“Você tem o direito de sofrer o quanto quiser”

Tiago Alcantara
Marie Curie News
Published in
8 min readJul 5, 2019

Entrevistamos a autora de Tudo o que Mãe Diz é Sagrado

Quem é?

Jornalista especializada no desenvolvimento de projetos culturais;

Autora dos livros Tudo o que mãe diz é sagrado, In Vitro e As calotas não me protegem do sol;

Sócia-diretora da Buriti Comunicação.

Qual é a sensação de colocar um ponto final? Ou de quem aperta o botão de “publicar”? Ou, ainda, de publicar um livro depois de meses pensando, planejando e executando? Talvez seja um sentimento de que aquilo que você produziu foi jogado para o universo, já não é mais somente seu. Não deixa de ser uma espécie de perda. Mas, claro, algo muito diferente da sensação de ver alguém querido partir.

Nessa situação, talvez o que mais assuste seja saber que nada mais pode ser dito. De que você vai precisar se contentar com um limite para os momentos de troca que teve com uma pessoa querida. Com o vislumbre da sua própria morte ou com a certeza de que estamos todas, efetivamente, sozinhas.

Talvez tenha sido essa última questão que nos inspirou a voltar para uma história recente. No dia 23 de maio, publicamos “Tudo que Mãe diz é sagrado”, edição que conta como a jornalista e escritora Paula Corrêa usou a literatura para transformar sua experiência de luto. Poucos dias depois de disparar a newsletter, recebemos uma resposta da autora. A ideia inicial era falar com a escritora antes de publicar o material, que seria só uma entrevista.

Por uma dessas coisas que acontecem sem a gente ter o menor controle, como é a vida, e por conta da resposta tão positiva que tivemos de vocês, resolvemos voltar ao assunto nesta edição que é, de certa forma, complementar.

Para quem está perdida, Paula é autora do livro que inspirou o nome de uma de nossas edições de maio. Na obra, ela relata a dor de ver morrer alguém que tinha uma parte de si. Sua mãe faleceu poucos dias após ter recebido parte do fígado da filha. “Foi uma parte do meu corpo que pulsou nela que morreu”, conta.

Confira os principais trechos da conversa com a escritora Paula Corrêa.

Você já disse que nunca teve intenção de transformar essa perda em um livro. Pode contar um pouco sobre esse processo?

PAULA CORRÊA — Acredito que o livro veio de um processo natural de tentar nomear, mesmo que fosse inominável, a dor que estava em mim. Por mais que eu dividisse a dor da perda da minha mãe com meus irmãos, por exemplo, que seriam as pessoas mais próximas de entender o que era perder a minha mãe, a minha vivência foi completamente diferente porque parte de mim literalmente morreu com ela. Foi uma parte do meu corpo que pulsou nela que morreu. Essa fisicalidade mais entranhada tinha que ser transformada dentro de mim, porque foi muito violenta. Eu sempre escrevi, desde a escola fazia poesias. Escrever sempre foi a melhor forma de me comunicar com o mundo e me encontrar nas palavras sempre foi uma espécie de bálsamo para lidar com as dores da minha existência. Então, foi muito natural que resolvesse escrever sobre a morte da minha mãe. Depois de escrito, percebi que ele tinha o encadeamento do processo de luto, e nesse momento senti que o livro estava pronto.

O blog é de 2007 e o livro saiu em 2013. Como você observa esse período depois de mais de uma década? É possível avaliar o impacto que essa experiência teve na sua vida?

PAULA CORRÊA — Escrever o livro foi brutal. Todas as fases do livro foram vividas com muita intensidade, e colocar algo tão profundo e íntimo no mundo não é algo fácil. Muita exposição para alguém como eu, que sou uma pessoa bastante reservada. Mas eu gosto muito de obras que tenham essa verdade. E não fui só eu que apostei nela. A Eliane Brum, que me levou até a Tainã Bispo, da Leya (que teve raríssima sensibilidade na condução da publicação); e depois escreveu a quarta capa e uma coluna linda sobre o livro; o Ignácio de Loyola Brandão, que também escreveu a quarta capa. Então eu estava respaldada por muita gente em quem confiava e admirava o trabalho.

Eu avalio de duas formas. A primeira é que me expus muito, e depois do livro precisei me recolher (e estou um pouco recolhida até agora, risos). A outra é que espero que o livro possa mostrar um caminho para quem esteja numa situação parecida.

Você expôs uma perda tão importante em um relato extremamente emocional. Acha que isso te ajudou a superar a dor? É possível superar esse tipo de perda?

