Concorrência Institucional [II]: A Farsa do ‘Dumping Social’

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
11 min readJun 26, 2024

Este texto é a segunda parte de uma série de três artigos em que procuramos apresentar de que maneira a concorrência institucional poderia funcionar como mecanismo promotor do desenvolvimento socioeconômico. Aqui ilustraremos como seus entraves podem ser nocivos ao progresso e de que forma são baseados em argumentos infundados.

Denunciando a farsa do ‘dumping social’ tentaremos mostrar como a percepção da concorrência institucional muitas vezes conduz alguns governos a tomar posicionamentos normativos e decisões administrativas arbitrárias, simplesmente por fundamentarem-se em idéias equivocadas e concepções políticas desprovidas de verdadeiro embasamento teórico mas adotadas para atender interesses bem identificáveis de cartéis políticos.

Introdução e Definição de "Dumping"

O "dumping social" é mais uma daquelas expressões que além de não ter nenhuma espécie de coerência interna expõem ainda a confusão mental a qual estão sujeitas as pessoas que delas utilizam-se para criticar a economia de mercado.

Nessa categoria de expressões temos o célebre "capitalismo selvagem", a famosa "exploração do trabalhador", o temido "paraíso fiscal", a incontornável "justiça social" ou ainda o "sórdido materialismo", e diversas outras e quase todas de origem marxista e notoriamente anticapitalistas.

A expressão serve muitas vezes de argumento a ser utilizado por quem não é favorável aos processos de globalização e livre comércio. É possível sentir previamente que a idéia designando a definição do termo "dumping social" é errônea pelo simples fato que a própria expressão é mal construída.

O dumping é uma atividade que consiste em demandar preços diferentes segundo o comprador que se apresente, por exemplo entre compradores nacionais e estrangeiros.

Indo ainda mais afundo no conceito o dumping consiste simplesmente em vender produtos mais baratos: obviamente que isto não traz nenhum malefício a alguém — sobretudo aos consumidores – e não consiste em nenhuma escala numa prática condenável. [1]

O "dumping social" por sua vez é a idéia que “estados ou empresas procuram mais ou menos deliberadamente degradar o direito social em vigor afim de tirar vantagem econômica notadamente em termos de competitividade” (Ver: G. Gorce 2000).

Nesta definição já fica claro que a expressão não tem coerência com o sentido original dos termos: ou seja, enquanto o dumping descreve uma política de preços o dumping "social" descreveria a concorrência entre trabalhadores e produtores e a arbitragem relativa as regras alinhando os processos produtivos.

O que os indivíduos que pronunciam esta expressão tentam de fato dizer é que produtores estrangeiros se beneficiariam de condições mais vantajosas do que produtores nacionais em decorrência das regulamentações menos onerosas que vigoram alhures. (Ver por exemplo: Bernaciak 2012, p. 16)

Os produtores nacionais estariam então sofrendo uma "concorrência desleal" e seria, por consequência, necessário proteger os produtores nacionais ou obrigar que sejam impostas "na marra" as mesmas regras, ambientes institucionais e condições de produção para os produtores estrangeiros residindo outras regiões, para lutar contra os impulsos nefastos das estratégias de dumping "social".

A Hipocrisia dos Cartéis Políticos

Para os defensores da idéia de que existiria um dumping "social" seria necessário impor aos países que se beneficiam da liberalização do comércio e processo de globalização legislações sociais similares a estas dos países desenvolvidos.

A concorrência, para ser justa e eficiente, segundo eles, necessitaria regras e instituições em matéria de legislação social idênticas em todas as regiões, caso contrário os empreendedores de países desenvolvidos, que devem pagar custos elevados associados à fiscalidade e às regulamentações sociais de seus países não estariam em pé de igualdade com produtores de países em desenvolvimento, que gozam de normas menos constringentes.

Seria então necessário alguma forma de harmonização das condições de concorrência, notadamente, regras fazendo convergir o custo da mão de obra aos níveis de países desenvolvidos.

