Rose McGowan: entre heroína e vilã

Rose McGowan encara controvérsia após expor abusos de Harvey Weinstein

Lado M
Published in
8 min readMar 12, 2020

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Nesta quarta-feira (11), o fundador da gigante Miramount Pictures foi condenado a 23 anos de prisão, e deverá ser incluso na lista oficial de agressores sexuais dos Estados Unidos.

Após meses de julgamento e décadas de importunação e assédio contra mulheres de Hollywood, Harvey Weinstein foi declarado culpado pelos crimes de agressão sexual e estupro em fevereiro deste ano. Na tribuna, a assistente de produção Mimi Haleyi e a ex-atriz Jessica Mann descreviam em pavoroso detalhe a violência que sofreram do premiadíssimo produtor de cinema.

Do lado de fora, repórteres, cinegrafistas e populares acompanhavam o desenrolar do processo que levaria à condenação de Weinstein. E, junto a eles, algumas das mais de 80 mulheres que acusaram-no de algum crime sexual.

À frente delas, uma figura imponente, destemida e definitivamente controversa: a multiartista Rose McGowan.

Hoje com 46 anos, ela tinha apenas 24 quando aceitou um convite de Harvey Weinstein para uma conversa profissional num quarto de hotel. Lá o produtor estava hospedado para o Festival de Cinema de Sundance, nos Estados Unidos.

Mais tarde, este se provaria o modus operandi do cineasta. Outras dezenas de atrizes, produtoras, figurinistas e aspirantes seriam chamadas, nos anos seguintes, para verdadeiras armadilhas em quartos de hotel com Weinstein. McGowan não foi a primeira e, infelizmente, não seria a última vítima.

Ela foi, entretanto, uma das primeiras a vir a público com uma acusação direta ao ex-dono da Miramount Pictures. Após assinar um acordo monetário com Weinstein ainda no ano de seu estupro, 1997, Rose manteve sua história para si por vinte anos até decidir contá-la.

Ela disse

Já fora do circuito de Hollywood, a ex-atriz contatou o jornal The New York Times pouco antes de publicar uma série de tuítes onde acusava Weinstein de tê-la estuprado e culpava os estúdios Amazon por ignorar sua denúncia.

“Eu contei ao diretor do estúdio que HW [Harvey Weinstein] me estuprou. Eu disse de novo e de novo. Ele falou que não haviam provas”, escreveu em 2017. “Eu disse que eu era a prova”.

O cineasta negou a denúncia de Rose. Negaria, também, todas as dezenas de acusações que surgiriam nos anos seguintes, e que marcariam a ascensão do movimento #MeToo e a queda de Harvey Weinstein.

Rose também iniciaria uma nova ascensão junto ao movimento de mulheres que romperam silêncio perante seus abusos na indústria do entretenimento. Mas sua “queda”, perante setores da opinião pública, ocorre ainda antes daquela de seu abusador.

Rose na série Charmed

Com o impacto de sua acusação, a artista obteve atenção pouco comparável à que havia recebido durante sua carreira como atriz. Emancipada aos 15, McGowan coleciona participações em pequenos filmes de terror e produções adolescentes, com destaque para Pânico (1996) e Jovens Bruxas (1998). Sua breve carreira perdeu impulso após o acordo com Harvey Weinstein — que teria promovido um boicote à jovem, impactando para sempre sua chance de conseguir papéis.

Em sua autobiografia, a ex-atriz descreve sua curta passagem por Hollywood como pertencer a um culto. Este não seria o primeiro culto em sua vida.

A Família

Rose Arianna McGowan nasceu em uma fazenda no interior da Itália, filha de dois membros da “Família Internacional”. Assim é conhecido, atualmente, a seita religiosa dos “Filhos de Deus” (Children of God), que surgiu na Califórnia em 1968. Sob mentoria de David “Moses” Berg, a “Família” acreditava no incentivo à prática sexual como forma de cultivar “amor” — mesmo que isso significasse o estupro de menores de idade.