PAULA CORRÊA — Eu ando pensando novamente muito na morte. Eu tive um filho, e essa experiência me alavancou de outra forma para esse assunto. Acho que não é só um tabu. Acho que realmente ninguém tem explicação plausível para esse fim. Se é um fim ou não. Se a consciência apaga ou não. Se eu vou continuar sendo eu mesma em outra dimensão ou não. É muito aflitivo pensar na morte, e nunca ninguém teve provas concretas de nada. Depois do livro, eu passei a viver muito concretamente a vida. E é na concretude que resolvo inclusive a minha angústia de pensar na morte.

Acho que ajudou, sim. A catarse do livro e colocar uma dor transformada em poesia no mundo, foi muito importante. Não sei se a gente supera ‘efetivamente’. Se não houvesse a palavra ‘efetivamente’ na pergunta, talvez eu dissesse que sim, a gente supera. O ser humano tem uma capacidade incalculável de superação, e digo de outras dores bem maiores do que a minha. Mas superar ‘efetivamente’ quer dizer uma travessia completa da dor, e eu choro até hoje de saudade da minha mãe, mesmo 12 anos depois. A dor diminui, mas a saudade e a tristeza de não tê-la mais por perto é muito presente, e acho que sempre será.

Uma das minhas frases favoritas do livro é “descansar da sua falta e distrair-me por entre as belezas do mundo”. Você imagina um dia reencontrar sua mãe? Diria que esse é um bom conselho?

PAULA CORRÊA — Olha, bem que eu gostaria de reencontrá-la! Acho que ‘se distrair por entre as belezas do mundo’ é um bom conselho. Mas o processo de luto é muito singular, e eu acho que a dor que estamos vivendo é sempre a maior, e eu respeito muito a dor das pessoas. Nunca achei que a minha perda era maior, que o meu sofrimento era maior. Todo mundo tem o direito de sofrer o quanto quiser e por quanto tempo quiser, essa travessia é muito íntima. E também temos que nos dar a liberdade de acabar com aquilo, ou de despir-se da dor, da tristeza, e decidir seguir a vida com alegria.

Tudo que Mãe diz é sagrado é dedicado ao seu pai. Pode comentar essa escolha?

PAULA CORRÊA — Essa linhagem poética minha vem do meu pai. A mãe dele era poeta, tem diversos poemas publicados em livros que chamam “Antologia Poética de Pinheiros”. O pai dele era músico, multiinstrumentista, e também compositor. E meu pai sempre se dedicou muito ao trabalho, à nossa criação, e não conseguiu dar vazão à sua poética, e também à sua sensibilidade. Eu tenho um orgulho muito grande dele e uma ligação muito forte também. E ele sobreviveu e segue sobrevivendo de uma forma muito linda mesmo sem a minha mãe ao lado dele.

Para terminar, por que tudo que mãe diz é sagrado?

PAULA CORRÊA — O sagrado vem da relação. Tem algo que uma mãe diz para um filho e que fica tatuado na sua personalidade, e muitas vezes faz a vida dele seguir adiante. Lembro de estar desesperada em muitas situações e ouvir um ‘fica tranquila’ da minha mãe e acreditar que algo no caminho melhoraria. Vejo isso com meu filho. Às vezes o que eu digo não muda nada, mas em alguns momentos uma palavra muda o estado de espírito dele de um choro descontrolado para uma risada. Acho que as mães, por conhecerem profundamente seus filhos, têm essa capacidade de construir alguém forte, de mudar não só o humor de um filho, mas um rumo errado, ajudá-lo a deixar um sofrimento de lado, a acreditar nele, a lutar pelo que ele quer. É sagrado aquele espaço que se constrói, de delicadeza, de confiança plena, de amor incalculável.

PS: só mais uma palavrinha.

Como já antecipamos, 2019 vai ser um ano cheio de testes e novidades para esta newsletter. O simples fato deste e-mail chegar até você em um dia diferente da semana é uma prova de algumas mudanças que estão acontecendo na nossa redação. A ideia é alcançar mais pessoas, apresentar histórias inspiradoras e ser o ponto de partida para discussões que tanto precisamos. Isso significa que abandonamos os disparos às quintas? Ainda não.

No fim das contas, o plano é o seguinte: queremos conhecer quem está do outro lado dessa linha, conectada por um e-mail semanal. Em troca, claro, também vamos apresentar a equipe que faz Marie Curie e manter mais canais abertos para ouvir e entender qual é o momento que nossas leitoras vivem.

Na próxima quinta a gente conta mais. Até lá, Maries!

Marie Curie é uma newsletter que traz conteúdo para mulheres. Toda semana, discutimos algum tema ou trazemos uma entrevista que tenha impacto na maneira como você trabalha, se posiciona e se relaciona com a sociedade.

A versão original dessa matéria foi publicada em 24 de junho de 2019. Para se inscrever e receber um e-mail nosso todas as quintas-feiras, clique aqui.

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