Mas tal harmonização para ser implementada através de decisões oriundas de conluios políticos implica, antes de tudo, o reconhecimento que determinado quadro de normas sociais é superior a um outro, sem que este reconhecimento seja fruto da livre concorrência entre tecnologias institucionais distintas: o simples fato do reconhecimento ter sido imposto na canetada por políticos nos dá motivos pra suspeitar da eficiência do procedimento de validação e arbitragem.

Ou seja, administradores de governos e regiões onde o desemprego se aproxima dos 10-15% da população ativa, onde o crescimento econômico é pífio, onde as regulamentações são obstáculos efetivamente custosos, onde as normas trabalhistas e custos da proteção social são demasiadamente elevados e onde fiscalidade é reconhecidamente excessiva partem do princípio que estas instituições são indiscutivelmente superiores aquelas dos outros países e devem ser implementadas universalmente desde que possível.

No entanto tal imposição é um passo para trás para a promoção da concorrência, e impor aos países estrangeiros um quadro normativo asfixiante, regulamentações absurdas e uma fiscalidade espoliadora não é uma forma de promover o desenvolvimento daquelas regiões.

O fato é que, procurar harmonizar as condições da concorrência pelo decreto público do governo tem por consequência a promoção da escassez e o empobrecimento.

Tais imposições terminam, na verdade, por reduzir a competitividade institucional dos países em desenvolvimento e diminuir suas vantagens comparativas impedindo, por exemplo, que muitos trabalhadores destes países tenham acesso a um trabalho e, potencialmente, oportunidade de buscar melhores condições de vida.

A Fragilidade do Arcabouço Teórico

Heterogeneidade da Mão de Obra

Grosso modo, o dumping "social" consiste em dizer que por causa do (livre) mercado e devido à instalação e deslocamento de empresas em regiões onde os custos de produção são mais baixos decorreria naturalmente uma forma de equalização internacional das remunerações.

Olhemos então rapidamente esta ilustração que permite visualizar o princípio do embasamento teórico em que se fundamenta a idéia de dumping "social":

Ilustração 1: Equilíbrio no Mercado de Trabalho e Redução da Demanda de Trabalho

O raciocínio teórico sugere a seguinte lógica. Em primeiro lugar se admite um número estável de trabalhadores e/ou horas homogêneas de trabalho em dois países — ou diversos países ao redor do mundo – para um processo produtivo utilizando determinado tipo de tecnologia transferível e alocação qualquer de inúmeros fatores de produção identicamente distribuídos.

A idéia do dumping "social" é que em consequência de uma baixa na demanda de trabalho (oferta de emprego) das empresas que se instalam em países onde as normas trabalhistas e sociais não são tão restringentes e os custos de produção são, em decorrência, menos elevados; os níveis dos salários dos países desenvolvidos tenderiam a ser puxados para baixo e/ou os níveis de desemprego para cima, pelo menos para os trabalhadores não qualificados.

As únicas diferenças então decorrendo das questões institucionais:

Ilustração 2: O Mecanismo do Dumping Social

O problema é que além das questões puramente institucionais nem os trabalhadores e nem as horas de trabalho são homogêneos, nem os procedimentos organizacionais são iguais, nem os processos de trabalho e as tecnologias adotadas são as mesmas — ou são perfeitamente transferíveis, nem o número de trabalhadores é estável, nem a disponibilidade e as características dos outros fatores de produção são idênticas, nem as condições da conjuntura econômica são similares.

A hipótese de equalização dos rendimentos também é reconhecidamente bastante frágil.

Primeiramente porque as técnicas de produção não são exatamente as mesmas ao redor do mundo, e os fatores de produção e recursos disponíveis não são os mesmos: disto decorre que a estrutura organizacional, produtiva e alocativa é forçosamente distinta.

Os trabalhadores em média não tem o mesmo nível de produtividade: os trabalhadores não qualificados não apresentam as mesmas capacidades produtivas ao redor do mundo, em grande parte simplesmente porque eles se encontram em ambientes produtivos distintos: eles estão associados à fatores de produção diferentes e a natureza substituível dos trabalhadores ou horas de trabalho está longe de ser perfeita.

