ARTIGO

Versão mais famosa de ‘A Bela e a Fera’, obra-prima da Disney faz 30 anos

No aniversário do histórico filme, o ANIMA LabJor homenageia o longa animado que estreou ainda inacabado e marcou gerações

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Elisa Soares

Ilustração feita com base em uma das cenas do filme ‘A Bela e a Fera’. Arte: Elisa Soares

No dia 29 de setembro de 1991, participantes da 29ª edição do New York Film Festival foram convidados a assistir à primeira sessão do mais novo longa-metragem do estúdio Walt Disney Feature Animation. Assim que o projetor começou a rodar, a tela foi preenchida por uma floresta em preto e branco. As diversas camadas de lápis se movimentavam, conduzindo o espectador por árvores de grafite, até chegar à torre de um castelo onde, por um instante, vislumbrou-se um vitral colorido. Mas, antes mesmo que o narrador pudesse contar a história de um príncipe esnobe amaldiçoado por uma bela feiticeira, a cor abandonou a cena, seguida por outras artes de vitral descoloridas. Quando a Fera foi revelada, eram apenas traços em movimento, revelando tudo atrás dela. Toda a cena continuou em preto e branco enquanto o terraço onde a Fera se lamentava ficou gradualmente mais distante para revelar um triste castelo. Até que as luzes se apagaram e o título do filme em tinta dourada envolto por um círculo de flores foi revelado: A Bela e a Fera.

Comparação entre a versão finalizada e a versão em storyboard da cena da música ‘Be Our Guest’. Foto: Reprodução Twitter Disney

Se isso lhe soa estranho é porque a versão de A Bela e a Fera transmitida no festival estava apenas 70% completa e os outros 30% eram compostos por testes de animação e storyboards, fato inédito para os estúdios Disney. Esse evento foi, simultaneamente, o resultado de uma produção conturbada e o início de 30 anos de muito sucesso, que marcaram a história da animação e dos musicais para sempre, além das várias pessoas que cresceram com a obra. Dessa forma, as três décadas não fizeram nada além de elevar o status do filme como um importante marco histórico que merece ser celebrado tanto em suas complicações quanto em suas conquistas, pois carrega uma rica história de tamanho insuperável.

Mas, há 30 anos, enquanto os responsáveis pela produção do filme se encontravam na primeira sessão em Nova York, o futuro não se mostrava nada além de incerto. Aquela transmissão representou um enorme risco para a companhia, porém um passo necessário para assegurar-lhe que estava indo na direção certa. Felizmente, todo o medo desapareceria a partir da rolagem dos créditos, seguida por dez minutos de aplausos em pé.

A escolha de Nova York como campo de teste provou ser ideal. Inicialmente, o anúncio da presença de um filme dos estúdios Disney levantou muitas sobrancelhas, já que o festival, até então, focava em filmes estrangeiros ou de menor orçamento, distanciando-se do mainstream hollywoodiano, do qual a Walt Disney Company já era um dos maiores símbolos. Mas foi justamente essa qualidade do público que o fez perfeito para receber o filme inacabado, e vice-versa.

Rascunhos da Fera pelo animador Aaron Blaise. Foto: Reprodução Twitter Aaron Blaise

Como se assistisse a uma peça de teatro, o público ovacionava o filme ao fim de cada número musical. E ficou extasiado ao ver as diversas camadas de um processo de produção que, até então, era acessível apenas a quem tivesse interesse em trabalhar na área. Dessa forma, A Bela e a Fera acabou se provando como muito mais que um produto infantil, quebrando o estigma que os estúdios Disney haviam adquirido.

Quando o filme estreou para o grande público três meses depois, já em sua versão completa, a aclamação foi tão grande quanto. E se expressou tanto na bilheteria — de US$ 331 milhões, frente os US$ 25 milhões de orçamento original — quanto na crítica, que o tornou o primeiro filme de animação a ganhar o Globo de Ouro de melhor comédia ou musical e o fez ser indicado ao Oscar de melhor filme. Tudo isso uma década antes da criação da categoria de melhor animação para ambas as premiações.

