitas vezes a gente tinha a sensação horrível de que estava fazendo uma matéria que ia virar receita de bolo. Mas escrevia porque os Mesquitas nunca aceitaram que se fizesse autocensura.”

Mitre se refere a uma estratégia usada pelo Jornal da Tarde para sutilmente denunciar a censura aos leitores: no lugar de matérias vetadas, passou a publicar receitas de bolo que não davam certo. Já O Estado de S. Paulo publicava versos de Os Lusíadas, de Camões, no espaço das reportagens censuradas.

Páginas censuradas nos jornais ‘O Estado de S. Paulo’ e ‘Jornal da Tarde’: trechos de ‘Os Lusíadas’, de Camões (à esq.), e receitas no lugar de notícias vetadas. Fotos: Arquivo Pessoal/ Rubens Fernandes Junior

Em 46 anos de existência, a jovem redação do JT inventou e reinventou de textos a edições de capas — e, nas horas vagas, da meia noite às quatro da manhã, jogava futebol com bola feita de papel amassado no corredor do jornal. Certa vez, lembrou Mitre, a equipe do jornal foi denunciada por derrubar um retrato do escritor Machado de Assis. Participantes do jogo tiveram de fazer um relatório sobre o que tinha acontecido, mas não se fizeram de rogados: escreveram que Machado tinha sido expulso, pois estava atrapalhando o jogo. O “culto ao texto” do JT era tão forte que até Machado de Assis fazia parte da pelada de improviso dentro da redação.

Logotipo sem letras maiúsculas do ‘Jornal da Tarde’. Foto: Arquivo pessoal/ Rubens Fernandes Junior

“Eu vivia dizendo: a modéstia não fazia parte do nosso cotidiano, é uma virtude menor. Humildade tem grandeza, é outra coisa”, disse o jornalista, emprestando embasamento teórico do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (1905–1980), em sua peça O Diabo e o Bom Deus.

Ao mesmo tempo que diziam isso, colocavam o logotipo do jornal sempre em letras minúsculas e onde desse na paginação. “A gente ficava olhando para nós mesmos”, recordou Mitre. “Tínhamos referências, éramos nosso próprio modelo.”

O PODER DAS IMAGENS

Para Rubens Fernandes Junior, “as imagens fazem parte da narrativa da matéria”. Nós do LabJor FAAP concordamos. Por isso, apresentamos abaixo algumas fotos cedidas pelo professor de seu arquivo pessoal, com suas análises sobre elas. Dá uma olhada:

Foto: Arquivo Pessoal/ Rubens Fernandes Junior

“São duas capas da posse do (ex-presidente Ernesto) Geisel, em 1973. A do lado esquerdo com duas fotos verticais. Em uma, o Geisel com a mão para cima e o (ex-presidente Emílio Garrastazu) Médici com a mão para baixo, criando duas diagonais. E o título quer dizer o dia dele, só dele. A outra foto vertical à esquerda é o Médici se despedindo dos militares, mas ele não chega ao leitor porque o último homem de costas é um outro militar. A frase abaixo do logo do jornal é o povo que está aguardando, mas tudo bem. A outra capa (à dir.) com a manchete é que tudo isso está apoiado pelas armas dos militares, ou seja, toda a mudança que era a grande expectativa de alguma novidade com a entrada do Geisel, está de cabeça baixa. É muito emblemático para aquele momento que estávamos vivendo durante a ditadura militar.”

Foto: Arquivo Pessoal/ Rubens Fernandes Junior

“É uma capa ocupada pelo texto, com muito branco. Se você der um zoom, embaixo fala da importância do repórter fotográfico na moderna comunicação jornalística. O JT foi o primeiro jornal do Brasil a ter um editor de fotografia, que foi o Milton Ferraz. A fotografia faz parte da narrativa da matéria.”

Quarenta e seis anos de história; primeira e última capa do Jornal da Tarde. Foto: Arquivo Pessoal/ Rubens Fernandes Junior

A primeira capa, de 1966, e a última, de 2012, estão separadas por 46 anos de história. Um jornal feito por jovens jornalistas que marcaram a imprensa brasileira, enfrentando a censura dos governos militares, atravessando crises e momentos duros, reinventando a forma de escrever e de se contar histórias, que vai muito além das palavras. Na opinião de Rubens Fernandes Junior, “o que vale a pena pontuar é que o Brasil não reverencia sua memória”. “Mas, de qualquer maneira, o JT está contextualizado num período de efervescência sócio, política e cultural da Guerra-Fria.”

LIVROS MARCANTES

Durante a conversa nos Encontros de Comunicação da FAAP, o jornalista Fernando Mitre citou vários livros que marcaram sua trajetória ou fizeram parte da história do Jornal da Tarde. Confira abaixo quais são essas obras e por que elas foram marcantes:

  • Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), de Johann Wolfgang von Goethe

Mitre usou o clássico romântico para exemplificar o fecho de ouro, que os jornalistas do JT buscavam colocar em suas reportagens.

  • O Velho e o Mar (1952), de Ernest Hemingway

Antes de formar o grupo dos jornalistas mineiros da redação do Jornal da Tarde, Murilo Felisberto conheceu Mitre enquanto ele reescrevia o clássico de Hemingway com um número menor de palavras.

  • O Diabo e o Bom Deus (1951), de Jean-Paul Sartre

Mitre mencionou a peça escrita pelo filósofo existencialista francês para falar da modéstia e da humildade.

  • Introdução ao Jornalismo (1959), de Fraser Bond

Ao lembrar da recusa dos jornalistas do JT de utilizar textos jornalísticos padrão, Mitre citou o livro do americano Fraser Bond, então considerado um manual para jornalistas.

  • Signagem na Televisão (1984), de Décio Pignatari

Reunião das críticas de TV, escritas por Pignatari no Jornal da Tarde. Mitre comentou sobre a importância do autor para a Semiótica e os estudos de Comunicação. O professor Rubens Fernandes Junior lembrou da compreensão da televisão como um “complexo intersigno” e da criação da palavra “televisual”, escrita por Pignatari no JT.

  • Viagem na Irrealidade Cotidiana (1984), de Umberto Eco

Rubens citou o livro ao fazer um paralelo do autor italiano com Décio Pignatari e a “disputa” entre os dois livros no Brasil.

  • Torre de Babel: Ensaios, crônicas, interpretações e fantasia (1996), de Roberto DaMatta

Mitre lembrou de quando integrou DaMatta ao time do JT para fazer crônicas sobre comportamentos brasileiros. O jornalista assina o prefácio do livro.

Giordano Pienegonda é aluno de Jornalismo da FAAP

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