Texto 07 — “Andar, Falar, Pensar”

Trechos do livro de Rudolf Steiner (transcrição de conferência proferida em 10 de agosto de 1923) — Tradução de Jacira Cardoso

Marcelo Voos
MARÉ Ubatuba
10 min readApr 19, 2017

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[esta seleção de trechos faz parte do nosso Percurso em Educação]

A explanação efetuada até agora não pretende meramente formular uma teoria sobre a necessidade de uma nova estrutura na educação, mas provocar o surgimento de algo como um tipo de mentalidade educacional.

Nas palestras anteriores eu quis falar menos ao intelecto e muito mais ao coração humano. E justamente isto é, para o educador, para o mestre, o mais importante e o mais essencial — pois, como já vimos, a arte da educação deve ter por base um conhecimento mais penetrante do homem.

Há muito tempo se ouve, quando o assunto é educação, sobre este ou aquele procedimento para com a criança. O preparo pedagógico consiste frequentemente em mandamentos e regras, de certa forma teóricas, a respeito de como tratar o aluno.

Desta maneira, porém, nunca é cultivada a plena dedicação do docente e educador a seu ofício; tal só ocorre quando ele tem a possibilidade de realmente penetrar na entidade humana inteira, constituída de corpo, alma e espírito. (…)

Por esta razão é tão difícil falar sobre a chamada Pedagogia Waldorf — pois a Pedagogia Waldorf não é exatamente algo que se possa aprender, sobre o qual se possa discutir: é pura prática, e pode-se realmente apenas relatar, através de exemplos, como a prática é utilizada em cada caso ou necessidade.

A própria prática surge a partir da experiência imediata, pois é imprescindível haver o conhecimento humano adequado quando se parte dessa convicção.

Ora, pedagogia e didática já constituem, em certo sentido, uma questão social marcadamente ampla — pois a educação da criança deve realmente começar logo após o nascimento. Isto nada mais significa senão que a educação é atribuição de toda a Humanidade, de cada família, de cada comunidade humana.

Mas justamente isto nos ensina, no mais intenso grau, o conhecimento da própria natureza infantil antes do início da troca dos dentes, ao redor dos sete anos. Um escritor alemão, Jean Paul — Friedrich Richter — , fez uma esplêndida afirmação ao dizer: “Nos três primeiros anos o homem aprende muito mais para a vida do que nos três anos acadêmicos” (em sua época havia apenas três).

De fato, antes de mais nada os três primeiros anos de vida — e consequentemente os demais até o sétimo — são de suma importância para o desenvolvimento integral do homem, pois a condição humana da criança é totalmente diversa de uma condição posterior.

A criança é de fato, nos primeiros anos, um organismo totalmente sensorial. E necessário recorrer a expressões drásticas quando se quer realmente desvendar toda a verdade.

Na vida posterior o homem experimenta o sabor do alimento com a boca, com o palato, com a língua. Na criança isto não ocorre, especialmente nos três primeiros anos, quando o sabor atua através de todo o organismo. A criança saboreia até com os membros o leite materno e a primeira alimentação.

O que em idade posterior ocorre na língua, na criança se processa em todo o organismo. (…)

Isto parece extravagante, mas por estranho que pareça corresponde exatamente à verdade. E se o elevarmos um grau acima, captaremos a vivência da criança em suas funções físicas. O sabor acompanha todas essas funções, e da mesma forma se estende a todo o organismo da criança algo que normalmente se localiza apenas nos olhos e nos ouvidos.

Imagine-se o que de maravilhoso há num olho: como este capta o colorido do mundo exterior, formando interiormente uma imagem que nos permite ver. Isto é localizado, estando à parte de nossa vivência global. E então compreendemos com o intelecto aquilo que o olho cria de forma admirável e do qual é elaborada uma silhueta mental.

Igualmente maravilhosos são os processos localizados no ouvido do homem adulto.

Porém, tudo o que no adulto está localizado nos sentidos distribui-se, na criança, por todo o organismo.

Consequentemente inexiste, na criança, qualquer separação entre espírito, alma, corpo; tudo o que atua do exterior é reproduzido interiormente. A criança reproduz, pela imitação, tudo o que a circunda.

Tendo isto em mente, observemos como são adquiridas pela criança, nos primeiros anos, três atividades — três faculdades — que condicionarão toda a sua vida: andar, falar, pensar.

O andar é — poderíamos dizer — uma abreviatura, uma curta expressão de algo muito mais abrangente. Dizemos que a criança aprende a andar pelo fato de este aspecto ser o mais evidente. Mas este aprender a andar implica colocar-se em posição de equilíbrio diante do mundo espacial.

