Noite de lua nova

Maria Anna Leal Martins
Maria Anna Martins
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3 min readMar 14, 2019
Photo by Paul Volkmer on Unsplash

O pé dela batia na parede da varanda e a rede respondia com um balanço cadenciado. Seus olhos perdiam-se nas estrelas. A lua não dera o ar da graça naquela noite, mas isso não impedia de forma alguma o espetáculo de luzes no céu. Provavelmente, se ela estivesse lá, as estrelas nem se destacariam tanto.

O atrito de seus dedos com a superfície lisa era algo reconfortante: automático, seguro e simples. Muito mais fácil do que encarar o que sabia que precisava fazer.

Pronto, rompera o contato. Mesmo assim a rede ainda balançou por alguns poucos segundos até parar completamente. As estrelas pareciam estar dançando em seu campo de visão, provavelmente por causa do movimento recentemente cessado.

Suspirou.

Poderia dormir. Poderia ignorar mais um pouco. Brincou com os fios da rede os enrolando em sua mão extremamente branca. Ah se pudesse parar o tempo… Levantou-se devagar, colocando os dois pés automaticamente no chão. O piso do apartamento era muito, muito, frio.

“Bem mais do que a minha alma.”

Caminhou pelos corredores observando as fotos de família. As paredes pintadas com um marrom escuro davam um aspecto intimo a casa toda. Sentiria falta daquilo. Olhou o aposento. Notou que algumas roupas da bebê ainda estavam espalhadas pelo sofá. Catou-as, dobrou-as e, por fim, as levou até o quarto da pequena, colocando tudo dentro da primeira gaveta do armário.

Percebeu que a criança ainda dormia profundamente no berço. Pegou-a com cuidado para não acorda-la.

“Eu a amo tanto…”.

No caminho para a sala notou os telefones com os fios cortados. Mais cedo tentara acessar a internet, mas esta também fora danificada. Seu celular já não existia mais.

Sentou em sua cadeira de balanço, herança da mãe, ainda olhando as estrelas.

O bebê começou a chorar. Possivelmente aquele choro era o único barulho da rua deserta. Por que moravam tão isolados do resto do bairro? Por que concordara com isso? O próprio apartamento… Eles eram os únicos moradores daquele prédio velho. Todos os outros inquilinos foram embora há muito tempo. O lugar estava desvalorizado de todas as formas possíveis.

— Shh — Tentou acalmá-la— Está tudo bem.

Aos poucos a pequena calou-se e voltou a dormir.

— Não se preocupe meu amor, mamãe vai sempre cuidar de você. — Ajeitou-a no braço, olhou o relógio. Estava quase na hora. Andou com a criança até o banheiro. A banheira estava ali, já pronta. Com cuidado colocou a pequena debaixo da água.

Ficou com ela assim por cinco minutos. Cinco longos minutos.

Estava feito.

As lágrimas rolaram sem que pudesse conter.

— Me perdoe, querida. Mamãe a ama muito. — Sussurrava enquanto segurava a criança já falecida em um abraço apertado. O vestido e os braços da mãe estavam completamente encharcados devido ao corpo pequenino comprimido.

Recompôs-se. Levantou, colocou a pequena no berço e depois voltou para a rede onde se balançou um pouco mais. A porta, que antes estava trancada, tanto a grade quanto a própria fechadura, abriu. O pesadelo entrou.

— Oi

— Oi

— Está pronta?

— Você é um monstro.

— Só por causa dessa ofensa, querida, a bebê será a primeira.

Ele entrou em casa com aquela maldita faca. Ela continuou balançando calmamente. Mais cedo procurara alguma arma, qualquer coisa que a ajudasse a lutar. Porém o marido era bem perspicaz. Tirou tudo que ela poderia usar. Todos os objetos afiados. Nem caneta havia na casa.

Ela pensou em jogar uma cadeira na cabeça dele. Mas estava tão fraca… E muito, muito, cansada. Já tentara resistir, já tentara fugir… Agora… Desistira.

Estava conformada.

E ele costumava ser tão bom! Á amou um dia. Quando será que enlouquecera? Fora sempre aquela criatura horrenda e ela é quem não se dera conta? Nunca teria as respostas.

— O que você fez com ela? — O homem voltou meio irritado.

— Só impedi que você fizesse coisa pior.

Ele suspirou.

— Você é mesmo uma boa mãe. Uma pena, eu gostaria de ter lhe assistido observar o fim dela. Deve ter sido excitante…

— Monstro.

Ele aproximou-se com a faca bem afiada. Ela mesma teve de afiar durante a tarde daquele dia.

Forçou-se a observar o céu.

Seu último pensamento foi que a noite estava realmente muito bonita.

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