Texto 10 — “Sociedade sem Escolas”

Trechos do livro de Ivan Illich, escrito em 1970

Marcelo Voos
MARÉ Ubatuba
6 min readSep 9, 2016

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[esta seleção de trechos faz parte do nosso Percurso em Educação]

Muitos estudantes, especialmente os mais pobres, percebem intuitivamente o que a escola faz por eles. Ela os escolariza para confundir processo com substância. Alcançado isto, uma nova lógica entra em jogo: quanto mais longa a escolaridade, melhores os resultados(…)

O aluno é, desse modo, «escolarizado» a confundir ensino com aprendizagem, obtenção de graus com educação, diploma com competência, fluência no falar com capacidade de dizer algo novo. Sua imaginação é «escolarizada» a aceitar serviço em vez de valor.

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Não apenas a educação, mas também a própria realidade social tornou-se escolarizada. (…) O medicar-se a si próprio é considerado irresponsabilidade; o aprender por si próprio é olhado com desconfiança; a organização comunitária, quando não é financiada por aqueles que estão no poder, é tida como forma de agressão ou subversão. A confiança no tratamento institucional torna suspeita toda e qualquer realização independente.

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A escola se apropria de dinheiro das pessoas e da boa vontade disponível, para então desencorajar outras instituições a que assumam tarefas educativas. O trabalho, o lazer, a política, a vida na cidade e mesmo a vida familiar dependem da escola, por causa dos hábitos e conhecimentos que pressupõem, em vez de converterem-se nos meios de educação. E ainda, tanto as escolas como as outras instituições que dela dependem atingem custos vultosos.

(…)

Instrução é a escolha de circunstâncias que facilitam a aprendizagem. A atribuição das funções exige uma série de condições que o candidato deve preencher se quiser atingir o posto. A escola fornece instrução, mas não aprendizagem para essas funções. Isto não é nem razoável, nem libertador. Não é razoável porque não vincula as qualidades relevantes ou competências com as funções, mas apenas o processo pelo qual se supõe sejam tais qualidades adquiridas. Não é libertador ou educacional porque a escola reserva a instrução para aqueles cujos passos na aprendizagem se ajustam a medidas previamente aprovadas de controle social.

O currículo sempre foi usado para consignar um posto social. Às vezes podia ser pré-natal: o karma lhe determina uma casta e a linhagem o insere na aristocracia. Podia tomar também a forma de um ritual, de uma seqüência hierarquizada de ordenações sacras; ou consistia numa sucessão de feitos na guerra ou caça; e posteriormente podia até depender de uma série escalonada de favores do príncipe. A escolaridade universal visava a separar a atribuição de funções da história pessoal individual. (…) Contudo, ao invés de igualar as oportunidades, o sistema escolar monopolizou sua distribuição.

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O sistema escolar repousa ainda sobre uma segunda grande ilusão, de que a maioria do que se aprende é resultado do ensino. O ensino, é verdade, pode contribuir para determinadas espécies de aprendizagem sob certas circunstâncias. Mas a maioria das pessoas adquire a maior parte de seus conhecimentos fora da escola; na escola, apenas enquanto esta se tornou, em alguns países ricos, um lugar de confinamento durante um período sempre maior de sua vida. A maior parte da aprendizagem ocorre casualmente e, mesmo, a maior parte da aprendizagem intencional não é resultado de uma instrução programada.

As crianças normais aprendem sua primeira língua casualmente, ainda que mais rapidamente quando seus pais se interessam. A maioria das pessoas que aprendem bem outra língua conseguem-no por causa de circunstâncias especiais e não de aprendizagem seqüencial. Vão passar algum tempo com seus avós, viajam ou se enamoram de um estrangeiro. A fluência na leitura é também, quase sempre, resultado dessas atividades extracurriculares. A maioria das pessoas que lê muito e com prazer crê que aprendeu isso na escola; quando conscientizadas, facilmente abandonam esta ilusão. (…)

Durkheim dizia que o fato de se dividir a realidade social em dois campos foi a verdadeira essência da religião antiga. Há, dizia ele, religiões sem o sobrenatural e religiões sem deuses, mas nenhuma que não subdivida o mundo em coisas, tempos e pessoas que são sagrados e outros que, conseqüentemente, são profanos. A constatação de Durkheim pode ser aplicada à sociologia de educação, pois a escola é, também, numa perspectiva bem semelhante, absolutamente divisória.

