Processos de Individuação na História da Arte

O Movimento

Danilo Araujo
Revista Marginália
10 min readAug 6, 2020

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William Blake — The Great Red Dragon and the Woman Clothed with the Sun (1805)

Existem obras de arte que nos permitem ir além dos limites da contemplação e literalmente mergulhar em universos longínquos. Nossos sentidos são capturados por todo aquele conjunto semiótico de cores e tonalidades que dão forma a gloriosas ou mesmo singelas histórias de caráter universal quando falamos sob a perspectiva da cultura e do inconsciente coletivo.

Ao falar sobre a arte no geral, sempre acabamos caindo em divagações muito abstratas ou subjetivas para descrever processos de criação além da técnica.

Como forma de dar continuidade a um texto antigo sobre as indagações a respeito do que pode ser um corpo no âmbito do processo de criação artística, agora busco unir alguns elementos de caráter inconsciente dessa relação entre o homem e a arte.

Quebra de correntes

Ao longo de todos os movimentos que construíram suas tradições na história da arte, nos deparamos com diversos artistas que procuravam romper com o tradicionalismo presente na arte clássica, resultante de determinantes culturais do espírito do tempo de cada época.

A renascença, por exemplo, foi um período em que o racionalismo formal passou a engendrar as grandes pinturas e construções da época.

Além dos grandes nomes dessa época como Leonardo da Vinci e Michelangelo, podemos observar algumas figuras interessantes que se sentiam mais confiantes em experimentar novos formatos, indo na direção contrária de uma técnica exemplar para o estilo daquele tempo.

O maneirismo, movimento pós renascença, foi marcado por uma ausência de autenticidade nas obras da maioria dos artistas, justamente por apenas reproduzirem as maneiras de Michelangelo na pintura desenhando nus em diversas posições, etc.

Havia um sintoma de estagnação na arte após Leonardo da Vinci e Michelangelo. Era como se não houvesse nada mais a evoluir.

Em meio a diversos artistas da segunda metade do século XVI que procuravam seguir estilos diferentes e se descolarem das figuras dos mestres da época, eis que nos deparamos com Jacopo Robusti, conhecido como Tintoretto (1518–1594), um homem que estava cansado de cores belas e simples. Sentia falta de obras comoventes para contar as histórias bíblicas. Procurava estimular emoções nos olhos do espectador.

Podemos dizer que Tintoretto foi bem sucedido nessa jornada pela autenticidade ao pintar o quadro O Reencontro do corpo de São Marcos (1562), onde ele contava a história da transferência das relíquias de São Marcos de Alexandria (cidade dos ‘’infiéis’’ muçulmanos) para Veneza, onde o sacrário da Basílica de São Marcos foi construído para abrigá-las.

De acordo com a lenda, São Marcos havia sido bispo de Alexandria e estava enterrado em uma das catacumbas da cidade. Na missão de localizar seus restos mortais, os venezianos invadiram o local e, ao chegaram ao seu suposto túmulo, São Marcos apareceu-lhes de surpresa revelando os resquícios de sua existência em vida. No quadro, o santo aparece ordenando que os homens interrompam as buscas, pois sua presença já evidencia os milagres: o homem se contorcendo a direita está sendo liberto de um demônio que o possuía e que é visto escapando através de sua boca em um fio de fumaça. O nobre ajoelhado fazendo um gesto de gratidão é o mecenas, membro da confraria religiosa.

Com intensas tonalidades de luz e sombra, a obra é marcada por esse forte contraste operando entre o caos e o milagre.

Tintoretto — Reencontro do corpo de São Marcos (1562)

Michelangelo Merici de Caravaggio (1573–1610) foi um dos grandes precursores do Barroco e também aparece nesse momento de crise na arte ocidental. O pintor buscava uma fidelidade maior a natureza no momento em que estava a produzir algo.

Com profunda influência de Rafael (1483–1520), Caravaggio se encantava pela simplicidade contida em suas obras. Para ele, a verdade estava em como seus olhos enxergavam os gestos humanos, contemplados por uma feiura sutil e natural, tal como se mostravam. Suas obras quebraram a concepção de beleza ideal, tão presente na tradição clássica.

Caravaggio — The seven works of Mercy (1607)

Sem sombra de dúvidas, não poderia deixar de mencionar o enigmático Hieronymus Bosch (1450–1516), uma figura curiosa no que tange aos mistérios ocultos do inconsciente coletivo humano. Sua arte contém um forte impacto visual para quem as vê ou procura decifrá-las, de tal forma que torna-se possível enxergar um cosmos interior em suas pinturas, representado pelo céu e o inferno, fraquezas e virtudes, demônios representados por seres híbridos com corpo humano e cabeça de animal, etc.

