Texto 06 — “A Teia da Vida”
Trechos do livro de Fritjof Capra, de 1996 - pag. 215 a 223
[esta seleção de trechos faz parte do nosso Percurso em Educação]
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Os seres humanos evoluíram a partir dos “macacos do sul” que caminhavam eretos (gênero Australopithecus) por volta de dois milhões de anos atrás. A transição de macacos para seres humanos, como aprendemos num capítulo anterior, foi acionada por dois desenvolvimentos distintos: o desamparo de bebês nascidos prematuramente, os quais requeriam famílias e comunidades que lhes dessem apoio, e a liberdade das mãos para fazer e para usar ferramentas, que estimularam o crescimento do cérebro e podem ter contribuído para a evolução da linguagem.
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À medida que a diversidade e a riqueza das nossas relações humanas aumentavam, nossa humanidade — nossa linguagem, nossa arte, nosso pensamento e nossa cultura — se desenvolviam. Ao mesmo tempo, desenvolvemos a capacidade do pensamento abstrato, a capacidade para criar um mundo interior de conceitos, de objetos e de imagens de nós mesmos.
Gradualmente, à medida que esse mundo interior se tornava cada vez mais diversificado e complexo, começamos a perder contato com a natureza e a nos transformar em personalidades cada vez mais fragmentadas.
Desse modo, surgiu a tensão entre totalidade e fragmentação, entre corpo e alma, que tem sido identificada como a essência da condição humana por poetas, filósofos e místicos ao longo dos séculos. A consciência humana criou não apenas as pinturas rupestres de Chauvet, o Bhagavad Gita, os Concertos de Brandenburgo e a teoria da relatividade, mas também a escravidão, a queima das bruxas, o Holocausto e o bombardeamento de Hiroshima. Dentre todas as espécies, somos a única que mata seus semelhantes em nome da religião, do mercado livre, do patriotismo e de outras ideias abstratas.
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A doutrina budista da impermanência inclui a noção de que o eu não existe — não existe o sujeito permanente de nossas diversificadas experiências. Ela sustenta que a ideia de um eu individual, separado, é uma ilusão, é apenas uma outra forma de maya, uma concepção intelectual destituída de realidade. O apego a essa ideia de um eu separado leva à mesma dor e ao mesmo sofrimento (duhkha) que a adesão a qualquer outra categoria fixa de pensamento.
A ciência cognitiva chegou exatamente à mesma posição. De acordo com a teoria de Santiago, criamos o eu assim como criamos objetos.
Nosso eu, ou ego, não tem nenhuma existência independente, mas é o resultado do nosso acoplamento estrutural interno.
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É esse, então, o ponto crucial da condição humana.
Somos indivíduos autônomos, modelados pela nossa própria história de mudanças estruturais. Somos autoconscientes, cientes da nossa identidade individual — e, não obstante, quando procuramos por um eu independente no âmbito de nosso mundo de experiência, não conseguimos encontrar nenhuma entidade desse tipo.
A origem de nosso dilema reside na nossa tendência para criar as abstrações de objetos separados, inclusive de um eu separado, e em seguida acreditar que elas pertencem a uma realidade objetiva, que existe independentemente de nós.
Para superar nossa ansiedade cartesiana, precisamos pensar sistemicamente, mudando nosso foco conceitual de objetos para relações. Somente então poderemos compreender que a identidade, a individualidade e a autonomia não implicam separatividade e independência. Como nos lembra Lynn Margulis: “Independência é um termo político, e não científico.”
O poder do pensamento abstrato nos tem levado a tratar o meio ambiente natural — a teia da vida — como se ele consistisse em partes separadas, a serem exploradas comercialmente, em benefício próprio, por diferentes grupos. Além disso, estendemos essa visão fragmentada à nossa sociedade humana, dividindo-a em outra tantas nações, raças, grupos religiosos e políticos. A crença segundo a qual todos esses fragmentos — em nós mesmos, no nosso meio ambiente e na nossa sociedade — são realmente separados alienou-nos da natureza e de nossos companheiros humanos, e, dessa maneira, nos diminuiu. Para recuperar nossa plena humanidade, temos de recuperar nossa experiência de conexidade com toda a teia da vida. Essa reconexão, ou religação, religio em latim, é a própria essência do alicerçamento espiritual da ecologia profunda.
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Reconectar-se com a teia da vida significa construir, nutrir e educar comunidades sustentáveis, nas quais podemos satisfazer nossas aspirações e nossas necessidades sem diminuir as chances das gerações futuras. Para realizar essa tarefa, podemos aprender valiosas lições extraídas do estudo de ecossistemas, que são comunidades sustentáveis de plantas, de animais e de microorganismos.
