Texto 03 — “Pedagogia do Oprimido”

Trechos do livro de Paulo Freire, escrito em 1968.

Marcelo Voos
MARÉ Ubatuba
6 min readJan 1, 2017

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[esta seleção de trechos faz parte do nosso Percurso em Educação]

Paulo Freire (1921 — 1997)

A contradição opressores-oprimidos. Sua superação.

A violência dos opressores que os faz também desumanizados, instaura uma outra vocação — a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos.

E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos — libertar-se a si e aos opressores.

Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora, permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da miséria.

Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela.

Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando esta se revista da falsa generosidade referida.

Capa da 1a. Edição, publicada em 1968, em inglês, espanhol, italiano, francês e alemão. Publicado no Brasil em 1975.

A concepção “bancária” da educação como instrumento da opressão. Seus pressupostos, sua crítica.

Quanto mais analisamos as relações educador-educandos, na escola, em qualquer de seus níveis, (ou fora dela), parece que mais nos podemos convencer de que estas relações apresentam um caráter especial e marcante — o de serem relações fundamentalmente narradoras, dissertadoras.

Narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto, sejam valores ou dimensões concretas da realidade.

Narração ou dissertação que implica num sujeito — o narrador — e em objetos pacientes, ouvintes — os educandos. Há uma quase enfermidade da narração.

A tônica da educação é preponderantemente esta — narrar, sempre narrar.

Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem comportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente, a suprema inquietação desta educação. A sua irrefreada ânsia. Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é “encher” os educandos dos conteúdos de sua narração.

Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante. Dai que seja mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la.

Por isto mesmo é que uma das características desta educação dissertadora é a “sonoridade” da palavra e não sua força transformadora. Quatro vezes quatro, dezesseis; Pará, capital: Belém, que o educando fixa, memoriza, repete, sem perceber o que realmente significa quatro vezes quatro. O que verdadeiramente significa capital, na afirmação Pará, capital: Belém.

A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador.

Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão. Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante.

Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão — a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro.

Na verdade, a razão de ser da educação libertadora está no seu impulso inicial conciliador. Daí que tal forma de educação implique na superação da contradição educador-educandos, de tal maneira que se façam ambos, simultaneamente, educadores e educandos. Na concepção “bancária” que estamos criticando, para a qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação.

Na medida em que esta visão “bancária” anula o poder criador dos educandos ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua transformação.

O seu “humanitarismo”, e não humanismo, está em preservar a situação de que são beneficiários e que lhes possibilita a manutenção de sua falsa generosidade a que nos referimos. Por isto mesmo é que reagem, até instintivamente, contra qualquer tentativa de uma educação estimulante do pensar autêntico, que não se deixa emaranhar pelas vozes parciais da realidade, buscando sempre os nexos que prendem um ponto a outro, ou um problema a outro.

Na educação de adultos, por exemplo, não interessa a esta visão “bancária” propor aos educandos o desvelamento do mundo, mas, pelo contrário, perguntar-lhes se “Ada deu o dedo ao urubu”, para depois dizer-lhes enfaticamente, que não, que “Ada deu o dedo à arara”.

A questão está em que, pensar autenticamente, é perigoso. O estranho humanismo desta concepção “bancária” se reduz à tentativa de fazer dos homens o seu contrário — o autômato, que é a negação de sua ontológica vocação de Ser Mais.

Martin Buber (1878–1965)

O eu antidialógico, dominador, transforma o tu dominado, conquistado num mero “isto”. (Martin Buber, 1923, Eu e Tu)

O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui.

Sabe também que, constituído por um tu — um não-eu — , esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu.

Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu.

Não há, portanto, na teoria dialógica da ação, um sujeito que domina pela conquista e um objeto dominado. Em lugar disto, há sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo, para a sua transformação.

O diálogo não impõe, não maneja, não domestica, não sloganiza. Não significa isto que a teoria da ação dialógica conduza ao nada. Como também não significa deixar de ter o dialógico uma consciência clara do que quer, dos objetivos com os quais se comprometeu.

A liderança revolucionária, comprometida com as massas oprimidas, tem um compromisso com a liberdade. E, precisamente porque o seu compromisso é com as massas oprimidas para que se libertem, não pode pretender conquistá-las, mas conseguir sua adesão para a libertação.

É que a confiança, ainda que básica ao diálogo, não é um a priori deste, mas uma resultante do encontro em que os homens se tornam sujeitos da pronúncia do mundo, para a sua transformação.

[Esta seleção de trechos faz parte do Percurso em Educação, do grupo MARÉ — Ubatuba.]

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