Educação, liberdade e opressão
Todos podem podem aprender com as diferenças, todos aprendem mais quando todo mundo aprende com todos.
Para quem me conhece há algum tempo, sabe o apreço que tenho pela liberdade, pela emancipação individual de cada ser humano. E uma das coisas que sempre me questiono é como fazer as pessoas entenderem o que é liberdade — utilizar a educação como prática fundamental de liberdade. É nessas reflexões foi que me deparei com uma das frases mais bonitas que eu já li sobre educação:
“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” Paulo Freire [1]
O que Freire quer dizer é que nada se faz só. E esse trecho me lembra um poema do grande João Cabral de Melo Neto, o “Tecendo a Manhã” [2]. Nele, um só não consegue fazer, precisa de todos os galos, em comunhão, para tecer a manhã. Sem a coletividade não existe o amanhecer, a noite tende a perdurar.
Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes / e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem / os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos.
João Cabral de Melo Neto [2]
Isso é importante, pois coloca a questão de liberdade (e também de educação) como uma questão social e coletiva. A liberdade advém, ao mesmo tempo, de si e das outras pessoas, mas somente surge quando há a congruência de ideias, a comunhão de Freire — não que todos precisem pensar iguais, mas todos precisam dialogar entre si. Dialogar é ensinar e aprender ao mesmo tempo. O consenso (já falamos sobre isso anteriormente) é o grande exercício de liberdade entre os homens.
Para Habermas [3] o ideal é que os indivíduos migrem aos poucos dessa orientação de sucesso individual para um sucesso de consenso coletivo — sempre através do diálogo e consenso. Entretanto o mundo em que vivemos possui um “sistema”, um espírito de modernidade, que como diria Weber [4], sempre move o indivíduo para fins específicos, o que predomina é a visão utilitarista do mundo — somos cada vez menos capazes de desenvolver nossos sentimentos e emoções, e estamos nos tornando cada vez mais racionais (se Nietzsche estivesse vivo, ele seria um crítico voraz de nossa sociedade).
Aqueles que educam sem pensar na liberdade dos indivíduos, corre o risco de ter uma educação “bancária”, que não privilegia o diálogo, e serve apenas a elite manipuladora. A elite, perante uma massa que não é consciente de sua realidade, é capaz de enganar e manipular as pessoas para manter o seu poder. Causa uma verdadeira invasão cultural (a cultura de uma minoria se sobrepondo sobre a cultura da maioria menos favorecida). Separar a realidade do que são as distorções delas promovidas por discursos, é a principal função do diálogo, e caminho para uma ação comunicativa.
“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” Paulo Freire [1]
De acordo com Paulo Freire [1], a união da massa oprimida se faz necessária, e deve se manter unida para ganhar a força de transformação necessária. Os indivíduos, em conjunto, devem desvelar o mundo de opressão (através do diálogo) e comprometer-se com sua transformação — em processo permanente de libertação.
Entendendo a relação direta entre educação e liberdade é possível compreender o quanto as ações de determinado governo são libertadoras. Mas não é uma tarefa tão fácil, pois a área de Educação (e a palavra liberdade) está envolta de sacralidade e impregnada por paixões teóricas e políticas, o que gera longos debates conceituais.
Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda… (Cecília Meireles)
Começando ao se discutir termos fechados como Educação Democrática. Azanha [5] discorre que “é a unanimidade na superfície e a divergência profunda acerca do significado de ‘democracia’ que torna muito difícil o esclarecimento da noção derivada de ‘ensino democrático’ [pois] não é a profissão de fé democrática que divide os educadores brasileiros [mas] é nos esforços de realização histórica desse ideal que as raízes das posições e das divergências se revelam”. E isso fica evidente quando diferentes grupos de nossa sociedade tenda empregar termos como “educação de qualidade” — muita gente usa essa expressão, mas dificilmente todos eles pensam a mesma coisa sobre educação.
