Texto 01 — “Os recursos para o bom adestramento”

Trechos do livro “Vigiar e Punir”, Michel Foucault, 1975, Terceira Parte, Capítulo II.

Marcelo Voos
MARÉ Ubatuba
4 min readDec 24, 2016

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[esta seleção de trechos faz parte do nosso Percurso em Educação]

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Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência).

Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações.

Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punível-punidora.

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Mas a disciplina traz consigo uma maneira específica de punir, e que é apenas um modelo reduzido do tribunal. O que pertence à penalidade disciplinar é a inobservância, tudo o que está inadequado à regra, tudo o que se afasta dela, os desvios. É passível de pena o campo indefinido do não-conforme: o soldado comete uma “falta” cada vez que não atinge o nível requerido; a “falta” do aluno é, assim como um delito menor, uma inaptidão a cumprir suas tarefas.

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Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas:

- Relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir.

- Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto — que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto.

- Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a “natureza” dos indivíduos.

- Fazer funcionar, através dessa medida “valorizadora”, a coação de uma conformidade a realizar.

- Enfim, traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal (a “classe vergonhosa” da Escola Militar).

A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.

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Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais.

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O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade.

No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível. Mais uma inovação da era clássica que os historiadores deixaram na sombra.

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Do mesmo modo, a escola torna-se uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a operação do ensino. Tratar-se-á cada vez menos daquelas justas em que os alunos defrontavam forças e cada vez mais de uma comparação perpétua de cada um com todos, que permite ao mesmo tempo medir e sancionar.

Os Irmãos das Escolas Cristãs queriam que seus alunos fizessem provas de classificação todos os dias da semana: o primeiro dia para a ortografia, o segundo para a aritmética, o terceiro para o catecismo da manhã, e de tarde para a caligrafia, etc. Além disso, devia haver uma prova todo mês, para designar os que merecessem ser submetidos ao exame do inspetor.

O exame não se contenta em sancionar um aprendizado; é um de seus fatores permanentes: sustenta-o segundo um ritual de poder constantemente renovado.

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O exame faz também a individualidade entrar num campo documentário: Seu resultado é um arquivo inteiro com detalhes e minúcias que se constitui ao nível dos corpos e dos dias. O exame que coloca os indivíduos num campo de vigilância situa-os igualmente numa rede de anotações escritas; compromete-os em toda uma quantidade de documentos que os captam e os fixam.

Os procedimentos de exame são acompanhados imediatamente de um sistema de registro intenso e de acumulação documentária.

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Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção.

Mas emprestar tal poderio às astúcias muitas vezes minúsculas da disciplina, não seria lhes conceder muito? De onde podem elas tirar tão vastos efeitos?

Mais sobre Michel Foucault (filme Foucault vs. Foucault)

[Esta seleção de trechos faz parte do Percurso em Educação, do grupo MARÉ — Ubatuba.]

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