A simples existência da escolaridade obrigatória divide qualquer sociedade em dois campos: certos períodos de tempo, processos, serviços e profissões são «acadêmicos» ou «pedagógicos», outros não. O poder de a escola dividir a realidade social não tem limites: a educação torna-se não-do-mundo e o mundo torna-se não-educativo. (…)

A freqüência escolar preserva as crianças do mundo cotidiano da cultura ocidental e as mergulha num ambiente bem mais primitivo, mágico e muito sério. A escola não poderia criar tal ambiente em que as normas da realidade comum ficam suspensas, a não ser mediante o encarceramento dos jovens em recinto sagrado durante muitos anos sucessivos. A lei da freqüência obrigatória possibilita à sala de aula servir de ventre mágico, donde a criança é libertada periodicamente, ao final do dia ou ao findar do ano escolar, até que seja, finalmente, expelida para a vida adulta.

(…)

O sistema escolar de hoje desempenha a tríplice função, própria das poderosas igrejas no decorrer da História. É simultaneamente o repositório do mito da sociedade; a institucionalização das contradições desse mito; o lugar do rito que reproduz e envolve as disparidades entre mito e realidade. O sistema escolar, hoje, e sobretudo a universidade, oferece grande oportunidade para criticar o mito e para rebelar-se contra suas perversões institucionais.

Mas o rito que exige tolerância das fundamentais contradições entre mito e instituição ainda permanece inquestionável, pois nem a crítica ideológica e nem a ação social podem fazer surgir uma nova sociedade. Unicamente o desengano seguido de uma ruptura com o rito social central e a reforma desse rito pode trazer mudanças radicais. (…)

Nenhuma sociedade conseguiu sobreviver sem ritos ou mitos, mas a nossa sociedade é a primeira a necessitar de uma tão estúpida, prolongada, destrutiva e dispendiosa iniciação em seus mitos. A civilização mundial contemporânea é também a primeira que achou preciso racionalizar seu rito de iniciação fundamental em nome da educação. Não podemos iniciar uma reforma educacional sem antes compreender que nem a aprendizagem individual e nem a igualdade social podem ser incrementadas pelo rito escolar. Não podemos superar a sociedade de consumo sem antes compreender que a escola pública obrigatória recria tal sociedade, não importando o que nela seja ensinado.

(…)

A descoberta de que a maioria da aprendizagem não requer ensino jamais poderá ser manipulada ou planejada. Cada um é pessoalmente responsável por sua própria desescolarização; unicamente nós temos o poder de fazê-lo.

(…)

Os recursos educacionais são geralmente rotulados de acordo com as metas curriculares dos educadores. Proponho fazer o contrário, rotular quatro diferentes abordagens que permitam ao estudante ter acesso a todo e qualquer recurso educacional que poderá ajudá-lo a definir e obter suas próprias metas:

1°) Serviço de consultas a objetos educacionais — que facilitem o acesso a coisas ou processos que concorrem para a aprendizagem formal. Algumas coisas podem ser totalmente reservadas para este fim, armazenadas em bibliotecas, agências de aluguéis, laboratórios e locais de exposição tais como museus e teatros; outras podem estar em uso diário nas fábricas, aeroportos ou fazendas, mas devem estar à disposição dos estudantes, seja durante o trabalho ou nas horas vagas.

2°) Intercâmbio de habilidades — que permite as pessoas relacionarem suas aptidões, dar as condições mediante as quais estão dispostas a servir de modelo para outras que desejem aprender essas aptidões e o endereço em que podem ser encontradas.

3°) Encontro de colegas — uma rede de comunicações que possibilite as pessoas descreverem a atividade de aprendizagem em que desejam engajar-se, na esperança de encontrar um parceiro para essa pesquisa.

4°) Serviço de consultas a educadores em geral — que podem ser relacionados num diretório dando o endereço e a autodescrição de profissionais, não-profissionais, «free-lancers», juntamente com as condições para ter acesso a seus serviços. Tais educadores, como veremos, podem ser escolhidos por votação ou consultando seus clientes anteriores.

[Esta seleção de trechos faz parte do Percurso em Educação, do grupo MARÉ — Ubatuba.]

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