Limites da Retórica das Desigualdades

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
8 min readJan 19, 2022

Esta série pretende explorar algumas das principais questões envolvendo as ‘desigualdades sociais’. Por ser necessário a apresentação de um número não negligenciável de informações, referências e ilustrações, o trabalho será dividido em grandes etapas, que podem ser lidas de forma independente, cada uma realiza um estudo introdutório das principais linhas de argumento compondo o que descrevo como ‘retórica das desigualdades’.

A primeira parte tem por objetivo introduzir o raciocínio e os argumentos que geralmente apelam para justificar políticas de ‘combate às desigualdades’.

La Gare Saint Nazare, 1877 (Claude Monet)

maio 28, 2014 por mateusbernardino

Qualquer esforço que busque abordar de forma séria e abrangente os fenômenos que descrevem como ‘desigualdades sociais’ encontrará obstáculos sensivelmente importantes. Seria muita pretensão realizar uma espécie de síntese definitiva, elucidando exaustivamente as principais questões envolvendo o tema. Não é raro que livros inteiros falhem em abordar satisfatoriamente os inúmeros componentes incorporando o tema das desigualdades. Isto quer dizer que, por mais pretensiosas que sejam, dificilmente as obras conseguirão tratar completamente todos os embates envolvidos.

Não oferecerão fundamentos sólidos baseados em um arcabouço teórico satisfatoriamente persuasivo, não apresentarão de maneira convincente uma superação definitiva das dificuldades metodológicas e empíricas envolvendo o tratamento do tema, e as conclusões e resultados dos estudos dificilmente servirão satisfatoriamente de referência ou guia para políticas ao redor do mundo diante de toda a diversidade de problemas e contextos socioeconômicos.

A começar, a tarefa é herculana porque a própria definição de desigualdades sociais padece de fronteiras claras e bem esclarecidas. Ela ainda é desfalcada de ferramentas de mensura de seus aspectos contábeis. A definição se perde, muda incessantemente com o tempo e, principalmente, ela desconhece qualquer tipo de objetividade prática coerente.

A verdade é que ‘desigualdades sociais’ podem englobar tudo e qualquer coisa. Geralmente, tudo e qualquer coisa que estudiosos e determinados grupos tenham interesse de inserir dentro de uma retórica mobilizada ad hoc para instrumentalização política de um discurso de narrativas.

Por isso, uma forma de superar tais obstáculos na busca por uma análise minimamente aceitável é se concentrar em um determinado escopo das desigualdades sociais: geralmente se fala em desigualdades de renda, desigualdades de oportunidade, desigualdades de acesso a um ensino de qualidade, de acesso à saúde e etc.

Persiste ainda, entretanto, uma dimensão política explicitando a ideia que, entre as desigualdades sociais em diversas sociedades ao longo do tempo tivemos desigualdades institucionais limitando o escopo das liberdades civis, políticas ou associativas.

Posto que as desigualdades de acesso aos diferentes serviços podem, bem grosseiramente, ser assimiladas a eventuais desigualdades de renda; e que as liberdades civis, as normas de conduta e as liberdades políticas querem na verdade fazer menção à dimensão institucional subjacente e tem repercussão sobre desigualdades materiais; parece normal que se englobe principalmente dentro das ‘desigualdades sociais’ as desigualdades de renda e desigualdades de ordem institucional: as primeiras podem ser descritas simplesmente como desigualdades, a segunda preferencialmente e doravante está relacionada a uma ideia de equidade.

Nosso empenho nessa série de artigos serve simplesmente para guiar quem queira tanto aprender sobre os obstáculos vinculados ao estudo das desigualdades assim como compreender as minucias do raciocínio mobilizado pelos estudiosos e, sobretudo, pelos grupos que, como mencionamos mais acima, têm interesse em instrumentalizar politicamente o fenômeno natural que é a desigualdade.

A retórica das desigualdades seria então o conjunto dos principais elementos compondo o discurso, o raciocínio e os argumentos mobilizados pelos diversos grupos que instrumentalizam a narrativa das desigualdades sociais para alcançar objetivos políticos ou econômicos, sejam eles economistas, filósofos, moralistas, parlamentares ou candidatos políticos demagogos.