Enquanto crianças pro curamos a postura ereta, procuramos colocar as pernas em tal relação com a força da gravidade que com isto possamos obter o equilíbrio. Tentamos o mesmo com os braços e as mãos. Todo o organismo se orienta.

Aprender a andar significa encontrar as direções espaciais do mundo e nelas engajar o próprio organismo.

Trata-se aqui de observarmos da maneira correta como a criança é um ser sensorial imitativo — pois nos primeiros anos de vida tudo tem de ser aprendido através da imitação, captado pela imitação do meio ambiente.

Ora, é evidente a maneira como o organismo faz brotar de si próprio as forças orientadoras, como o organismo do homem está apto a colocar-se em posição vertical, não permanecendo, como ao engatinhar, em posição horizontal, e a utilizar os braços de forma adequada, em equilíbrio diante do mundo espacial. Tudo isto é inerente à criança, originando-se, por assim dizer, dos próprios impulsos do organismo.

Quando começamos, como educadores, a introduzir coação, por mínima que seja, naquilo que a natureza humana individual quer, quando não compreendemos ser necessário deixá-la livre e sermos apenas os guias auxiliares, prejudicamos então a organização humana para toda a vida terrena.

Quando, portanto, obrigamos erroneamente a criança a andar através de métodos externos, não nos limitando a ajudá-la — querendo, ao contrário, pressioná-la a andar, a ficar de pé, — prejudicamos sua vida até à morte — especialmente na idade mais avançada.

Pois numa verdadeira educação não se trata de simplesmente olhar para o momento presente da criança, mas de considerar toda a vida humana até à morte.

Precisamos saber que na idade infantil se encontra o germe de toda a vida humana terrena.

Ora, a criança, por ser um organismo sensorial extraordinariamente delicado, é sensível não somente às influências físicas de seu meio ambiente, mas principalmente às influências mentais.

Por mais paradoxal que possa parecer à mentalidade materialista, a criança sente o que pensamos à sua volta. E é importante não somente que, como pais ou educadores, evitemos atitudes impróprias visíveis, mas que sejamos interiormente verdadeiros e permeados de moral em nossos pensamentos e sentimentos — os quais a criança sente e capta.

É que ela estrutura seu ser não somente de acordo com nossas palavras ou ações, mas segundo nossa atitude moral, nosso desempenho mental e afetivo.

E para a primeira época da educação infantil até o sétimo ano, é sumamente importante o ambiente à sua volta. (…)

Quando se vê, numa criança, o organismo orientar-se para ficar ereto, para andar; quando se atenta com íntimo sentimento de amor para esse maravilhoso segredo do organismo humano, que é capaz de progredir da posição horizontal para a vertical; quando se tem o sentimento religioso de postar-se com tímida veneração diante das forças criadoras divinas que orientam a criança no espaço; quando, em outras palavras, lá se está como guia auxiliar no andar, no aprender a orientar-se, como quem ama intimamente a natureza humana no ser infantil à medida que acompanha com amor cada manifestação dessa natureza humana, produzem-se na criança forças sadias, ainda visíveis justamente num metabolismo sadio entre os cinqüenta e os sessenta anos, quando é necessário controlar esse metabolismo.

Este é, pois, o segredo da evolução humana: aquilo que em certa etapa da vida é anímico-espiritual torna-se posteriormente físico, manifesta-se fisicamente depois de muitos anos.

Isto basta sobre aprender a andar. Uma criança amorosamente conduzida a andar torna-se uma pessoa sadia. E empregar o amor no aprendizado do andar contribui consideravelmente para a educação corporalmente sadia da criança.

O falar desenvolve-se a partir da orientação no espaço. (…)

A maneira como a criança aprende a andar, a orientar-se no espaço, como aprende a converter os primeiros e indeterminados movimentos dos braços em gestos conseqüentes, relacionados com o mundo exterior, tudo isso se transporta através da misteriosa organização interna do homem para a organização da cabeça, manifestando-se na fala.

Quem é capaz de discernir estas coisas sabe que cada som, especialmente cada som palatal, soa diferentemente numa criança que tropeça ao andar e numa criança que caminha firme. Todo o matizado da fala é devido à organização motora.

A vida se manifesta primeiramente em gestos, e os gestos transformam-se interiormente no elemento motor da fala. Assim, o falar é um resultado do andar, isto é, do orientar-se no espaço. E do fato de levarmos amorosamente a criança a andar é que muito dependerá sua maneira de dominar a fala. (…)

Ora, a criança aprende também a falar primeiramente através de todo o seu organismo. Considerando o assunto desta forma, temos em primeiro lugar o movimento exterior, o movimento das pernas, que provoca o contorno forte; o articular dos braços e das mãos, que produz a flexão, a plasticidade das palavras. Vemos como é transformado interiormente, na criança, o movimento exterior em movimento da fala.

