Educação, liberdade e opressão

Todos podem podem aprender com as diferenças, todos aprendem mais quando todo mundo aprende com todos.

Bruno Oliveira
Revista Marginália
7 min readMar 4, 2020

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Imagem retirado do Instituto Paulo Freire

Para quem me conhece há algum tempo, sabe o apreço que tenho pela liberdade, pela emancipação individual de cada ser humano. E uma das coisas que sempre me questiono é como fazer as pessoas entenderem o que é liberdade — utilizar a educação como prática fundamental de liberdade. É nessas reflexões foi que me deparei com uma das frases mais bonitas que eu já li sobre educação:

“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” Paulo Freire [1]

O que Freire quer dizer é que nada se faz só. E esse trecho me lembra um poema do grande João Cabral de Melo Neto, o “Tecendo a Manhã” [2]. Nele, um só não consegue fazer, precisa de todos os galos, em comunhão, para tecer a manhã. Sem a coletividade não existe o amanhecer, a noite tende a perdurar.

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes / e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem / os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos.
João Cabral de Melo Neto [2]

Isso é importante, pois coloca a questão de liberdade (e também de educação) como uma questão social e coletiva. A liberdade advém, ao mesmo tempo, de si e das outras pessoas, mas somente surge quando há a congruência de ideias, a comunhão de Freire — não que todos precisem pensar iguais, mas todos precisam dialogar entre si. Dialogar é ensinar e aprender ao mesmo tempo. O consenso (já falamos sobre isso anteriormente) é o grande exercício de liberdade entre os homens.

Para Habermas [3] o ideal é que os indivíduos migrem aos poucos dessa orientação de sucesso individual para um sucesso de consenso coletivo — sempre através do diálogo e consenso. Entretanto o mundo em que vivemos possui um “sistema”, um espírito de modernidade, que como diria Weber [4], sempre move o indivíduo para fins específicos, o que predomina é a visão utilitarista do mundo — somos cada vez menos capazes de desenvolver nossos sentimentos e emoções, e estamos nos tornando cada vez mais racionais (se Nietzsche estivesse vivo, ele seria um crítico voraz de nossa sociedade).

Imagem de Horses for Sources

Aqueles que educam sem pensar na liberdade dos indivíduos, corre o risco de ter uma educação “bancária”, que não privilegia o diálogo, e serve apenas a elite manipuladora. A elite, perante uma massa que não é consciente de sua realidade, é capaz de enganar e manipular as pessoas para manter o seu poder. Causa uma verdadeira invasão cultural (a cultura de uma minoria se sobrepondo sobre a cultura da maioria menos favorecida). Separar a realidade do que são as distorções delas promovidas por discursos, é a principal função do diálogo, e caminho para uma ação comunicativa.

“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” Paulo Freire [1]

De acordo com Paulo Freire [1], a união da massa oprimida se faz necessária, e deve se manter unida para ganhar a força de transformação necessária. Os indivíduos, em conjunto, devem desvelar o mundo de opressão (através do diálogo) e comprometer-se com sua transformação — em processo permanente de libertação.

“A liberdade guiando o povo” / pintura de Delacroix — Talvez a maior representação gráfica da liberdade

Entendendo a relação direta entre educação e liberdade é possível compreender o quanto as ações de determinado governo são libertadoras. Mas não é uma tarefa tão fácil, pois a área de Educação (e a palavra liberdade) está envolta de sacralidade e impregnada por paixões teóricas e políticas, o que gera longos debates conceituais.

Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda… (Cecília Meireles)

Começando ao se discutir termos fechados como Educação Democrática. Azanha [5] discorre que “é a unanimidade na superfície e a divergência profunda acerca do significado de ‘democracia’ que torna muito difícil o esclarecimento da noção derivada de ‘ensino democrático’ [pois] não é a profissão de fé democrática que divide os educadores brasileiros [mas] é nos esforços de realização histórica desse ideal que as raízes das posições e das divergências se revelam”. E isso fica evidente quando diferentes grupos de nossa sociedade tenda empregar termos como “educação de qualidade” — muita gente usa essa expressão, mas dificilmente todos eles pensam a mesma coisa sobre educação.