Meules près de Giverny, 1889 (Claude Monet)

Introdução

Frequentemente, em função de urgências políticas ou novos resultados de estudos empíricos sobre o tema, volta à tona o tema das desigualdades nos debates de atualidade. E isso será sempre assim. Mais recentemente, muito tem sido dito a respeito do tema, e boa parte destas repercussões se dá pelo relativo sucesso de vendas em livros do economista francês Thomas Piketty.

Desconsiderando efetivamente o fato que a desigualdade não significa pobreza nem miséria generalizada, que a própria pobreza é uma definição que pode ser relativa ou absoluta, que a definição de rico ou pobre varia no tempo e no espaço, com frequência levianamente os comentaristas da mídia fazem demonstração de uma "surpreendente" falta de rigor analítico.

Não é raro que interpretações falsas sejam difundidas em massa via aparato mediático, e tais impressões falseadas podem facilmente passar despercebidas e tomarem ares de verdade para muitos.

Culpar as instituições da liberdade e o capitalismo por desgraças sociais é recorrente, e esta interpretação dos eventos toma para leigos significado de uma evidência clara: se vivemos em um mundo capitalista, mazelas desta natureza não podem ser dissociadas de tal esquema social. Desigualdades são indesejáveis e o resultado incontornável dessa organização social.

Contudo, como veremos melhor a seguir o próprio critério e ferramenta de mensura das desigualdades permite estudar não mais que grosseiramente sua evolução histórica: não temos nenhuma cotação fiável dizendo qual a escala de desigualdade desejável, a própria definição dos objetos de estudo emanam de consensos estabelecidos por estatísticos, e a suposta evolução destes objetos de mensura — e seus índices — é invariavelmente aproximativa, não absorve adequadamente os próprios critérios que ela estabelece em sua composição e, sobretudo, deixa de levar em conta um número considerável de elementos importantes que poderiam estar associados ao fenômeno tal qual descrito por estes mesmos analistas.

Façamos, antes de tudo, uma apresentação do raciocínio que envolve o que descrevo como a retórica do aumento das desigualdades ou combate as desigualdades.

Este raciocínio, que nos parece pertinente para descrever a maioria das convicções e a lógica à qual fazem apelo geralmente os intelectuais interessados no assunto, nos servirá de guia ao longo deste dossiê: através de sua estrutura pretendemos progressivamente analisar e eventualmente contestar suas grandes linhas.

Terrasse à Sainte Adresse, 1867 (Claude Monet)

A Retórica das Desigualdades

Em primeiro lugar a retórica parte de uma constatação — eventualmente baseada em dados e resultados de estudos cuja contestabilidade seria inquestionável — que as desigualdades atingiram níveis considerados preocupantes, seja em uma escala local, regional, nacional ou mundial.

De forma similarmente holística e particularmente seletiva, ou antes de procurar verdadeiramente estudar qual conjunto de explicações permitiria ajudar a compreender este fenômeno, a retórica faz apelo a uma interpretação aparentemente irrepreensível dos eventos socioeconômicos: ao redor do mundo e em diversas sociedades existiria uma progressão relativamente considerável do livre comércio e um desenvolvimento de sociedades capitalistas de mercado, fundamentadas nas instituições da liberdade.

Mesmo que tal fenômeno possa acontecer em escala heterogênea, de formas diferentes ao redor do mundo e entre as sociedades; e por mais que concomitantemente progridam também eventos igualmente importantes (como o estatismo); os analistas acreditam e propõem sem titubear uma associação que seria de evidência natural: o aumento das desigualdades deve sua existência à progressão do livre comércio, da globalização, da sociedade de mercado e do capitalismo.

O aumento das desigualdades teria por consequência indissociável um fato estatisticamente claro: ele significaria o empobrecimento dos mais pobres e o enriquecimento dos mais ricos. Dada a incontestabilidade dessa evidência e constatação referente ao aumento do comércio e da riqueza mundial, a associação parece clara: argumentam que devido ao capitalismo e ao livre mercado as desigualdades estão ficando cada vez mais importantes e os ricos estão ganhando cada vez mais enquanto os pobres cada vez menos [a].

Além de associado a uma má distribuição de renda esse aumento das desigualdades implicaria indiscutivelmente outra série de problemas sociais: mais violência, condições de vida menos satisfatórias para as pessoas de mais baixa renda, maiores barreiras à mobilidade social, maior precariedade para os trabalhadores, menor crescimento econômico e uma série de outros ‘males sociais’ que teriam origem implícita neste aumento das desigualdades. O capitalismo é tão responsável pelo aumento insuportável da pobreza decorrendo do aumento das desigualdades que ele engendra quanto de todos os outros males sociais [b].

