O Corpo Dela e Outras Farras, de Carmen Maria Machado
O ano já começou e as metas para o novo ciclo, estabelecidas ainda no final do ano anterior, vão se tornando cada vez mais difíceis de serem alcançadas. Se você é uma daquelas pessoas que prometeu que esse ano você leria mais, mas até agora ficou passando por stories do Instagram que não acrescentaram em nada na sua vida, essa resenha é para você. O Corpo Dela e Outras Farras, de Carmen Maria Machado, pode ser uma boa pedida para começar com o pé direito seu cronograma de leitura — ainda mais se dentro da sua meta está “ler mais mulheres”.
O livro de estreia da americana chega ao Brasil com o selo Minotauro, da Editora Planeta, mesmo selo do livro O Poder, de Naomi Alderman. Com O Corpo Dela e Outras Farras, Carmen Maria Machado foi finalista do National Book Award, vencedora do Lambda Literary Award — maior premiação literária do cenário LGBTQ — e entrou na lista das 15 mulheres da Nova Vanguarda da ficção pelo jornal The New York Times.
Os contos de Corpo Dela e Outras Farras
O Corpo Dela e Outras Farras traz oito contos narrados por mulheres: “O Ponto do Marido”, “Inventário”, “Mães”, “Especialmente Hediondas”, “Mulheres de verdade têm corpos”, “Oito bocados”, “A Residente” e “Difícil em festas”. É interessante como Carmen traz protagonistas heterossexuais, bissexuais e homossexuais para seus contos, fugindo do lugar-comum de casais hétero.
Nos contos, a relação das mulheres com seus próprios corpos e com as expectativas da sociedade nos dá alfinetadas por vezes leves e, por outras, bem profundas. O conto que abre o livro, “O Ponto do Marido”, mostra a trajetória de uma adolescente que se apaixona por um rapaz. Tudo parece perfeito e seguindo conforme o planejado, até que ele insiste em tirar uma fita verde que ela usa no pescoço desde a infância.
“Uma esposa não deveria guardar segredos do próprio marido”, diz ele.
“Não tenho nenhum segredo”, digo.
“A fita.”
“A fita não é um segredo; apenas é minha.”
“Você nasceu com ela? Por que a sua garganta? Por que é verde?”
Não respondo.
Ele permanece em silêncio por um longo minuto. E então,
“Uma esposa não deveria ter segredos.”
Meu nariz fica quente. Não quero chorar.
“Eu lhe dei tudo o que você sempre pediu”, digo. “Não posso ter uma única coisa?”
“Eu quero saber.”
“Você acha que quer saber, mas não quer”, retruco.
“Por que você quer escondê-la de mim?”
“Não estou escondendo. Ela só não é sua.”
Já no conto “Oito bocados”, a protagonista é uma mulher que decide fazer uma cirurgia de redução de estomago para finalmente se encaixar no padrão e se sentir bonita. O conto trata a relação dela com as irmãs — todas fizeram a cirurgia -, e com a filha, que acaba tendo uma relação conturbada com a mãe e não aprova o procedimento. Mas o foco principal do conto é justamente a relação da protagonista com o próprio corpo — e o que começa a rondar sua vida depois da cirurgia.
Diante da panela vazia, eu estava cansada. Cansada das mulheres magérrimas da igreja que arrulhavam e tocavam nos braços umas das outras e me diziam que eu tinha pele bonita e de ter que virar o quadril de lado para atravessar salas como se estivesse passando por cima de alguém no cinema. Cansada das luzes implacáveis dos provadores; cansada de olhar no espelho e agarrar as coisas que eu odiava e erguê-las, cravando os dedos, e depois deixar que despenquem e de tudo doer. Minhas irmãs foram para algum outro lugar e me deixaram para trás e, como sempre, tudo o que eu queria era segui-las.
Eu não conseguia fazer com que oito bocados funcionassem para o meu corpo, então eu faria o meu corpo funcionar para oito bocados.
O Corpo Dela e Outras Farras mistura realismo, ficção, horror e mistério em contos que retratam diferentes facetas dos dilemas femininos contemporâneos. O livro é uma boa pedida para quem quer começar a meta de leitura aos poucos, lendo um conto de cada vez. Quando você menos esperar, o livro já terá acabado — mas sua mente com certeza ficará nele mais um tempo, digerindo os contos de Carmen.