Em “Brave” (adjetivo para “coragem”), sua autobiografia, Rose declara ter sido abusada sexualmente na infância, e conta sentir desde muito jovem que não pertencia àquele meio. Aos nove anos de idade, num momento de lucidez por parte de seu pai, ela e sua família conseguem fugir da moradia coletiva na sede da Família.

À revista People, em 2011, antes de revelar suas experiências com o poderoso CEO da Miramount Pictures, McGowan contou a cinematográfica história de sua vida e dos resquícios da mentalidade que aprendeu na infância.

“Muito da minha carreira e relacionamentos é completamente baseado no que acho que Deus quer que eu faça. Isso me apavora.”

Em seu livro, ela conta que ter crescido parte de um culto a faz vê-los “em todo lugar” — inclusive em Hollywood. Durante sua carreira como atriz, ela recorda “estar presa por ideais e expectativas sociais e de gênero, colocadas em mim por pessoas que não deveriam ter permissão para chegar perto de mim”. “Eu rejeitei a lavagem cerebral no começo da vida, mas depois, o ‘culto de pensamento’ de Hollywood me pegou”.

Seus próximos anos de vida seriam divididos entre cidades dos Estados Unidos, dividindo casas com sua mãe ou com seu pai e, eventualmente, fugindo de ambas. Aos 15 anos, Rose deixou um apartamento precário onde vivia com o pai e partiu para Los Angeles, onde iniciou seu processo de emancipação. A independência dos parentes levaria a jovem às ruas, morando ora em abrigos, ora em vielas californianas, ora com colegas que cruzavam seu caminho.

Os dias nas ruas ajudariam a construir a personalidade vibrante de McGowan. Suas palavras frequentemente duras, o olhar pujante e a atitude combativa lhe renderam inimizades e críticas entre defensores de Weinstein e outros abusadores, mas também entre outras mulheres de Hollywood.

Polêmicas

Mais determinada do que nunca a utilizar a voz que conquistou após sua denúncia, Rose passou a defender vocalmente seus ideais e condenar vorazmente atitudes que lhe caíam mal. A impulsividade da artista foi responsável por gafes e frases mal construídas que viriam a deteriorar sua imagem de símbolo da luta anti-violência de gênero — e seus pedidos de desculpa raramente repercutiram tanto quanto seus erros.

Em 2018, questionada sobre seu posicionamento sobre cis e transgeneridade (ou seja, identificar-se ou não com o gênero que lhe foi designado ao nascer), McGowan enfezou-se e discutiu com uma mulher trans ativista durante um evento em Nova York.

O vídeo da interação viralizou, proporcionando à escritora uma maré de críticas e “cancelamento”. Rose desculpou-se em entrevista posterior, afirmando ser “uma mulher mais velha de Hollywood” em “processo de aprendizado e evolução”.

A ítalo-americana passou a criticar, desde sua denúncia inicial, a maneira como veículos de imprensa e celebridades de Hollywood respondiam às revelações sobre o cineasta Harvey Weinstein. Por diversas vezes, McGowan acusou veículos de roubar seu protagonismo como vítima, e utilizar sua história para lucrar ou ganhar prêmios. Ela também aponta “hipocrisia” na reação de colegas de profissão, afirmando que muitos deles sabiam sobre o abuso que Rose e outras jovens mulheres sofreram nas mãos de Weinstein.

Autorretrato publicado em seu Instagram

Em sua conta no Twitter — espaço que se tornaria central para suas discussões e revelações futuras –, a ex-atriz indicou Ben Affleck como um grande nome do cinema norte-americano que ignorou suas queixas sobre o produtor. “´C*ralho! Eu falei para ele parar de fazer isso’. Você disse na minha cara. Na coletiva de imprensa que eu fui obrigada a ir depois do estupro. Você mente”, escreveu em tuíte de outubro de 2017.