A própria idéia de que os trabalhadores não qualificados do mundo inteiro estariam em concorrência direta e irrestrita é inverossímil: primeiro porque eles estão inseridos em ambientes organizacionais e econômicos distintos, mas principalmente porque eles não podem em massa e à escala mundial livremente se deslocar lá onde a oferta de emprego seja melhor. As fricções são maiores do que para o trânsito de capitais.

A idéia de que existiria uma certa homogeneidade no que se descreve como trabalhador não qualificado é questionável ou no mínimo demasiadamente generalizante: um trabalhador que embora não tenha recebido formação educacional de qualidade pode ter adquirido um conjunto de competências ou savoir-faire específico que aumenta sua produtividade de maneira considerável.

Caso aceitemos que são idênticas as características dos processos produtivos, que os modos organizacionais não mudam, que a produtividade é a mesma, e que os outros fatores de produção fossem os mesmos e identicamente acessíveis e transferíveis; se os salários são mais baixos deveríamos esperar que as taxas de lucro das empresas sejam maiores nos países em desenvolvimento, o que não é forçosamente o caso.

A prova é que algumas empresas acabam retornando e retomam suas atividades em países desenvolvidos muitas vezes como consequência do não respeito às normas e padrões de qualidade que são impostos por elas, em decorrência do não respeito dos prazos de fabricação, não cumprimento de políticas de incentivos pelos poderes públicos, por casos de nítida incompetência administrativa, pelo aumento dos custos de produção ou simplesmente para se beneficiar de economias de escala ou economias organizacionais.

Isto mostra que as diferenças de produtividade podem ter papel fundamental e também que os salários baixos embora representem uma atrativo não compensam necessariamente as diferenças de produtividade.

A produtividade depende não somente das máquinas mas de uma série de fatores imateriais e materiais como a organização do trabalho, o espírito de iniciativa, a disponibilidade dos outros fatores de produção ou a qualidade de vida das cidades.

Indesejável “Harmonização” dos Salários

A teoria econômica mostra que o empreendedor emprega trabalhadores no geral até que a produtividade marginal do último seja aproximativamente igual ao seu salário real.

Desta maneira para que a teoria da equalização dos salários seja verdadeira seria necessário que a produtividade do trabalho não qualificado fosse aproximativamente a mesma em todos os países, mas isto envolveria uma série de fatores que não estão simplesmente associados às capacidades produtivas da força de trabalho. Se os salários são mais baixos nos países em desenvolvimento isto é principalmente uma consequência da produtividade menos elevada.

Os salários flutuam de acordo com as forças do mercado mas sobretudo não se distanciam dos níveis de produtividade, pois isto é o que garante auto-sustentabilidade dos negócios e como os níveis de produtividade não são iguais ao redor do mundo decorre que os salários não podem ser iguais.

Este raciocínio que é fundamentado na teoria econômica e nas trocas de mercado torna não-recebível a idéia de harmonização das remunerações.

Conclusão e a Rejeição dos Interesses de Cartéis Políticos

Não é novidade que boa parte dos parlamentares e comentaristas da mídia desconhecem o que quer dizer o verdadeiro sentido de concorrência.

Utilizando a ideia original do economista francês Frédéric Bastiat, o que vemos é a empresa que, constrangida pela concorrência internacional e pela rigidez das instituições de certos países se vê obrigada a fechar suas portas e deslocar suas atividades produtivas lá onde elas podem ser mais rentáveis.

O que não se vê é o consumidor que ao invés de pagar 300 dinheiros por um produto pode agora obter o mesmo por 50 dinheiros, talvez nesta mesma empresa que não conseguiria vendê-lo pelo preço caso não tivesse deslocado suas atividades produtivas.

Ou seja não vemos o aumento do poder de compra de 250 dinheiros para inúmeros consumidores que poderão ser gastos em atividades ou poupados e constituir capital para investimento.