Há quem pense que educação de qualidade deve focar apenas no desenvolvimento de competências e habilidades — um pacto de eficácia: o aluno deveria ser preparado para um ensino superior e a partir dali ingressar nos mais altos níveis da sociedade. Para Platão [6], um orador competente pode usar sua capacidade tanto para persuadir uma comunidade a aceitar uma ‘lei justa’ como uma ‘lei injusta’ — nesse caso, uma ação educativa de qualidade não poderia ser apenas competente, mas deve ter natureza política e ética.

“A morte de Sócrates” — pintura de Jacques-Louis David. Sócrates já dizia que preferia sofrer uma injustiça do que cometer algo injusto

Em complemento, a ideia de liberdade também possui alto potencial político em sua natureza. Arendt [7] entendia que desde os tempos antigos a liberdade era algo inerente a vida pública, e aos poucos vai migrando para uma interiorização de cada indivíduo (uma relação entre consciência e vontade). No seu ensaio sobre educação, a ênfase maior de Arendt recai no papel da tradição e da autoridade, já que a crise na educação está relacionada à ruptura e perda destas.

… liberdade, é claro, era precedida da liberação: para ser livre, o homem deve ter se liberado das necessidades da vida. O estado de liberdade, porém não se seguia automaticamente ao ato de liberação. A liberdade necessitava, além da mera liberação, da companhia de outros homens que estivessem no mesmo estado, e também de um espaço público comum para encontrá-los — um mundo politicamente organizado, em outras palavras, no qual cada homem livre poderia inserir-se por palavras e feitos. Hannah Arendt [7]

Mas como transportar esses ideais de educação de qualidade e liberdade para dentro do ambiente escolar? Pensando na liberdade em seu sentido mais moderno, a tendência natural é a de que os processos educacionais e procedimentos pedagógicos considerem cada aluno como um indivíduo único, um verdadeiro universo insular — para José Sergio Carvalho [8], o elo entre educação e liberdade manifesta-se por meio do cultivo de vivências escolares nas quais os alunos são alegadamente concebidos como protagonistas do ato educativo.

A liberdade, numa escola, é simplesmente fazer o que se gosta de fazer, desde que não estrague a paz dos outros, e na prática isso funciona maravilhosamente bem. É relativamente fácil ter essa espécie de liberdade, em especial quando ela é acompanhada de autogoverno por toda comunidade, e se é livre de qualquer tentativa adulta para guiar, sugerir, deitar regras, quando se é livre de qualquer medo dos adultos. Neil [9]

Dessa forma, políticas como a Escola sem Partido ( Projeto de Lei 196 do, então senador, Magno Malta) é um retrocesso. Primeiro que ela não parte do pressuposto de que é necessário liberdade para educar — há uma clara restrição do diálogo e da ação comunicativa. Nem acredita que a educação pode ser libertadora, já que os interesses de um grupo específico está sobrepondo os interesses individuais e até mesmo os interesses coletivos, da vida pública. A escola sem partido merece um artigo a parte nesta revista, mas ele ilustra uma, dentre inúmeras, tentativas de se apoderar dos conceitos educacionais, como se apropriar do que seria a “educação de qualidade”, enrustida em uma ideologia opressora, disfarçada de neutralidade e tecnicismos.

Uma educação autônoma nunca fez-se tão necessária!

Referências:

[1] Paulo Freire. “Pedagogia do Oprimido”. 1968.
[2] João Cabral de Melo Neto. “A educação pela pedra”. 1966.
[3] Jurgen Habermas. “Teoria do agir comunicativo — vol. 1: Racionalidade da ação e racionalização social”. 1996.
[4] Marcelo Altomare. “O sujeito no pensamento social de Max Weber”. 2000.
[5] Azanha, J. M. P. “Educação: alguns escritos”. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1987.
[6] Platão. “Górgias”. Publicado originalmente em 380 a.C.
[7] Arendt, H. “Entre o passado e o futuro”. São Paulo: Perspectiva, 1978.
[8] José Sergio Carvalho. “A liberdade educa ou a educação liberta?” 2010
[9] Neil, A. S. “Liberdade, escola, amor e juventude”. São Paulo: Ibrasa, 1978

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Bruno Oliveira
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Written by Bruno Oliveira

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.

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