O diálogo como um dos caminhos para o consenso

Bruno Oliveira
Reflexões
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6 min readOct 29, 2019

Apenas por meio do diálogo, fazendo uma junção do interesse de todos os lados, é possível chegar a um consenso de real interesse de todos (ou ao menos sem que haja uma minoria altamente insatisfeita com o resultado). A questão é que o indivíduo, através de seus desejos e vontades, possui interesses próprios que são capazes de comprometer o coletivo.

Diálogo como combustível propulsor da democracia grega

Neste cenário, cada indivíduo planeja suas ações de acordo com as consequências que ela vai ter para si, e age de forma estratégica para aderir aos melhores resultados possíveis. De acordo com Habermas [1], o ideal é que os indivíduos migrem aos poucos dessa orientação de sucesso individual para um sucesso de consenso coletivo, trocar a ação estratégica pela ação comunicativa. Não que o indivíduo não deva buscar seus próprios anseios pessoais, mas deve procurar o diálogo, com ética, e ouvir as outras partes envolvidas para convergir em uma situação satisfatória. O consenso, como forma de entendimento mútuo, é uma crítica natural a qualquer repressão ou censura, sendo parte importantíssima da sociedade.

E o item primordial dessa ação comunicativa é justamente o diálogo. Na visão de Habermas[1], a linguagem humana possui o sentindo antropológico do entendimento mútuo, apenas através da linguagem somos capazes de ressignifcar o sentido de nossa visão de mundo. A ação comunicativa rejeita rótulos pré-definidos e dogmas, os valores passam a serem construídos através de conversas. Dialogar é ensinar e aprender ao mesmo tempo. Paulo Freire [3] já defendia que ensinar exige disponibilidade para o diálogo, é necessário estar aberto aos contextos de todas as pessoas e todas as compreensões de mundo são importantes para conhecer as diferentes realidades possíveis — sem distanciamento. Todos podem podem aprender com as diferenças, todos aprendem mais quando todo mundo aprende com todos.

Mas porque é difícil para um indivíduo sempre procurar o consenso nas decisões? Bom, essa é uma pergunta difícil, mas a primeira resposta mais simples para essa situação é porque consenso demora, e somos cobrados pelo imediatismo. Sentir o que o outro pensa não é algo rápido, demora. É o que diz a raposa em o Pequeno Príncipe:

- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer alguma coisa. Compram tudo prontinho nas lojas […] É preciso ser paciente. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva […] Mas, cada dia, te sentarás mais perto…

Consenso deriva da palavra em latim consentio, que significa sentir junto. Entrar em consenso é fazer com que todos sintam exatamente a mesma coisa, e que a decisão tomada traga o mesmo tom de sentimento. Quando Habermas fala da importância da linguagem humana para o entendimento mútuo, ele indica a linguagem, o diálogo, com potencial de emancipação social. Através da compreensão da linguagem é possível identificar os discursos, especialmente àqueles que distorcem a realidade. Separar a realidade do que são as distorções delas promovidas por discursos, é a principal função do diálogo, e caminho para uma ação comunicativa.

Pela questão do tempo, a maioria das pessoas entende que a melhor decisão é a votação. E eu não condeno este tipo de pensamento, é algo bem pragmático e real, e é o que maioria das tomadas de decisões coletivas aderem para tomar uma decisão. Só que esse modelo de decisão, especialmente pelo imediatismo e caráter iminente de disputa que ele cria, passa bem longe do consenso, e no fim, apenas é um mecanismo de reforço de opinião de uma determinada parte. E não me levem a mal, não estou criticando a democracia (uma das mais famosas formas de votação). Nesta, estou do lado do Churchill: “a democracia é a pior forma de governo imaginável, com exceção de todas as demais”. A questão é que devemos entender que ela pode e deve ser melhorada, se tornar mais inclusiva e atingir todo seu potencial coletivo.

A democracia, como uma forma de dissenso, gera alguns fenômenos que precisamos saber lidar, como a grande polarização e o reforço de opiniões de determinados grupos em detrimentos de outros. A democracia comumente premia a ação estratégica, então não comum são os atos de manipulação e comunicação sistematicamente retorcida — nesta revista já foram publicados alguns exemplos de algumas das táticas sobre como nos ludibriam sobre a felicidade, demagogia, hipervalorização do sofrimento, fake news, entre outros. E isso acontece porque existe um “sistema”, ou como diria Weber [4], existe uma ação social com relação a fins. Nessa visão, há um espírito de modernidade em que sempre moveria os indivíduos pra determinados fins, e hoje o que se predomina é a visão utilitarista de mundo. Os novos objetivos do ser humano são estratégicos e individuais, o que o torna cada vez menos capaz de desenvolver sua afetividade e suas emoções, passa a ser cada vez mais racional — uma verdadeira jaula de ferro.

A visão utilitária e racional no mundo frequentemente nos colocam em jaulas de ferro.

Em contra-partida há o conceito de ‘Mundo da Vida” — o mundo permanentemente dado como efetivo na nossa vida concreta. O “sistema” não vai de encontro com o mundo da vida, pois apenas se limita a buscar a realidade a partir da tecnologia e da aplicação de técnicas e teorias na nossa vida, e mantém um distanciamento do que de fato pode ser a vida. Como diria Husserl [5], o mundo da vida é o mundo natural — na atitude da vida natural, somos sujeitos vivos atuantes junto a outros sujeitos atuantes em um círculo aberto. O distanciamento entre o que o sistema usa para controlar a vida e o que ela realmente é, está a existência do mundo da vida, e essa aproximação só pode ser conquistada através do diálogo. Cada um dos indivíduos que vivem nesse mundo natural entende uma parte dele, e só quando cada um empresta sua própria peça é que podemos completar um mapa fidedigno da realidade.

O que houve foi uma colonização do mundo da vida pelo sistema, isto é, as ações estratégicas dominaram as ações de afetividade, de família, de tradições, e submeteu o mundo da vida ao sistema. Regimes democráticos podem gerar diálogos e participações, em que os indivíduos a partir das análises de suas falas e seus discursos possam estabelecer consensos e fazer com que o sistema passe a trabalhar para o mundo da vida.

E pensar em consenso não é um mero exercício de inclusão de minorias, mas é uma forma de se apropriar favoravelmente da inteligência coletiva — a sinergia da discussão e de múltiplos pontos de vistas pode ser bem poderosa [2], uma democracia das abelhas: as abelhas arriscam tudo no processo que inclui a descoberta coletiva de fatos, debate vigoroso e construção de consentimento. Não que o consenso chegue a ser a solução dos problemas, mas pensar o consenso é um bom exercício para melhorarmos nossas ações comunicativas na democracia e que os indivíduos possam ter cada vez mais escolhas.

Referências e Recomendações de Leitura:

[1] Jurgen Habermas. Teoria do agir comunicativo — vol. 1: Racionalidade da ação e racionalização social. WMF Martins Fontes; Edição: 1ª. 1996.
[2] John Buck, Sharon Villines. Nós o povo, consentindo a uma democracia mais profunda. Balbelcub Inc. 2017.
[3] Paulo Freire. Pedagogia da Autonomia. 1996
[4] Marcelo Altomare. O sujeito no pensamento social de Max Weber. Tese de Doutorado Unicamp. 2000.
[5] Juliana Missaggia. A noção husserliana de mundo da vida (Lebenswelt): em defesa de sua unidade e coerência. Trans/Form/Ação vol. 41. 2018

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Bruno Oliveira
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Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.