Vemos ainda menos o fato de que os 50 dinheiros recebidos pelos produtores agora em regiões diferentes poderão certamente retornar em alguma escala ao país de origem caso ele decida, por exemplo, conservar parte de sua produção ou etapa do processo produtivo — mais intensivo em capital (humano) — em seu país de origem.

A teoria econômica é implacável neste ponto: o livre mercado é sempre promotor de abundância, sua restrição promotora de escassez.

O progresso e a expansão do mercado beneficiam os países pobres, o comércio faz recuar a pobreza, a fome e a miséria.

O mercado pode ajudar a fazer recuar ditaduras, aumentar a riqueza disponível e permitir, através dela, a melhora da qualidade da educação e da saúde. A liberdade promove maior mobilidade social e os direitos de propriedade quanto mais eles forem respeitados terminarão por se expandir aos mais pobres e proteger seus interesses.

A "anarquia" de mercado e os valores liberais promovem o desenvolvimento e os países em desenvolvimento precisam da liberdade e do livre comércio, eles devem recusar o protecionismo e imposições políticas arbitrárias procurando reduzir sua autonomia e competitividade relativa.

A desigualdade das condições de concorrência não é indesejável, equalizar as condições de concorrência aumentando os custos de produção e promovendo instituições ruins é simplesmente tornar desnecessárias as trocas comerciais internacionais.

Não existe parâmetro fiável permitindo enquadrar e delimitar corretamente o que deve e o que não deve ser equalizado em matéria normativa, estamos no mundo do aleatório. Seria o tempo de trabalho? Os impostos? Os salários? As normas trabalhistas? Seria também necessário harmonizar a qualidade dos terrenos e a fertilidade dos solos? Alinhar perfeitamente os recursos, capitais e fatores de produção? Equalizar a qualidade e capacidade de inovação dos seres humanos? Que país ou grupo de países deve servir de referência para a implementação forçada e arbitrária de uma harmonização institucional? A melhor referência seriam os países que apresentam elevados desequilíbrios orçamentários e enormes gastos públicos, e uma rigidez normativa que dificulta a criação de riqueza?

Estas considerações apenas servem para nos mostrar que buscar implementar na marra e em todo lugar instituições ineficientes é um fardo ao qual os países em desenvolvimento devem evitar.

Elas nos mostram que a concorrência institucional é quem deveria realmente guiar a evolução das mudanças normativas.

Esta expressão dumping "social" é uma farsa: a expressão é mal construída, a idéia que ela cerceia é equivocada e os supostos malefícios decorrentes são na verdade oportunidades para o desenvolvimento econômico e optimização dos processos alocativos fundamentais para que seja conservada a competitividade dos países em desenvolvimento.

Notas

[1] Se trata de uma mentalidade e raciocínio completamente débil e que mostra o quanto de ignorância econômica predomina nos meios de comunicação mas também no ambiente acadêmico.

Se venderes por um preço alto deves ser regulamentado pois certamente estás te beneficiando de uma renda de monopólio;

Se venderes por um preço baixo deves ser regulamentado pois estás praticando dumping;

Se venderes pelo preço de mercado deves ser regulamentado porque estás certamente fazendo conluio.

Ora, mas que brincadeira é essa?!!? Como sempre dizemos pra quem não entendeu a mentalidade retardada envolvendo este raciocínio, o preço justo ao qual se pretende fazer alusão é aquele preço que o socialista diz ser justo pagar.

fevereiro 16, 2014 por mateusbernardino

Referências

Bernaciak, M., Social Dumping: Political Catchphrase or Threat to Labour Standards? European Trade Union Institute, Working Paper 2012.

Gorce, G. Rapport d’information déposé à l’Assemblée Nationale pour l’Union Européenne sur le Dumping Social en Europe, Assemblée Nationale de la France, Octobre 2000.

Mises, L. V., A Mentalidade Anticapitalista, LVM Editora 2010.

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