Há quem pense que educação de qualidade deve focar apenas no desenvolvimento de competências e habilidades — um pacto de eficácia: o aluno deveria ser preparado para um ensino superior e a partir dali ingressar nos mais altos níveis da sociedade. Para Platão [6], um orador competente pode usar sua capacidade tanto para persuadir uma comunidade a aceitar uma ‘lei justa’ como uma ‘lei injusta’ — nesse caso, uma ação educativa de qualidade não poderia ser apenas competente, mas deve ter natureza política e ética.
Em complemento, a ideia de liberdade também possui alto potencial político em sua natureza. Arendt [7] entendia que desde os tempos antigos a liberdade era algo inerente a vida pública, e aos poucos vai migrando para uma interiorização de cada indivíduo (uma relação entre consciência e vontade). No seu ensaio sobre educação, a ênfase maior de Arendt recai no papel da tradição e da autoridade, já que a crise na educação está relacionada à ruptura e perda destas.
… liberdade, é claro, era precedida da liberação: para ser livre, o homem deve ter se liberado das necessidades da vida. O estado de liberdade, porém não se seguia automaticamente ao ato de liberação. A liberdade necessitava, além da mera liberação, da companhia de outros homens que estivessem no mesmo estado, e também de um espaço público comum para encontrá-los — um mundo politicamente organizado, em outras palavras, no qual cada homem livre poderia inserir-se por palavras e feitos. Hannah Arendt [7]
Mas como transportar esses ideais de educação de qualidade e liberdade para dentro do ambiente escolar? Pensando na liberdade em seu sentido mais moderno, a tendência natural é a de que os processos educacionais e procedimentos pedagógicos considerem cada aluno como um indivíduo único, um verdadeiro universo insular — para José Sergio Carvalho [8], o elo entre educação e liberdade manifesta-se por meio do cultivo de vivências escolares nas quais os alunos são alegadamente concebidos como protagonistas do ato educativo.
A liberdade, numa escola, é simplesmente fazer o que se gosta de fazer, desde que não estrague a paz dos outros, e na prática isso funciona maravilhosamente bem. É relativamente fácil ter essa espécie de liberdade, em especial quando ela é acompanhada de autogoverno por toda comunidade, e se é livre de qualquer tentativa adulta para guiar, sugerir, deitar regras, quando se é livre de qualquer medo dos adultos. Neil [9]
Dessa forma, políticas como a Escola sem Partido ( Projeto de Lei 196 do, então senador, Magno Malta) é um retrocesso. Primeiro que ela não parte do pressuposto de que é necessário liberdade para educar — há uma clara restrição do diálogo e da ação comunicativa. Nem acredita que a educação pode ser libertadora, já que os interesses de um grupo específico está sobrepondo os interesses individuais e até mesmo os interesses coletivos, da vida pública. A escola sem partido merece um artigo a parte nesta revista, mas ele ilustra uma, dentre inúmeras, tentativas de se apoderar dos conceitos educacionais, como se apropriar do que seria a “educação de qualidade”, enrustida em uma ideologia opressora, disfarçada de neutralidade e tecnicismos.
Uma educação autônoma nunca fez-se tão necessária!
Referências:
[1] Paulo Freire. “Pedagogia do Oprimido”. 1968.
[2] João Cabral de Melo Neto. “A educação pela pedra”. 1966.
[3] Jurgen Habermas. “Teoria do agir comunicativo — vol. 1: Racionalidade da ação e racionalização social”. 1996.
[4] Marcelo Altomare. “O sujeito no pensamento social de Max Weber”. 2000.
[5] Azanha, J. M. P. “Educação: alguns escritos”. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1987.
[6] Platão. “Górgias”. Publicado originalmente em 380 a.C.
[7] Arendt, H. “Entre o passado e o futuro”. São Paulo: Perspectiva, 1978.
[8] José Sergio Carvalho. “A liberdade educa ou a educação liberta?” 2010
[9] Neil, A. S. “Liberdade, escola, amor e juventude”. São Paulo: Ibrasa, 1978