Como todos estes males a qualquer custo devem ser evitados, para o bem de todos e para o interesse geral, é natural ou imperativo que alguém se manifeste e grupos organizados sejam conduzidos a tomar algum tipo de providência. Visto que nas democracias representativas modernas o governo seria a instituição/agente que, por excelência, serve ou deveria servir o "bem público", o "interesse comum" e o "bem-estar social", é necessário que o governo apresente-se como aquela entidade que se encarrega da responsabilidade de minimizar os supostos males promovidos pela desigualdade, digamos, promovendo políticas sanando as hipotéticas consequências nefastas que decorrem mas, sobretudo, atacando o mal pela própria raiz.

Nesse momento, pouco importando em primeira instância qual o destino e origem dos recursos, e deixadas em segundo plano as questões morais, o governo deve tomar providências para que estas desigualdades sejam atenuadas. Obviamente que, nestes casos, a maneira privilegiada, nos dizem os analistas, deve ser a utilização de mecanismos de redistribuição, preferencialmente o uso da ferramenta fiscal ou regulamentária: é necessário que o governo aumente generalizadamente a pressão fiscal ou particularmente sobre determinados grupos de indivíduos e, como consequência, arrecade mais recursos que serão destinados às atividades que promoveriam uma redução das desigualdades ou sanariam seus males consequentes.

Muitas vezes não é preciso tanta embromação: basta tomar o dinheiro de uns e transferir para outros e, mais uma vez, deixadas em segundo plano as questões morais, é desejável que o governo intervenha para atenuar estas discrepâncias pois esta é maneira de promover uma sociedade mais justa, um lugar onde seria garantida compulsoriamente a fraternidade entre os cidadãos e onde as desigualdades serão reduzidas ao máximo possível, ou pelo menos segundo uma escala considerada aceitável, atenuando todos os males provocados pelo crescimento irresistível das desigualdades inerentes ao capitalismo [1].

E para manutenção dessa ordem pacífica, serão necessárias intervenções constantes e um incessante incremento de "políticas de combate às desigualdades": as autoridades devem manter um olho vigilante, verificando e acrescentando, constantemente e cada vez de forma mais completa e abrangente itens que poderiam compor fatores de desigualdade, proporcionando desta sorte soluções que buscariam fazer que todos, progressivamente, tenham acesso a praticamente as mesmas coisas, ou às coisas que um grupo tendo o poder considere como sendo as mais elementares ou urgentes: "barreiras" como raça, formação, origem social, empenho, produtividade, talento, gênero, dedicação, capacidade empreendedora, ou qualquer sintoma devem ser quebradas em prol dessa comunidade mais justa [c].

Este é o raciocínio envolvendo o que chamo de retórica das desigualdades — institucionais e de renda.

Nosso objetivo é apenas mostrar que nenhuma destas asserções ([a], [b], [c]) tem forçosamente alguma espécie de coerência interna inquestionável, e ainda, que a própria lógica segundo a qual “[a] deve implicar [b]que deve implicar [c]” não merece ser considerada inquestionavelmente como satisfatória.

Cada uma destas partes do raciocínio ([a], [b], [c]) será abordada ao longo deste dossiê, que consagrará também sua atenção a algumas questões metodológicas envolvendo as desigualdades.

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Notas

[1] Por mais que as questões morais estejam aqui nesse estudo deixadas em segundo plano, e não serão tratadas profundamente neste dossiê, não deixa de ser flagrante, do ponto de vista moral, a total falta de coerência neste trecho da narrativa: a promoção da fraternidade entre os cidadãos passaria pela espoliação compulsória de uns em benefício de outros. Temos o direito de perguntar que tipo de lógica masoquista seria essa em que o aumento da estima pelo próximo, ou por uma parte dos próximos, a manutenção de uma paz social ou ordem harmónica se daria pela capacidade que têm uns de fazer violência aos outros. Ou seja, mais aptos a te fazer violência são teus vizinhos, e mais capacitados estão eles de efetivamente conseguir te fazer violência, mais tua compaixão e amor por eles seria incrementada, mais afinidade com essa organização social tu terias, mais estaríamos próximos de uma utopia de sociedade feliz. Isto releva apenas do comportamento sádico.

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