E se no aprendizado do andar a ajuda que prestamos como guias auxiliares deve ser impregnada de amor, em nossa ajuda no aprendizado da fala é necessário sermos interiormente verdadeiros.

A maior falsidade da vida se engendra enquanto a criança aprende a falar, pois aí a veracidade da fala é captada pelo organismo físico. Uma criança diante da qual, como educadores e mestres, nos expressamos sempre sinceramente como seres humanos, ao imitar o meio ambiente assimilará a linguagem de tal forma que nela se intensificará a atividade realizada no organismo enquanto inspiramos e expiramos. (…)

E uma das falsidades consiste no fato de acreditarmos fazer bem à criança reduzindo-nos, pela fala, ao nível infantil. Em seu inconsciente, porém, a criança não quer ser interpelada em linguagem infantil — quer ouvir, isto sim, algo que corresponda à autêntica linguagem do adulto. Falemos, portanto, à criança como estamos habituados, e evitemos uma linguagem infantil especialmente dirigida.

Por causa de suas limitações, a criança inicialmente apenas imita balbuciando aquilo que se lhe diz; mas não devemos, nós próprios, imitá-la — pois este é o máximo deslize.

E quando acreditamos dever empregar o balbucio da criança, sua linguagem imperfeita, prejudicamo-lhe os órgãos da digestão. É que todo elemento espiritual se toma físico, penetra formativamente na organização física. (…)

Exatamente como o falar surge do andar, do apalpar, do movimento humano, surge depois o pensar, a partir da fala. E é necessário que, durante a orientação auxiliar para o andar, embebamos tudo em amor; que nos dediquemos — porque a criança imita interiormente o que se realiza ao seu redor — , durante o aprendizado da fala, à mais sólida veracidade; e que, assim, façamos predominar a clareza em nosso pensar ao redor da criança, para que esta, sendo toda ela um órgão sensorial, reproduza interiormente, no organismo físico, também o elemento espiritual, com o qual possa extrair da fala um pensar correto.

O maior prejuízo que podemos causar à criança ocorre quando, à sua volta, damos qualquer ordem que depois revogamos dizendo algo diverso, confundindo então as coisas.

Provocar confusão pelo pensar em presença da criança é a verdadeira raiz daquilo que, na atual civilização, chamamos de nervosismo.

Por que tantas pessoas de nossa época são nervosas? Simplesmente pelo fato de os adultos não haverem pensado de forma clara e precisa ao seu redor, quando elas, após haverem aprendido a falar, aprenderam também a pensar.

Cada geração, ao evidenciar seus mais graves de feitos, é fisicamente uma cópia fiel da geração precedente. E quando se observam certas falhas dos próprios filhos numa época posterior da vida, essa observação deve constituir um pouquinho de razão para um autoconhecimento — pois é por um processo muito íntimo que tudo o que ocorre ao redor da criança se expressa na organização física.

Amor no aprendizado do andar, veracidade no aprendizado da fala, clareza e determinação durante o aprendizado do pensar transformam-se, nessa fase da infância, em organização física. Os vasos e órgãos se estruturam da mesma forma como se desenvolvem o amor, a veracidade e a clareza no meio ambiente.

As enfermidades metabólicas são a consequência da ausência de amor no aprendizado do andar. Os distúrbios digestivos podem ser o resultado de um tratamento insincero quando a criança começa a falar. O nervosismo resulta, na vida, do pensar confuso ao redor da criança.

Quando se observa como predomina o nervosismo nesta terceira década do século XX, só se pode deduzir que deve ter reinado uma forte confusão nos educadores por volta do início do século. Pois tudo o que então era comportamento confuso através do pensar constitui o nervosismo atual.

E, por sua vez, o nervosismo que as pessoas tiveram na virada do século nada mais era senão a imagem da confusão por volta de 1870. Estas coisas podem ser observadas de tal forma que nem a fisiologia, a higiene ou a psicopedagogia estejam isoladas, e que o professor não necessite chamar o médico a cada ocasião relacionada com saúde; tais coisas podem ser tratadas de forma que a pedagogia fisiológica e a higiene escolar, a fisiologia escolar sejam um todo, assumindo o professor em sua missão, em sua tarefa, também aquilo que a atuação espiritual representa para o organismo sensorial físico.

Porém, visto que todas as pessoas são educadores para a idade entre o nascimento e o sétimo ano de vida, situamo-nos também diante da tarefa social decorrente do fato de ser absolutamente necessário um verdadeiro conhecimento do homem para que a Humanidade empreenda um caminho ascendente, e não uma descida.

[Esta seleção de trechos faz parte do Percurso em Educação, do grupo MARÉ — Ubatuba.]

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