Bosch — Christ in Limbo (1550)

Já o período que compreende o neoclassicismo e o romantismo é marcado por uma transposição de elementos extremamente sensíveis presente em algumas obras de arte. Francisco Goya (1746–1828) era outro desses grandes artistas que visavam percorrer caminhos mais profundos da criação artística. Assim como Bosch, Goya mergulhava em longínquos universos oníricos para que a reprodução de seus sonhos e pesadelos fosse a mais sincera possível no momento em que estivesse pintando.

Goya — O Sono da Razão produz monstros (1797–1799)
Goya — O Gigante (1818)

A obra O Gigante (1818), representava um de seus sonhos constantes: um gigante sentado em posição de reflexão e tormento na beira do mundo. O tormento talvez seja uma forma de representar as agonias de Goya em meio a guerra civil espanhola acontecendo na época, capturando reflexões acerca do destino de seu país sob a ode da loucura.

Ao fazer uma análise dessa obra, Ernst Gombrich em ‘’A História da Arte’’ diz:

Com efeito, esta foi a consequência mais evidente da quebra da tradição: os artistas sentiram-se livres para passar para o papel suas visões particulares, como até então apenas os poetas haviam feito. (pg. 371)

Outro artista deste período que vestiu o manto da liberdade como proteção singular e edificante, foi o inglês William Blake (1757–1827).

Desde quando começou a aprender sobre os grandes mestres do passado da arte, Blake sentia-se preso as velhas tradições e se permitiu de modo a deixar fluir sua magnífica capacidade de memória fotográfica para dar vazão a uma mitologia própria em metamorfose nos profundos campos de seu inconsciente. Esse limiar lhe permitia criar personagens míticos e poderosos como ‘’O Grande Dragão Vermelho e a mulher vestida com o Sol’’ (Primeira imagem).

Blake — Satan calling up his legions (1804)

Muito antes da psicanálise pensar em nascer, Blake já especulava algumas questões relativas ao inconsciente, porém, de forma representativa. Para ele a inconsciência era uma energia ativa de fontes universais, onde estavam presentes os elementos da verdade superior do homem como a dualidade entre o bem e o mal, o lado masculino e feminino (animus e anima na psicologia junguiana). Entretanto, encontrava-se preso as amarras da razão humana e das convenções religiosas. Sua arte representa essa busca pela libertação do ser interior, o verdadeiro Self, livre de toda e qualquer lei ou regra totalizante.

Em sua obra ‘’O Matrimônio do Céu e do Inferno’’, expressa seus sentimentos quanto a isso:

‘’Sem contrários não há progresso. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários à existência humana.’’

Podemos observar a negação da razão quando representada pelos símbolos trazidos pela psique, como forma de descrever o impulso interno do homem como uma expressão de divindade contra toda e qualquer filosofia que seja oposta. A grande verdade está no mais alto grau da inconsciência, assim era para William Blake.

Falando sobre esse interesse no inconsciente humano no momento em que a psicanálise nascia com Freud, indo de encontro com vastos universos oníricos, Salvador Dalí (1904–1989) talvez tenha sido o artista que mergulhou com mais afinco, ao ponto de ser o precursor de um dos movimentos mais intrigantes na história da arte: o surrealismo.

Dali — The Endless Enigma (1938)

Em ‘’A História da Arte’’, Ernst Gombrich fala da arte como uma atividade da alma ao debater as experimentações artísticas do século XVIII para frente com os impressionistas, expressionistas, Pablo Picasso com o cubismo, etc.

Gombrich, fala sobre como o artista abstrato Paul Klee (1879–1940) descrevia seus processos artísticos:

Paul Klee descrevia como as formas que iam emergindo de suas mãos pouco a pouco sugeriam à sua imaginação algum tema, real ou fantástico, e como ele seguia essas pistas quando pressentia que seriam úteis e não perturbariam suas harmonias, completando a imagem que ele havia encontrado.

