Na deflagração da Operação Ouvidos Moucos, Polícia Federal fez buscas e apreensões na Funjab, Fapeu e Fepese (Fotos: Matheus Vieira/Zero)

Os vícios crônicos das Fundações de Apoio

Irregularidades constatadas na UAB se repetem em projetos de fundações, que resistem ao cumprimento de recomendações.

Matheus de Moura
Matheus de Moura
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11 min readJan 17, 2018

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Por Matheus Vieira

Essa reportagem especial, em conjunto com A Queda de Cancelier, recebeu os prêmios Expocom Sul e Expocom Nacional de melhor reportagem publicada em veículo impresso. Estes são os principais prêmios para estudantes de jornalismo no Brasil.

Todos os anos órgãos fiscalizadores, entre eles a Controladoria Geral da União (CGU) e a Auditoria Interna da UFSC (Audin), constatam problemas administrativos relativos aos contratos firmados entre a Universidade e as fundações de apoio. A lista de possíveis irregularidades é longa, passando por dispensa indevida de licitação, gastos imprevistos com justificativas duvidosas, falta de processos seletivos para bolsistas e insuficiência nos comprovantes de gastos. Tudo isso é avaliado e discutido na maior instância legislativa da universidade, o Conselho Universitário (CUn). Por isso, para ex-membros do CUn e auditores nenhuma novidade foi apresentada pela Operação Ouvidos Moucos no que se refere às três fundações: Funjab, Fapeu e Fepese.

UFSC não sabe dispensar licitações
No Inquérito da Ouvidos Moucos foi questionada as contratações sem licitação das fundações nos seis cursos EaD. Em 2008, a CGU apontava a mesma coisa acontecendo com as provas do concurso de vestibular. Isso porque firmar convênio sem qualquer justificativa de escolha, dispensando licitação à mera vontade, não é incomum. A própria Controladoria afirma no relatório daquele ano estas contratações indevidas com dispensa de licitação representavam “reincidência no não-atendimento às recomendações da CGU de anos anteriores”.

Em ambos os casos a UFSC teria errado ao não explicitar quais os critérios que a fizeram escolher uma fundação em vez da outra. A lei 8666/93 rege que a escolha deve ser “de modo que sejam devidamente justificados os motivos da escolha do fornecedor ou executante e os preços pactuados”

Os apontamentos da Controladoria, entretanto, não resolveram nada. Essa irregularidade persiste até hoje, e não estamos falando do cursos do EaD. O relatório da CGU que fiscaliza a UFSC durante o ano de 2016 questiona o uso de R$ 492.530 em recursos destinados a projetos da Fapeu e da Fepese firmados sem processos licitatórios.

Quatro vezes presidente do órgão que aprova as contas da UFSC, o Conselho de Curadores, Milton Horn acha desnecessária a exigência de justificativa para escolha de uma das quatro fundações. Para ele, uma vez que estas já foram credenciadas junto à universidade e ao Ministério da Educação, o professor deveria ter liberdade de escolha. “A pessoa escolhe xis fundação porque acha melhor, ué. Às vezes eu já tive dois projetos numa fundação e daí continuo com ela, porque sei que funciona, porque gosto das parcerias que já exercemos”.

O auditor-chefe da Auditoria Interna da UFSC, Audi Vieira, já não vê da mesma forma. Para ele, fundações não podem ser escolhidas por “amiguismo” ou preferência do pesquisador contratante, mas sim pelo o que for mais vantajoso à universidade, seguindo princípios básicos da administração pública. “Uma fundação tem que seguir os rigores da lei, os mesmo critérios que uma outra instituição”, afirma.

E se nem em licitações não-relacionadas às fundações a UFSC faz seu trabalho com rigor? O relatório da CGU relativo a 2016 aponta irregularidades em 100% das licitações analisadas.

Fundações também não
Apesar de serem instituições privadas, as fundações precisam usar licitações para contratar serviços da mesmas forma que os órgãos públicos. Afinal, seus trabalhos são firmados com instituições federais de ensino. Isso quer dizer que ao dispensar licitação, elas são obrigadas a comprovar pesquisa de mercado para que os produtos e serviços adquiridos tenham o melhor custo benefício. E sabe com qual periodicidade as fundações desrespeitam a legislação das licitações? De acordo com os órgãos fiscalizadores, todo ano.