Concept art da cena do ataque dos lobos. Imagem: Divulgação

QUERENDO VIVER NUM MUNDO BEM MAIS AMPLO

Capa de edição inglesa de ‘A Bela e a Fera’ de 1874. Imagem: Wikimedia Commons

Para que A Bela e a Fera chegasse a esse ponto, a jornada foi longa. A ideia de adaptar o clássico de 1740 da francesa Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve já vinha do próprio Walt Disney (1901–1966), que a propôs na década de 1930. Porém essa adaptação se mostrou complexa, pelo fato de a história original ter um formato repetitivo e parado, adequado à audiência do século 17, mas inapropriado ao cinema hollywoodiano. Com isso, o projeto acabou engavetado de vez na década de 1950. Pouco foi revelado ao público sobre as tentativas de Walt, mas é certo que elas não chegaram a influenciar o trabalho do filme de 1991, já que quase ninguém da equipe posterior teve acesso aos materiais das antigas produções.

No período em que A Bela e a Fera ficou na gaveta, várias outras adaptações cinematográficas foram produzidas. A de maior destaque foi a do diretor francês Jean Cocteau (1889–1963), lançada em 1946. Um dos marcos do cinema francês, sua influência afeta o cinema e o teatro até os dias atuais — como é o caso da obra Angels In America de Tony Kushner (EUA, 1991), que o referencia em uma cena de sonho do protagonista, no qual ele se vê como a Belle. A adaptação dos estúdios Disney tampouco escapou de sua influência. Os elementos estéticos da obra de Cocteau serviram de referência para o castelo da Fera e seu personagem Avenant teria inspirado Gaston, ausente das versões literárias originais.

Entre as outras versões, também é interessante apontar a primeira adaptação animada de A Bela e a Fera. Foi The Scarlet Flower, de Lev Atamanov (União Soviética, 1952). Já em termos musicais há uma coprodução israelense-americana de 1987, parte de uma série de quatro adaptações de contos de fada.

A diferença da versão de 1991 para as outras é justamente a forma com que incorporou os elementos musicais. A ideia de Howard Ashman (1950–1991) de tratar o filme como uma produção da Broadway acabaria mudando o rumo de todas as produções seguintes dos estúdios Disney. Esse formato se integrou perfeitamente à história, pois ajudou a solucionar o grande problema de toda adaptação: o tempo da evolução do romance entre os protagonistas. Para que o público acredite na evolução da Fera como personagem e o desenvolvimento do romance com a Bela, é preciso transmitir a noção de que se passou um período expressivo de tempo, o que os cortes de cena aplicados no filme e a disposição das músicas acabam por criar — na versão estendida, a música Humano Outra Vez favorece ainda mais essa relação. Além disso, o elemento musical também contribui muito para um romance por permitir que os personagens expressem seus sentimentos internos, como é o caso da música Alguma Coisa Acontece, em que o público é apresentado aos pensamentos românticos dos dois protagonistas.

Apresentações do que poderia ser um novo filme dos estúdios Disney baseado no conto francês começaram a acontecer na empresa em 1983. Mas, antes de se tornar um musical, ele passaria anos de mão em mão, agregando novos artistas enquanto os antigos o deixavam e transitando por formas bem estranhas ao produto final.

Rascunhos da Fera em uma das cenas do filme, por Aaron Blaise. Foto: Reprodução Twitter Aaron Blaise

ESTAMOS VENDO ALGUMA COISA ACONTECER

Foi apenas em 1987 que a primeira proposta de história seria aprovada pelos executivos do estúdio Disney. A partir daí, iniciou-se a busca por diretores e roteiristas. Primeiramente, o projeto foi oferecido a Richard Williams, recém saído da direção de animação de Uma Cilada para Roger Rabbit (EUA, 1988). Mas ele o recusou para trabalhar em The Thief and the Cobbler (EUA, 1992) para a Warner Bros e recomendou para o lugar o diretor Richard Purdum.

Junto à roteirista Linda Woolverton e um pequeno time de artistas, Purdum passaria seis meses em Londres desenvolvendo sua versão, que resultaria em um animatic — vídeo juntando todas as imagens do storyboard —de 19 minutos conhecido como o Purdum Reel.

A história apresentada está bem longe daquela que cativaria a audiência do festival nova-iorquino anos depois. Passando-se em 1709, a história seguia na mesma linha do conto original ao apresentar Belle como a filha de um comerciante falido após o naufrágio de seus navios, com a adição de uma irmã mais nova e uma tia maldosa, que pretende casá-la com um aristocrata, Gaston. Todas as personalidades diferem bastante e o foco do filme parece se perder, sem saber equilibrar o cômico com o dramático, de forma a gastar mais da metade do animatic nas trapalhadas de Maurice e seu cavalo em sua primeira visita ao castelo da Fera, habitado por objetos vivos porém mudos.