(…) A natureza cria através do artista;o mesmo poder misterioso que gerou as formas estranhas dos animais pré históricos e o fantástico reino encantado da fauna das profundezas oceânicas ainda está ativo na mente do artista e faz crescerem as suas criaturas.’’ — Paul Klee, pg. 448–449

Klee — Fish Magic (1925)

O expressionismo com a arte abstrata, o cubismo de Picasso, dentre outros artistas modernos dessa vanguarda, tinham como objetivo dar ênfase maior a experimentação e na criação a partir do zero, de forma a quebrar pro completo os laços com escolas tradicionais anteriores. Porém, buscaram muitas referências na arte primitiva e pré histórica para tentar criar algo novo e singular. E essa busca pelo novo foi constante na arte modernista, o que acabou transformando-se em uma crise estética no futuro. Mas, o que quero deixar em evidência aqui é exatamente este movimento que a arte de vanguarda fez no início do século XX retornando ao que é primitivo, assim como o Renascimento que aparecia como um movimento de renovação na arte ocidental buscando influência em elementos da arte romana clássica.

O movimento em Jung

Carl Gustav Jung foi discípulo de Freud na teoria psicanalítica. Tinha muito interesse na mitologia e na cultura, afinal, a psicanálise nasce com a mitologia desde os primeiros estudos de Freud acerca do Complexo de Édipo. Porém, Jung foi um pouco mais longe que isso, desenvolvendo suas teorias com base em seu interesse na alquimia e em religiões (Inconsciente coletivo, arquétipos, etc.)

Em sua obra ‘’O Espírito na arte e na ciência’’, falava sobre o indivíduo como um instrumento para que a arte possa se manifestar:

Uma obra de arte não é apenas um produto ou derivado, mas uma reorganização criativa justamente daquelas condições das quais uma psicologia causalista queria deriva-la. A planta não é um simples produto do solo, mas um processo em si, vivo e criador, cuja essência nada tem a ver com as características do solo. Assim, a obra de arte deverá ser considerada uma realização criativa, aproveitando livremente todas as condições prévias. Seu sentido e sua arte específica lhe são inerentes e não se baseiam em suas condições prévias externas: aliás, poderíamos até falar de um ser que utiliza o homem e suas disposições pessoais apenas como solo nutritivo, cujas forças ordena conforme suas próprias leis, configurando-se a si mesma de acordo com o que pretende ser. -pgs. 60–61

Ao dar muitos exemplos sobre a psicologia analítica na literatura, Jung falava sobre o impulso criativo inconsciente que acabara absorvendo o poeta ao escrever sua obra, fazendo com que ele nem se lembre mais de outras vontades.

Como uma espécie de auto direção, Jung descreve a sensação de liberdade que o poeta sente ao criar uma ilusão, considerando que ele não está consciente em absoluto na realidade concreta, mas sim, conduzido por esta corrente invisível:

Esta dúvida não surgiu do ar, mas nasceu das experiências da psicologia analítica, cuja pesquisa sobre o inconsciente revelou possibilidades de como o consciente não só pode ser influenciado pelo inconsciente, mas até dirigido por ele.

De acordo com Jung, as provas podem ser de natureza direta ou indireta, sendo da ordem da natureza direta casos onde o poeta, diz mais do que ele próprio percebe. Provas indiretas seriam relativas a uma suposta vontade livre de produção, mas que na realidade é desencadeada por um imperativo que se manifesta de imediato.

A obra inédita na alma do artista é uma força da natureza que se impõe , ou com uma tirânica violência ou com aquela astúcia sutil da finalidade natural, sem se incomodar com o bem-estar pessoal do ser humano que é o veículo da criatividade. O anseio criativo vive e cresce dentro do homem como uma árvore no solo do qual extrai seu alimento. Por conseguinte, faríamos bem em considerar o processo criativo como uma essência viva implantada na alma do homem. A psicologia analítica denomina isto como complexo autônomo. Este, como parte separada da alma e retirada da hierarquia do consciente, leva a vida psíquica independente e, de acordo com seu valor energético e sua força, aparece, ou como simples distúrbio de arbitrários processos do consciente, ou como instância superior que pode tomar a seu serviço o próprio Eu.

Os artistas citados foram figuras profundamente enigmáticas no que diz respeito aos caminhos percorridos através da criação, até seus resultados para a época. Nas obras expostas ao longo desse texto, consegui identificar alguns elementos desse complexo autônomo conceituado por Jung, considerando o contexto histórico e as particularidades de cada obra.

Há uma variedade enorme de artistas que eu poderia citar aqui, com obras onde é possível identificar esses elementos de independência da vida psíquica para a criação artística. Se a psicologia analítica foi bem sucedida ao fazer essa descoberta? Eu não saberia dizer, pois esse conceito em questão não costuma ser muito trabalhado quando falamos sobre o processo de criação de um indivíduo no geral. Mas, ao meu ver, faz parte de um magnânimo processo de individuação.

Referências:

Jung; O Espírito na Arte e na Ciência pgs. 63/64; Editora Vozes

Ernst Gombrich; A História da Arte; Editora LTC

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