Em 2015, por exemplo, a Audin apontou que o projeto “Compostagem de Resíduos Urbanos”, em convênio com a Fapeu, dispensou licitação referente a R$ 60.500 em abastecimento e reparo de automóveis. O critério adotado na escolha de postos de gasolina e oficinas mecânicas foi a proximidade. Não houve cotação prévia de preços nem pesquisas, segundo a auditoria, nada que justificasse a escolha dos estabelecimentos, senão o fato de serem do lado da UFSC. Procurada, a Fapeu respondeu que, para eles, “os postos escolhidos para abastecimento dos veículos atenderam a proximidade do Campus e trajeto para transporte dos resíduos, exatamente por economicidade”.

Ao menos nesse caso a Fapeu foi sincera ao contar que não realizou cotação prévia de preços. Em 2016, respondendo a questionamentos da Audin sobre R$ 9.090 gastos em equipamentos novos para o projeto “Metodologia de avaliação da qualidade do investimento municipal em ensino fundamental”, a Fepese respondeu que perdeu os registros das pesquisas de mercado. Entre as empresas solicitadas na aquisição dos equipamentos estava a S.A Tour, citada na Operação Ouvidos Moucos como beneficiária da falta de processos licitatórios da Fapeu.

No caso da S.A. Tour com a Ouvidos Moucos, a Fapeu afirma que costumava utilizar o sistema de credenciamento de empresas para realizar os serviços de emissão de passagens, reserva e contratação de hospedagem e locação de veículos. “A prática do credenciamento é, muitas vezes, questionada pelos órgãos de controle, sem a adequada fundamentação, em nosso entendimento. Nessa questão do credenciamento, observados os princípios estatuídos no art. 37, caput, da Constituição Federal, o procedimento é perfeitamente válido, porque realizado sob a égide do art. 25, caput, da Lei nº 8.666/1993”, explicou em e-mail. Este trata da dispensa de licitação no caso de “notória especialização”, que pode ser considerada em virtude de bom desempenho anterior.

Esse sistema de credenciamento já causou algumas confusões para a Fapeu. Entre elas está um processo de 2015, no qual a S.A. Tour junto à Trend Tour se dizem lesadas pelo superintendente da fundação, Gilberto Vieira Ângelo, no poder até hoje. As empresas afirmam que a Metropolitana Turismo estaria sendo beneficiada indevidamente pela Fapeu. Segundo consta no processo, a Metropolitana atendia a quase todos os contratos e convênios da fundação. As duas empresas acabaram perdendo, pois o juiz federal Adriano José Pinheiro entendeu que não cabia ao Estado regulamentar os processos seletivos da Fapeu.

A contratação da Metropolitana Turismo já foi alvo de questionamentos anteriormente. Em 2014, a Contadoria da UFSC (setor sobre o qual logo mais falaremos) questionou a escolha da empresa de turismo no projeto “Sistema de prevenção, controle e atendimento emergencial em acidentes com produtos na rodovia BR 101 trecho sul”, gerido pela Fapeu. Segundo a análise, a fundação deveria ter licitado para poder contratar Metropolitana, pois o credenciamento não seguia a regra da exclusividade. Consta no documento que, “o termo de credenciamento firmado com a empresa Metropolitana não é de exclusividade visto que a Fundação também contratou artigo congênere com a empresa Attitude Turismo Ltda (item 12), portanto caracterizou-se, neste caso, que havia discricionariedade por parte da FAPEU na escolha do prestador do serviço. Deste modo, não pode ser observada nestas contratações que a Fundação salvaguardou o princípio da impessoalidade.”

Todos precisam de um plano
Todas as contratações de pessoas e serviços precisam estar previstas no plano de trabalho, que nada mais é que o planejamento de atividades e gastos que um projeto precisa propor para ser aprovado. No relatório de 2008, a CGU explica que sem um plano de trabalho com detalhamento de serviços, mão de obra e materiais a serem usados fica difícil “verificar a regularidade e economicidade dos valores conveniados, como também impossibilita a devida fiscalização e acompanhamento da execução de tais convênios.”

É no plano de trabalho que se justifica como serão selecionados os bolsistas e coordenadores do projeto. E, assim como muito do que foi citado nesta reportagem, esse aspecto não costuma ser seguido com rigor. Em 2016, de todos os projetos analisados pela Audin, apenas o da Funjab tinha processo seletivo para bolsistas. Em e-mail, Gilberto Vieira Ângelo, o superintendente da Fapeu, afirmou ter ciência dessa cobrança. “Temos orientado aos coordenadores de projetos para que promovam processo seletivo para concessão de bolsas e deem publicidade por meio de edital, incluindo os critérios adotados”. A Fapeu foi a única fundação que respondeu às questões do Zero.