Sua intriga mais recente envolveu a atriz Natalie Portman, que vestiu uma capa bordada com nomes de diretoras “esnobadas” pela Academia durante o Oscar 2020. Posando no tapete vermelho da cerimônia, a americana-israelense de 38 anos foi imediatamente elogiada por seu gesto “criativo” e “corajoso”.

O uso do último adjetivo, que também aparece como título do livro autobiográfico de McGowan, irritou a ativista. Em sua conta no Twitter, Rose escreveu poucas horas após a cerimônia: “O tipo de ativismo de Portman é profundamente ofensivo a nós, que realmente fazemos o trabalho”. Em tuíte já deletado, ela continua, destacando a baixa presença de mulheres diretoras na filmografia de Natalie e chamando o gesto da colega de “o tipo de protesto que é recebido com louvor pela grande mídia” e “mais para uma atriz interpretando o papel de alguém que se importa, como muitas delas fazem”.

Portman defendeu-se, afirmando que tentou múltiplas vezes trabalhar com mulheres diretoras e que, de fato, seu gesto não mereceu ser chamado de “corajoso”: “‘Coragem’ é um termo que associo mais às ações das mulheres que têm deposto contra Harvey Weinstein nas últimas semanas, sob pressão inacreditável”.

Rose publicou esclarecimento após a resposta de Natalie, afirmando que sua crítica deveria ter se dirigido não à atriz, mas à cultura de silenciamento em Hollywood. Mais tarde, excluiu sua retratação.

O julgamento

Em 6 de janeiro, quase três anos após sua primeira denúncia pública, Rose McGowan ressurge junto à outras seis vítimas de Harvey Weinstein que esperavam o início do julgamento em Nova York.

Do alto de seus 1,63m, envolvida por um casaco de frio vermelho-sangue, McGowan falou confiante à imprensa que costuma desafiar. O destinatário de sua fala, no entanto, era o homem prestes a ser julgado. “Você achou que poderia me aterrorizar para que ficasse quieta. Você estava errado”, disse. Diante de outras mulheres para sempre marcadas por seus encontros com o produtor, ela finalizou:

“Nós nos erguemos das suas cinzas. Nos erguemos juntas”.

Vítimas de abuso por Harvey Weinstein em frente ao tribunal / Reuters

Ainda alegando inocência, Weinstein compareceu às sessões utilizando um andador, aparentando fragilidade apesar de seus fortes 1,83m. Ele assistiu a depoimentos de múltiplas de suas vítimas, todas relatando similares padrões de violência.

A defesa do cineasta tentou inferir que, de toda a história, a verdadeira vítima era Weinstein. Que o solitário produtor de cinema foi usado e manipulado por mulheres que queriam avançar em sua carreira e que, ao não vê-lo mais como útil, tornaram-se contra ele.

Harvey safou-se de duas acusações: estupro em primeiro grau e agressão sexual predatória, que ocorre utilizando armas ou causando sérios danos à integridade física da vítima. O produtor foi condenado, todavia, pelos crimes de estupro em terceiro grau e agressão sexual em terceiro grau. Ele encara a pena máxima de 25 anos.

Aos 46 anos e conformada com o fim de sua carreira como atriz, Rose persegue outros sonhos. Após o lançamento de seu livro, ela passou a se dedicar à construção de uma carreira musical, ensaiada em 2007 e retomada com o disco “Planet 9”. Em suas duas contas no Instagram, ela revela gosto pelas artes plásticas e um talento para a fotografia, alternando entre autorretratos, peças abstratas e imagens de outras mulheres.

Seu legado como faísca das chamas que engoliram Harvey Weinstein e chamuscaram a cultura do estupro hollywoodiana não foi suficiente para lhe salvar da severa régua do julgamento online. No entanto, McGowan não se deixou calar pela Família Internacional ou pelo acordo de confidencialidade de seu algoz. Não esperemos que ela emudeça agora.

Rose segue, nem vítima nem heroína, errando e acertando pelo caminho.

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