Ao final do Purdum Reel, torna-se claro o porquê da decisão de jogar tudo o que se tinha fora, sendo a falta de foco, o tom sombrio e parado e a ausência de charme os grandes destaques. O ano era então 1989 e os estúdios Disney vivenciavam o início do período conhecido como seu “renascimento”, com o sucesso de A Pequena Sereia, de Ron Clements e John Musker (EUA, 1989). Dessa forma, na tentativa de salvar o projeto de A Bela e a Fera, chamou-se a dupla responsável por esse novo sucesso, o letrista Howard Ashman e o compositor Alan Menken, os quais se juntaram aos dois diretores novatos Gary Trousdale e Kirk Wise.

Uma das cenas iniciais do filme “A Bela e a Fera”. Imagem: Divulgação

COMO UMA CANÇÃO PARA ‘A BELA E A FERA’

Foi da decisão de incluir música no filme que muito dele tomou forma. Linda Woolverton, nos extras do DVD de A Bela e a Fera, conta como os objetos animados falantes seriam o resultado da pergunta de Howard Ashman: “E quem irá cantar minhas músicas?” Já a carreira de Maurice como inventor seria fruto do desejo do letrista de incluir uma música sobre a feira de invenções, cortada por fugir muito do foco do filme. Ademais, devido à sua visão de tratar animações como musicais da Broadway, as decisões de elenco também sofreram sua influência, optando por escolher atores do teatro que pudessem tanto atuar quanto cantar — feito raro na animação atual.

Letrista Howard Ashman e compositor Alan Menken. Foto: Reprodução Twitter Disney

A força que Ashman exerceu sobre a produção foi tão forte que toda a pré-produção — relacionada a diálogos e música, sem a animação — acabou se mudando para Nova York, a fim de ficar perto de sua casa, já que ele acabou impossibilitado de viajar por causa dos efeitos da Aids. Todo o seu trabalho no filme foi realizado enquanto os efeitos do HIV iam gradualmente o afetando. Ele morreu antes de ver qualquer semblante do filme, em 14 de março de 1991, mas trabalhou até os últimos dias de vida — auxiliando, por telefone, a atriz Paige O’Hara durante as últimas gravações musicais, com a música Alguma Coisa Acontece. Ao fim dos créditos do filme, consta uma homenagem a Ashman.

O tamanho de seu legado é imensurável, pois rendeu não só um filme extraordinário como influenciou todos os filmes de animação musicais que o seguiram. Na premiação da academia, foi recompensado com três indicações na categoria de melhor música pelas letras de Belle, Be Our Guest e da premiada da noite: Beauty and the Beast. Isso o tornou a primeira vítima de Aids reconhecida no Oscar, ainda no auge do estigma contra a infecção. Quem recebeu o prêmio em seu nome foi Bill Lauch, seu namorado, que no discurso falou que o ambiente de aceitação e amor nos estúdios foi o que o ajudou a trabalhar durante um período tão difícil e é esse ambiente que todos os pacientes de Aids “não só precisavam, como mereciam”. Foi um momento extremamente relevante na história da premiação, por trazer à tona um grande tabu da época.

E ENTÃO TUDO VAI PARA O SEU LUGAR

Além de relevante socialmente, o filme também foi extremamente marcante no que se refere à animação, colocando-se como um dos precursores do uso da animação 3D, técnica ainda em sua infância, integrando-a com o 2D na cena de baile. Não foi o primeiro a mesclar as duas técnicas, já que em As Peripécias do Ratinho Detetive, de Ron Clements, John Musker, Burny Mattinson e David Michener (EUA, 1986), elas também foram utilizadas para fazer as engrenagens do Big Ben. Entretanto, A Bela e a Fera deu nova escala ao 3D pelos complexos movimentos de câmera se mesclando perfeitamente com os movimentos de dança também complexos.

Icônica cena do baile que mescla 3D e 2D. Imagem: Divulgação

Ainda assim, por causa do conturbado percurso de pré-produção, os prazos apertaram. Consequentemente, o processo de animação se tornou uma corrida para acabar o filme, que afetou principalmente seus animadores, colocados sob enorme pressão para finalizar os trabalhos. Um dos resultados disso foi a “reutilização” de cenas, como a dança no fim do filme entre Bela e o príncipe em sua forma humana feita a partir do movimento da dança final de A Bela Adormecida, de Eric Larson, Wolfgang Reitherman, Clyde Geronimi e Les Clark (EUA, 1959). Outro caso notório foi a revelação do príncipe Adam após sua transformação — a falta de comunicação resultante da correria levou às instruções de pintura erradas, que não sombrearam seu rosto da maneira certa, deixando-o estranho ao público, pelo fato de a incidência de luz não condizer com a posição da cabeça.