Os planos de trabalho podem ser úteis também para desmascarar projetos problemáticos, permitindo cobranças de aspectos não cumpridos, ou mal cumpridos. Este é o caso do projeto “Sistema de prevenção, controle e atendimento emergencial em acidentes com produtos na rodovia BR 101 trecho sul”, que durou entre 2010 e 2012. Ele foi financiado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e gerenciado pela Fapeu. O coordenador, Ariovaldo Bolzan afirmou em documento nunca ter recebido uma bolsa sequer pela atuação no projeto. Entretanto, fora constatada pela Contadoria uma incoerência com o plano de trabalho, no qual constava que ele recebia R$ 6.400 mensais, resultando em R$ 83.200 ao final. Essa e outras inconsistências não foram apuradas a fundo, pois a UFSC não seguiu o conselho da Contadoria em abrir uma Tomada de Contas Especiais e deixar que o Tribunal de Contas da União fosse fundo nas análises desse projeto. Chefe de Gabinete na época, Carlos Vieira explica que a Controladoria teria pedido que eles esperassem, pois o DNIT quem deveria abrir esse processo, o que não aconteceu.

Na verdade, foram encontradas irregularidades em todas as auditorias e fiscalizações sobre esse projeto do DNIT , seja pela CGU, Audin ou Contadoria da UFSC. Entre elas estão gastos como reembolsos de viagens sem apresentação dos devidos relatórios; gastos com transporte e alimentação de R$ 404.445, o equivalente a 67% acima dos R$ 241.900 previstos. Há aumentos em 121,28% nos gastos com contratações de terceiros. Segundo o relatório da Contadoria, esse gasto seria originalmente de R$ 141.360, tendo terminado em R$ 312.797.

A CGU, por sua vez, constatou que parte dos envolvidos no projeto (Bolzan incluso) participavam simultaneamente de outros dois projetos de grande porte financiados pelo DNIT. O relatório da CGU aponta suspeitas quanto à remuneração e carga horária que essas pessoas estariam exercendo nos projetos. Através da Lei de Acesso à Informação, o Zero tentou descobrir quem eram os integrantes e quais os valores envolvidos. Mais precisamente, o jornal solicitou à UFSC nomes, quantias e cargas horárias de todos as pessoas beneficiadas por bolsas de fundações nos últimos dez anos. A informação foi negada sob a alegação de serem dados pessoais. O primeiro recurso foi ignorado, fazendo com que a reportagem registrasse um segundo em sequência. Dessa vez, nos foi negado por “falta de tempo”. Por fim, aguardamos recurso resposta da CGU.

Isso nos leva a outra complicação relativo às fundações: falta de transparência.

Transparência e Fiscalização
Ex-membros do CUn, o ex-aluno Norberto Siemonn e os professores William Vianna e Fábio Lopes têm a mesma opinião: o principal problema das fundações é a falta de transparência em suas ações e gastos. A própria CGU já apontava em 2008 que “o ambiente de descontrole sobre tais convênios impede a UFSC de identificar, inibir e evitar a ocorrência do mau uso dos recursos, de superfaturamentos, de sobrepreços e de desvio de recursos geridos pelas fundações de apoio”.

O dito descontrole sobre os convênios é causado justamente pela falta de estímulo à transparência e ao cumprimento das recomendações dos órgãos fiscalizadores, é nisso que acredita o professor William Vianna. Ele considera falhas as duas maiores instâncias da universidade, o CUn e o Conselho de Curadores, responsável pela aprovação de todas as contas da UFSC. Isso porque no CUn, não é incomum o professor responsável pelo parecer de recredenciamento da fundação ser alguém que recebeu bolsas em algum momento. O mesmo serve para o Conselho de Curadores, no qual o conselheiro pode aprovar convênios em que está ou esteve envolvido. A servidora Teresinha Ceccato, por exemplo, foi responsável por aprovar as contas de dois projetos da Fapeu nos quais estava listada como consultora: “Sistema de prevenção, controle e atendimento emergencial em acidentes com produtos na rodovia BR 101 trecho sul” e “Gestão Ambiental e Execução de Programas Ambientais na BR­ 386/RS”, o qual passa por sindicância no momento.

