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Violência Psicológica: quando a base do iceberg emerge

Carolina Pulice
Lado M
Published in
4 min readDec 3, 2019

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Quando falamos sobre feminicídio, falamos somente sobre a ponta do iceberg da violência contra a mulher. Uma base gelada, escondida no oceano, é muito maior e fere também muito nós mulheres, todos os dias, nos nossos lares.

É a violência psicológica.

Os exemplos são muitos. Na verdade, acaba de acontecer na minha casa, entre meu pai e minha mãe. Uma briga boba sobre não trazer gente desconhecida para fazer orçamento de serviços diversos em casa acabou mostrando o lado mais machista e perverso do meu pai. Ele apelou para as amigas da minha mãe, e disse que ela também não deveria trazê-las para casa, já que era a vontade de ambos não deixar pessoas circulando pela parte interna da residência.

Os casos entre meus pais duram anos, e talvez tenham começado antes mesmo deles se casarem.

Eu tentei entender, tentei interferir (como fiz agora há pouco), e levei muitas vezes para a terapia. Mas vi que muitas vezes eu era incapaz de trazer uma solução plausível.

Assim como com nossa faxineira, que se demitiu há duas semanas porque disse “que estava trabalhando demais e se esquecendo dos filhos”. O discurso pronto, transmitido por alguém e incorporado por ela como sua opinião foi nossa primeira suspeita. Que depois, ligando os fatos, se concretizou.

O marido dela estava fazendo pressão psicológica para ela se demitir.

A história, em resumo, foi a seguinte: A., de 34 anos, foi contratada pelos meus pais para ser nossa funcionária. Ela passou a ganhar mais e ter estabilidade. Junto com o trabalho aqui em casa, passou a fazer enfeites e lembrancinhas para escolas. O dinheiro começou a entrar, e ela se viu mais empoderada e independente. Vendo que seu marido não era muito chegado às responsabilidades e com o casamento desgastado, pensou em se separar.

A filha, de seis anos, disse que não queria que os pais se separassem. É claro, que filho quer?

Juntou-se a isso pressões da sogra e do próprio marido, e sei que, por tudo isso, o resultado desta história foi o não divórcio e o início de uma relação sádica entre A. e seu marido. O primeiro passo deste homem, que aqui será chamado de R., foi dizer que daria seu salário por completo para A., que deveria administrar totalmente a casa.

A pressão financeira, junto com a psicológica pesaram sobre A., que começou a dar sinais de depressão. Um dia ela não aguentou e tomou uma cartela inteira de comprimidos de um antidepressivo.

O resultado, que poderia ser pior, foi o de que A. sucumbiu aos desejos alheios. Ela chegou na segunda-feira na casa dos meus pais e declarou que iria se demitir. Ela não voltou mais a trabalhar aqui. Neste momento em que escrevo, já se passaram duas semanas depois desta conversa. Hoje, seu marido mandou mensagem para minha mãe, dizendo que ela estava muito mal, diagnosticada com esquizofrenia e com depressão profunda, e que deveria ser internada em uma clínica.

Minha mãe, preocupada, ligou para a irmã de A., para saber até que ponto ela estava realmente naquele estado.

A irmã confirmou nossa suspeita: R. era um homem extremamente manipulador, que fazia a cabeça de A. para seu próprio interesse, e que A. não estava tão mal assim. Esta irmã piorou ainda mais a situação: disse que A. nunca conseguia ficar em nenhum emprego por causa dele, e que ele mentia sobre sua real situação médica. As irmãs e a mãe de A. estavam cansadas de avisá-la de que a situação não era boa, e que ela deveria se separar de R. Elas ainda alertavam que ele mal caráter, e por isso se afastariam de A.

A historiadora Lilia Schwarcz, em seu livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, separa um inteiro capítulo sobre violência de gênero. Mas ela escreve um trecho que me chamou muita atenção, e que explica, em parte, a causa da violência contemporânea contra as mulheres. Diz ela: “Quanto mais as mulheres vão conseguindo impor sua independência e autonomia, tanto maior tem sido a reação masculina e as demonstrações de misoginia”.

Mas A. nunca ouviu suas irmãs. E sempre permaneceu ao lado de R.

Ai então volto para o caso inicial deste texto. Minha mãe está casada há quase 35 anos com meu pai. A. tem dois filhos com R., e preferiu se demitir do que encarar a situação.

Uma triste semelhança: tanto A. quanto minha mãe têm depressão.

Esses são somente dois casos de violência psicológica, e aposto que quem ler este texto se lembrará de tantos outros que pode ter presenciado ao longo da vida. Não é fora do comum saber de mulheres que sofrem pressão psicológica dos maridos. E como lidar com isso?

O que fazer em situações como essa?

Eu, no caso, gritei com meu pai. Gritei muito, como se eu expressasse uma raiva de anos, daquele todo acúmulo de pressão que eu presenciei. Não sei se adiantou alguma coisa, se eu ajudei muita minha mãe, se eu me ajudei, se eu ajudei meu pai a perceber seus erros. Mas também não sei como ajudar. Não sei qual é a solução para casos deste tipo. E por isso faço um apelo: aqueles que trabalham com questões de gênero, que já passaram por situações como essa, por favor, falem. Compartilhem as experiências de sucesso, as políticas públicas que garantem que o Estado pode ajudar em alguma coisa, psicólogos que tratem sobre misoginia de uma forma aceitável para homens e mulheres.

Caso contrário, continuaremos vendo e ouvindo casos dessa violência psicológica que tanto nos afeta. E podemos acabar vendo essa violência se tornar algo ainda pior, passando dos tristes casos de psicologia e depressão para a violência e a morte. E então voltaríamos para a ponta do iceberg.

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Carolina Pulice
Lado M
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Jornalista que adora discutir sobre tudo com todo mundo, e de escrever sobre todas essas coisas que se tem pra se discutir