Cena com os personagens Horloge e Lumiere. Imagem: Reprodução Twitter Disney

Mesmo assim, nos dois meses entre a primeira sessão de 29 de setembro e seu lançamento mundial, em 22 de novembro, o filme conseguiu completar aqueles 30% que faltavam. Completamente finalizado, tornou-se um grande sucesso e conquistou a terceira maior bilheteria da América do Norte em 1991.

VAMOS ENTÃO BRINDAR PARA HOMENAGEAR

Apesar de todos esses altos e baixos, o sucesso do produto final é inegável. No âmbito da animação, ele imortalizou as vantagens da mescla entre animação 3D e 2D, atualmente utilizada com muita frequência, em especial para animar veículos e outros elementos de movimentação rápida.

Além disso, concretizou junto à A Pequena Sereia a estrutura musical na animação, responsável pelo sucesso dos filmes que o sucederam na década de 1990, que ficou conhecida como a “Renascença” dos estúdios Disney — transitando para outros estúdios e influenciando filmes como Anastasia, de Gary Goldman e Don Bluth (EUA, 1997). Porém o sucesso de A Bela e a Fera foi além, tornando-o o primeiro de vários filmes da empresa a ser adaptado em um musical da Broadway em 1994, o qual seria encenado em duas temporadas diferentes em São Paulo.

Teatro da Broadway, em Nova York, apresenta o musical em 2006. Foto: Matanya/ Wikimedia Commons

Um ano após o sucesso de sua primeira sessão, em 30 de outubro de 1992, o filme seria lançado em sua versão completa em VHS, simultaneamente a um lançamento separado que trazia apenas a versão incompleta, junto a um documentário de making of e um vídeo explicando os quatro estágios da produção de um longa-metragem de animação. Já em Laserdisc, de acordo com o LaserDisc Database, o lançamento da versão do New York Film Festival curiosamente veio em 24 de novembro de 1992, enquanto que a versão finalizada só seria lançada no dia 29 de setembro de 1993.

Já em 2002, com a criação dos DVDs, lançou-se uma edição especial com três versões de A Bela e a Fera: a inacabada da primeira sessão, o lançamento completo original e uma versão estendida, incluindo a música Ser Humano Outra Vez. Originalmente, essa música havia sido dispensada por conflitar com o prosseguimento da história, mas, como Alan Menken conta no áudio-comentário desse DVD, foi recolocada no filme após seus produtores a verem no musical da Broadway. Em 2010, seria lançada uma edição especial em DVD, simultaneamente a um Blu-Ray, que também incluem as três versões. Atualmente, o filme pode ser encontrado no serviço de streaming Disney+, mas só em sua versão de lançamento de 1991 — as versões inacabada e estendida continuam exclusivas aos consumidores de mídia física.

Ainda assim, em seu maior legado nesses 30 anos, o filme continua a marcar a vida de quem o assistiu, independentemente da versão. Desde a ovação no New York Film Festival de 1991, várias pessoas já se sentiram inspiradas e transformadas por A Bela e a Fera. Não é difícil prever, portanto, que essas três décadas são apenas o início de uma história que deve se tornar tão antiga quanto o tempo.

PARA SABER MAIS

A Bela e a Fera (Estados Unidos, 1991): Disponível na Disney +. Preço da mensalidade: R$ 27,90.

DVD duplo A Bela e a Fera — Edição Especial, de 2010, traz áudio com comentários dos diretores.

Tale As Old As Time: The Making of Beauty And The Beast: documentário extra do DVD de 2002.

Waking Sleeping Beauty, de Don Hahn (EUA, 2010), disponível na plataforma Disney Plus.

Beyond Beauty: The Untold Stories Behind the Making of Beauty and The Beast: documentário extra do DVD e Blu-ray de 2010, também disponível na plataforma Disney Plus.

Howard, de Don Hahn (EUA, 2018), disponível na plataforma Disney Plus.

Elisa Soares é aluna de Animação da FAAP

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Um laboratório de informação: Descobrimos e contamos histórias que dão sentido ao presente.