O atual presidente do Conselho de Curadores Milton Horn acredita ser antiética a participação de um conselheiro em algum projeto que ele mesmo vá aprovar. Milton contou também sobre as dificuldades que o Conselho vem tendo por conta de problemas da gestão da reitora Roselane Neckel (2012–2016). “Quando chegamos, tinha umas 580 análises de contas atrasadas. Agora, com a ajuda de dois contadores reduzimos para 440!”.

Chefe de Gabinete na gestão da Roselane, o professor Carlos Vieira diz que quando a gestão começou havia mais atrasos ainda. “O Conselho de Curadores tinha algo entre 700 contas atrasadas”. Buscando uma resolução, conta o professor, a gestão criou um novo setor, a Contadoria. Seis contadores ficaram responsáveis por analisar tecnicamente todos os novos contratos de fundações assim como os atrasados. O diferencial seria o fato do setor ser formado por pessoas capacitadas, que fariam análises puramente técnicas. Em teoria, isso ajudaria o Conselho de Curadores a dar pareceres mais precisos e com maior embasamento.

O setor foi criado em 2014 e extinto em agosto de 2016, quatro meses após o começo da gestão do Cancelier e seu pró-reitor Jair Napoleão, da Pró-reitoria de Administração (Proad), à qual o setor era vinculado. Para Jair Napoleão, a Contadoria nunca deveria ter existido, ao menos não vinculada à Proad. Pois, na sua visão, análise de contas das fundações não é dever da pró-reitoria, mas sim do Conselho de Curadores.

Milton Horn também desdenha da Contadoria. Ele acredita que o setor servia para passar por cima do Conselho de Curadores. “Antes de passar pra gente eles tiravam as dúvidas direto com a CGU, desrespeitando o Conselho”. Diferentemente da Controladoria, que em 2015 ressaltou o setor como positivo para manter controle dos gastos fundacionais, Milton acha que a Contadoria só serviu para “atrapalhar o Conselho, coisa da gestão anterior, né?”

Carlos Vieira acredita que essas visões negativas sobre o setor tenham origem no incômodo que ele causava. “As pessoas ficam constrangidas em aprovar contas que os contadores deram ressalva ou indicaram reprovação. De repente, você não pode mais aprovar convênios duvidosos”.

Apenas uma das contadoras procurados pela reportagem quis se manifestar, com a condição de que não divulgássemos seu nome. Ela explica que a gestão de Jair Napoleão na Proad engessou as ações da contadoria, fazendo com que os contadores se vissem obrigados a largar o setor. Jair se defende dizendo que a Contadoria se dissolveu organicamente. As pessoas foram saindo, não restando opção senão oficializar a extinção do setor. “A contadoria na estrutura organizacional nunca existiu, ela não foi extinta, ela apenas foi sumindo e não existe mais.”

A contadora, entretanto, conta que o verdadeiro estopim para a saída dos contadores se deu em 15 de junho de 2016, durante a análise das contas do projeto “Pesquisa, avaliação, desenvolvimento e metodologia integradora de portais educacionais da TV Escola e dos Portais de Conteúdos Digitais do MEC”. Nesse caso, quatro assinaram um documento questionando a validade legal do credenciamento à Fapeu das empresas Fácil, Viagem e Turismo; Metropolitana Turismo; e Atitude Turismo Quando somados os gastos com as três dava em torno de R$ 590.000. Ao invés de atender às questões, Jair respondeu aos contadores que “em nosso entendimento não cabe à contadoria fazer juízo de valor a respeito da lisura ou veracidade dos documentos apresentados pelas fundações (…)sugerimos que a contadoria se atenha apenas às prestações de contas dos convênios e contratos”.

Em respostas, os contadores levantaram que, segundo a própria legislação, “a prestação de contas deverá abranger os aspectos contábeis, de legalidade, efetividade e economicidade de cada projeto, cabendo à instituição apoiada zelar pelo acompanhamento em tempo real da execução físico-financeira da situação de cada projeto”.

A discussão cresceu a ponto de, em resposta, a própria Fapeu questionar a competência da Contadoria. Após desgastes, os contadores deram parecer contrário às contas do projeto. Esta foi a última análise de contas do setor.

O auditor-chefe da Audin enxerga resistência da comunidade acadêmica aos órgãos fiscalizadores em geral, não só à Contadoria. “Eles dizem que ‘tudo é burocracia’. Não estão olhando a função da fiscalização. Dizem as pessoas que ter mais controle trava, eu não acho isso!”

#Esta reportagem foi originalmente publicada na edição de novembro do Zero Jornal e faz parte do especial ‘Da denúncia anônima à crise institucional’.

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Matheus de Moura
Matheus de Moura

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre