Interpretando O Poço (2020) — e a crítica das grandes teorias

Uma crítica sobre os significados e interpretações do filme O Poço (2020) — da Netflix

Bruno Oliveira
Revista Marginália
9 min readMay 3, 2020

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Goreng e seu exemplar de Don Quixote são os protagonistas de O Poço (2020)

Quando Mills cunha o emergente movimento que ocorria nos EUA, na década de 60, de “Nova Esquerda” — não era só uma autocrítica aos velhos políticos que aparentavam desprezar a justiça e liberdade, mas ele queria que aquele movimento se tornasse mais acessível, que houvesse engajamento público e político que não ficasse restrito apenas a uma elite intelectual, mas que alcançasse todas as classes e demografias. Mills menciona [1] que o elitismo intelectual cerca a participação política de “Grandes Teorias” que quase sempre fogem das percepções e conhecimentos do dia a dia — alguém que vive aquela rotina diária, acaba vivendo numa realidade muito distante das “Grandes Teorias”.

Bordwell trouxe essas ideias para o mundo das críticas de cinema. Bordwell defende [2] a crítica em questões de nível médio, principalmente ligadas ao processo cinematográfico exógeno, na relação do filme com seus espectadores — o foco no “senso-comum” da realidade manifesta da obra pode render uma crítica que com certeza não é comum, e atinge cada espectador em sua própria realidade. E se voltar a “questões de nível médio”, não significa uma crítica rasa ou incompleta. O que Mills dizia [1] era que os intelectuais devem sempre manter sua postura crítica e reflexiva diante da realidade, mas sempre participante dos debates e da vida pública, de forma a compartilhar esse conhecimento com a população.

Para Bordwell e Thompson, em A Arte do Cinema [3], a crítica de cinema, no que tange a interpretação de uma obra, deve ter então quatro diferentes significados que podem ser absorvidos na experiência: referencial, explícito, implícito e sintomático. Todos eles referem-se a níveis diferentes de abstração da história, e é aquilo que permite ao filme ter as famosas “várias camadas”. Então, vamos fazer uma análise (obviamente, com diversos spoilers) de O Poço através dessas camadas de significados:

Significado Referencial

O significado referencial está relacionado ao que acontece factualmente na história, tudo o que pode ser visto da forma mais concreta. Basicamente refere-se ao que acontece na história, as premissas, quem são os personagens, o que ocorre com eles e o desfecho de cada um.

O Poço é uma prisão em formato de masmorra vertical, dividido em diversos andares, onde os presos vivem em dupla e são alimentados esporadicamente por uma plataforma que começa dos andares superiores e parte para os inferiores. Como a comida na plataforma é limitada, os presos nos andares inferiores sofrem com a escassez de comida, que é consumida sem consciência e pudor pelos presos dos andares superiores. A falta de comida obriga a todos por uma luta desumana por sobrevivência. Os personagens trocam de andares fortuitamente todos os meses, e depois de presenciar diversas situações desagradáveis na prisão e tentar, sem sucesso, buscar pela idealística "solidariedade espontânea", há uma tentativa de quebrar a lógica do local. Dois dos personagens do sexto andar, resolvem, por um dia, descer com a plataforma, e tentar fazer com que os presos dos andares superiores fiquem de jejum para que os de baixo possam se alimentar. Mas a ideia não sai como o planejado, entretanto ainda que ao custo de suas vidas, eles tentam mandar uma mensagem para a administração do local - em um final que não foi exatamente conclusivo.

Apesar de ser o significado menos abstrato e mais aparente, ele não é menos importante. O significado referencial é o que te faz prender na história, é o que dá sentido e cria o fluxo da narrativa, quanto maior o número de referências mais fácil é se prender ao filme — e nesse caso, maior a chance de perceber um número significativo de detalhes.

Os restos para os andares inferiores (e as pessoas que descem)

Significado explícito

É a mensagem clara que a história quer apresentar, o que ele quer dizer. A partir de todo o significado referencial, o que é possível extrair como lição, comparação, sugestão e/ou denúncia da história que está sendo contado.

A posição da pessoa no poço é instável. As vezes você está em cima, as vezes embaixo. O filme diz que existem três tipos de pessoas na prisão: os de cima, os de baixo e os que caem. Essa frase é importante pois já apresenta a hierarquia "social" como característica, mas que a única movimentação possível é a queda. Há também referências religiosas em várias partes, e a existência de 333 andares (e 666 presos) mostram o quanto aquilo foi projetado simbolicamente para ser infernal.A solidariedade espontânea também é mencionada frequentemente e funciona quase como a única esperança para alguns dos personagens. No final, alguns tentam propor ações práticas para tentar implementar essa "solidariedade". Nesse ponto, temos dois aspectos: (i) um sistema sem uma "entidade" reguladora automaticamente premia quem está nos níveis mais altos - uma representação de um livre mercado, onde os recursos são escassos, e os privilegiados se esbaldam no sacrifício dos menos afortunados (pirâmide social). Um simples gesto de empatia (como racionar comida) é visto como um ato de rebeldia (um gesto comunista), e a sobrevivência só é possível através da violência e da morte de vários; (ii) mesmo com uma estrutura social instável, onde um dia você está em cima, e no outro você está embaixo, o orgulho, egoísmo e revanchismo tomam conta, e mesmo assim a sobrevivência só é possível através da violência e da morte de vários; e (iii)na tentativa de repartir igualmente os recursos para todo mundo, eles também tem que recorrer a violência, e a sobrevivência só é possível através da violência e da morte de vários; O modelo de organização não resolve a situação, se não houver mudanças estruturais no sistema - e as vezes essa solução não pode ser encontrada apenas no diálogo.E é interessante como as referências religiosas ao longo de todo o poço é o que parece dar sustentação a esse domínio. Ainda que pareça claro que o diálogo não funciona na resolução dos conflitos (vide significado explícito), a tentativa dos presos de tentar ajuda da administração é justamente com uma mensagem - ou seja, o diálogo. (e o final do final foi propositalmente cortado para deixar na dúvida se isso realmente iria funcionar - como numa fé em algo que não vai acontecer). É como se a religião/fé evitasse essa grande mudança estrutural e tentasse sempre nos velhos erros conservadores.A única certeza do poço é que a Administração sempre estará em cima (e ela nunca tem consciência), e os presos, independente da sua posição sempre estarão embaixo. Mesmo os presos dos andares superiores achando que são a elite do lugar, eles sempre estarão abaixo da Administração, e só vai comer o que a Administração decidir o que eles comam (além deles decidirem o seu destino no próximo mês) - é como uma classe média, que é igualmente oprimida, mas vive relativamente confortável para mudar o status quo.

Esse é o significado que normalmente vira o hype do filme. É aquele que normalmente vemos comentado nas conversas em redes sociais, é o que dá um tempero especial a narrativa do filme.

Os funcionários da Administração

Significado implícito

É a parte da mensagem do filme que não está tão clara para o espectador. Que na maioria das vezes exige maior aprofundamento do que está sendo dito e narrado e da busca de itens subliminares. Exige um conhecimento que por vezes extrapola o próprio filme, pois exige intertextualidade e entendimento do contexto da obra.

Outro ponto implícito extremamente relevante é o Don Quixote (a história do livro que está presente em toda a história). O clássico espanhol de Miguel de Cervantes conta a história de um nobre, que de tanto ler romances de cavalaria, sai no mundo para imitar seus heróis e ser um cavaleiro. A relação do significado implícito do filme com o do livro é imediata, há choques frequentes entre o idealismo do personagem e a dura realidade. E esse conflito já acontece logo no começo do filme: enquanto a maioria dos presos levam armas e objetos úteis para a sobrevivência, o nosso protagonista leva apenas um livro para passar o tempo - um verdadeiro golpe do moinho de vento. Se no poço só existem os que estão em cima, os que estão embaixo e os que caem, e este último é apresentado inicialmente como a pior opção (pois joga fora toda a esperança de viver e não da oportunidade do companheiro de andar fazer uso de sua morte), no final é visto como o único caminho para fugir do sistema. Sair do lugar de privilégio e descer ao encontro das realidades mais duras parece ser o caminho para que nosso protagonista entenda a real situação (saber o número de andares, algumas regras da plataforma e a existência da criança). O idealismo precisa de uma dose de realidade para fazer sentido.

Os significados implícitos são extremamente pessoais, cada pessoa encara a obra de um jeito e possui suas próprias referências e experiências de vida que a levam a se apropriar daquela arte de maneira muito pessoal — cada espectador passa a ser, nesse nível de abstração, o próprio autor da obra. Fica a cargo de cada um fazer o paralelo do que seria a Administração Central na nossa realidade.

Sancho Panza e Don Quixote

Significado sintomático

É a identificação da ideologia da história. Para identificar a ideologia, temos que assumir, como ponto de partida, os significados explícitos e implícitos que adotamos para a obra. Esses significados passam a ser os sintomas de algo maior, dessa ideologia que está por trás do filme.

Considerando que os sintomas apresentados no filme é (i) da dominação estrutural por uma entidade (Administração) que não se submete as mesmas regras das demais e as oprime, e também de que (ii) o idealismo, por si só, não é suficiente para garantir a sobrevivência das pessoas, sempre é necessário uma boa dose de realidade; então a ideologia desse filme é quase um chamado para a ação. De sair do mundo das ideias, e adotar cada vez mais a prática para realmente mudar a situação em que vivemos.Todos nós somos um pouco "quixotescos", principalmente quando entramos em conflitos com nossos iguais enquanto imaginamos que somos diferentes. Se conscientizar que estamos todos no mesmo barco e que a opressão parte de outro lugar, é um caminho para que a prática seja direcionada naquele sentido. Que a estrutura que sustente a Administração, seja ela quem for, seja repensada na própria realidade. É a nova esquerda de Mills, mas sem o ar de messias ou quixotesco que é apresentado no filme,mas um ar de luta e consciência.Cabe ressaltar, que o título do filme (El Hoyo, em espanhol, e O Poço, em português) foi traduzido nos EUA para The Platform ("A Plataforma"). A mudança do título mata uma das principais ideias do filme: como poço, a imagem de que só é possível cair é mais forte, como plataforma parece que reacende a esperança de que é possível subir e se juntar a quem está lá em cima. Me parece uma clara tentativa de mudança da ideologia do filme (ainda que sútil) para tentar encaixar na cultura daquele país. A guerra de classes existe mas, na maioria das vezes, apenas um lado tem consciência sobre ela.

Claro que identificar a ideologia não é uma tarefa tão simples. O que Bordwell tenta trazer é uma conexão entre os diferentes significados e os diferentes níveis de abstração na interpretação de obras cinematográficas. Não se analisa filmes com grandes teorias, como se tudo fosse algo fora de nossa realidade, mas o entendimento é moldado de acordo com a nossa relação com o filme e os diferentes níveis de significado em que vamos nos apropriando.

Goreng na mira da Samurai Plus

E aí, concorda? Você identificou outros significados explícitos, implícitos ou sintomáticos nesse filme? Com certeza existem vários outros significados espalhados nesta obra.

Diálogo do filme O Carteiro e o Poeta — mostrando como a arte pode possuir significados diferentes de acordo com o espectador e não tem problema ser diferente do significado original do autor

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Referências:

[1] MILLS, Charles. The sociological imagination. Oxford: Oxford University Press. 1959.
[2] ALCOROFADO, Ihering. David Bordwell e a Crítica Cinematográfica: Das Grandes Teorias à Poética do Cinema. Medium. 2019.
[3] BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: Uma introdução. 2013.

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Bruno Oliveira
Revista Marginália

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.