A relação entre a educação infantil e o ciclo da pobreza

Bruno Oliveira
Revista Marginália
5 min readFeb 24, 2021

Ainda que não seja obrigatório a matrícula de crianças em creches, a existências delas é fundamental para que as crianças (principalmente entre 0 e 3 anos) sejam educadas logo cedo, que sejam socializadas e que permitam aos pais serem economicamente ativos tendo a certeza de que seus filhos estão sendo adequadamente educados e bem cuidados. Um dos grandes defensores da educação infantil, foi o prêmio Nobel de Economia James Heckman: para ele investir na educação infantil é o caminho para a prosperidade de um país. Crianças de famílias pobres que tem acesso a educação desde cedo possuem renda 25% maiores que a média, enquanto as crianças que não tem acesso estão fadadas ao ciclo intergeracional da pobreza [1].

Situação da pobreza na primeira infância [Imagem: ONU]

É uma fase em que o cérebro se desenvolve em velocidade frenética e tem um enorme poder de absorção, como uma esponja maleável. As primeiras impressões e experiências na vida preparam o terreno sobre o qual o conhecimento e as emoções vão se desenvolver mais tarde. Se essa base for frágil, as chances de sucesso cairão; se ela for sólida, vão disparar na mesma proporção. Por isso, defendo estímulos desde cedo — James Heckman

As creches possuem, portanto, um papel social e econômico na nossa sociedade. Desta forma, famílias mais vulnerabilidades possuem naturalmente maior necessidade para acesso a esse serviço (que é dever do Estado), mas não é isso que vemos na realidade. Na prática, esse ainda é um serviço parcialmente restrito a população mais abastada e com isso a oferta de creches pelo Estado perde parte de sua função social — por mais que se aumente o número de vagas, o acesso ainda é desigual:

Desigualdade na matrícula em creches [1]

Há ainda uma substancial ignorância sobre o tema. Algumas décadas atrás, a própria ciência patinava no assunto. A ideia que predominava, e até hoje pesa, é que a família deve se encarregar sozinha dos primeiros anos de vida dos filhos. A ênfase das políticas públicas é na fase que vem depois, no ensino fundamental. E assim se perde a chance de preparar a criança para essa nova etapa, justamente quando seu cérebro é mais moldável a novidade — James Heckman

O Plano Nacional de Educação prevê que sejam ofertadas vagas de creches para até 50% das crianças entre 0 e 3 anos de idade. E essa proporção é alcançada apenas na população mais rica da sociedade (55% vide imagem acima), mas está muito longe da população mais pobre (26%). Então, não basta apenas chegar nesse 50% da meta, mas é preciso que quem mais precise seja contemplado nessa oferta de vagas.

Qual o tamanho da desigualdade no acesso ao ensino infantil?

Se uma meta global de oferta de vagas não é suficiente para acabar com a desigualdade , alguns pesquisadores criaram índices com o INC (Índice de necessidade de acesso a creche) [2] que considera grupos mais vulneráveis na conta da real necessidade de acesso ao serviço de creches.

INC (zona urbana) = CFP + CFM + CFMA

INC = Índice de necessidade de acesso de creche

CFP = proporção de crianças de zona urbana em famílias pobres

CFM = proporção de crianças em zona urbana não pobres em famílias monoparentais

CFMA = parcela de população de crianças em zona urbana não pobres, em famílias mono parentais, cuja mãe seria economicamente ativa caso houvesse oferta de vagas em creches

Então, através do cálculo do INC e levando em consideração o número de vagas que são efetivamente ofertadas atualmente, verificamos que a diferença hoje está em pelo menos 15 pontos percentuais — mas isso pode variar entre as diferentes características das diferentes regiões do país.

Cálculo do INC no Brasil [2]
A diferença entre demanda x oferta e as diferenças entre cada região [1]

A primeira infância e a pandemia

As medidas de lockdown, quarentena e isolamento social, nesse cenário de pandemia, trazem novos desafios para a educação na primeira infância — principalmente problemas funcionais e comportamentais.

Efeitos da pandemia nas crianças [3]

Uma das alternativas utilizadas pelas creches e escolas é o ensino a distância (EaD). E ainda que eu seja um dos defensores de recursos de ensino a distância, os estudos não costumam indicar esse recurso para crianças em primeira infância — elas possuem a necessidade de experiências mais concretas, que normalmente o ensino a distância (ao menos por enquanto) não é capaz de prover totalmente.

Limitações do EaD na primeira infância [3]

Além da questão pedagógica que é diretamente afetada pela pandemia, as famílias mais vulneráveis sofrem ainda mais com essa situação: mais vulneráveis a fome, mais vulneráveis a violência, mais vulneráveis a falta de afeto e socialização, mais vulneráveis a desestrutura familiar e mais vulneráveis a abuso de qualquer natureza. A quantidade de obstáculos é enorme para que uma criança pobre possa prosperar no futuro sem uma educação infantil de qualidade (agravada ainda mais pela situação que vivemos hoje).

O fechamento (físico) das creches causam problemas às famílias vulneráveis [3]

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Referências:

[1] Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Desafios do acesso à creche no Brasil. 2020.

[2] Laboratório Digital Educacional. Desafios atuais da educação infantil brasileira. 2021.

[3] Núcleo de Ciência pela Infância (NCPI). Repercussões da Pandemia de COVID-19 no Desenvolvimento Infantil. 2020.

Este texto é mais um dos artigos que tentam demonstrar em números e fatos, que a desigualdade é algo estrutural e que precisa ser combatida. Veja também a desigualdade entre gerações, preconceito em algoritmos de computadores, letramento financeiro no PISA e inclusão financeira.

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Bruno Oliveira
Revista Marginália

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.