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Todos os membros de uma comunidade ecológica estão interligados numa vasta e intrincada rede de relações, a teia da vida. Eles derivam suas propriedades essenciais, e, na verdade, sua própria existência, de suas relações com outras coisas. A interdependência — a dependência mútua de todos os processos vitais dos organismos — é a natureza de todas as relações ecológicas. O comportamento de cada membro vivo do ecossistema depende do comportamento de muitos outros. O sucesso da comunidade toda depende do sucesso de cada um de seus membros, enquanto que o sucesso de cada membro depende do sucesso da comunidade como um todo.
Entender a interdependência ecológica significa entender relações. Isso determina as mudanças de percepção que são características do pensamento sistêmico — das partes para o todo, de objetos para relações, de conteúdo para padrão. Uma comunidade humana sustentável está ciente das múltiplas relações entre seus membros. Nutrir a comunidade significa nutrir essas relações.
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A parceria é uma característica essencial das comunidades sustentáveis. Num ecossistema, os intercâmbios cíclicos de energia e de recursos são sustentados por uma cooperação generalizada. Na verdade, vimos que, desde a criação das primeiras células nucleadas há mais de dois bilhões de anos, a vida na Terra tem prosseguido por intermédio de arranjos cada vez mais intrincados de cooperação e de coevolução. A parceria — a tendência para formar associações, para estabelecer ligações, para viver dentro de outro organismo e para cooperar — é um dos “certificados de qualidade” da vida.
Nas comunidades humanas, parceria significa democracia e poder pessoal, pois cada membro da comunidade desempenha um papel importante.
Combinando o princípio da parceria com a dinâmica da mudança e do desenvolvimento, também podemos utilizar o termo “coevolução” de maneira metafórica nas comunidades humanas. À medida que uma parceria se processa, cada parceiro passa a entender melhor as necessidades dos outros.
Numa parceria verdadeira, confiante, ambos os parceiros aprendem e mudam — eles coevoluem. Aqui, mais uma vez, notamos a tensão básica entre o desafio da sustentabilidade ecológica e a maneira pela qual nossas sociedades atuais são estruturadas, a tensão entre economia e a ecologia. A economia enfatiza a competição, a expansão e a dominação; ecologia enfatiza a cooperação, a conservação e a parceria.
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A tensão temporária é um aspecto essencial da vida, mas a tensão prolongada é nociva e destrutiva para o sistema. Essas considerações levam à importante compreensão de que administrar um sistema social — uma empresa, uma cidade ou uma economia — significa encontrar os valores ideais para as variáveis do sistema. Se tentarmos maximizar qualquer variável isolada em vez de otimizá-la, isso levará, invariavelmente, à destruição do sistema como um todo.
O princípio da flexibilidade também sugere uma estratégia correspondente para a resolução de conflitos. Em toda comunidade haverá, invariavelmente, contradições e conflitos, que não podem ser resolvidos em favor de um ou do outro lado. Por exemplo, a comunidade precisará de estabilidade e de mudança, de ordem e de liberdade, de tradição e de inovação.
Esses conflitos inevitáveis são muito mais bem-resolvidos estabelecendo-se um equilíbrio dinâmico, em vez de sê-lo por meio de decisões rígidas.
A alfabetização ecológica inclui o conhecimento de que ambos os lados de um conflito podem ser importantes, dependendo do contexto, e que as contradições no âmbito de uma comunidade são sinais de sua diversidade e de sua vitalidade e, desse modo, contribuem para a viabilidade do sistema.
Nos ecossistemas, o papel da diversidade está estreitamente ligado com a estrutura de rede do sistema. Um ecossistema diversificado também será flexível, pois contém muitas espécies com funções ecológicas sobrepostas que podem, parcialmente, substituir umas às outras.
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Nas comunidades humanas, a diversidade étnica e cultural pode desempenhar o mesmo papel. Diversidade significa muitas relações diferentes, muitas abordagens diferentes do mesmo problema. Uma comunidade diversificada é uma comunidade elástica, capaz de se adaptar a situações mutáveis.
No entanto, a diversidade só será uma vantagem estratégica se houver uma comunidade realmente vibrante, sustentada por uma teia de relações. Se a comunidade estiver fragmentada em grupos e em indivíduos isolados, a diversidade poderá, facilmente, tornar-se uma fonte de preconceitos e de atrito. Porém, se a comunidade estiver ciente da interdependência de todos os seus membros, a diversidade enriquecerá todas as relações e, desse modo, enriquecerá a comunidade como um todo, bem como cada um dos seus membros. Nessa comunidade, as informações e as ideias fluem livremente por toda a rede, e a diversidade de interpretações e de estilos de aprendizagem — até mesmo a diversidade de erros — enriquecerá toda a comunidade.
[Esta seleção de trechos faz parte do Percurso em Educação, do grupo MARÉ — Ubatuba.]
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