Dia Nacional do RPG pra quem?

A festa é do hobby e o convite não é pra todos

Aline Silva
Matilha da Garoa
8 min readFeb 26, 2019

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(Arte por Olie B)

Eu tenho tantas coisas pra falar nesse texto que é difícil saber por onde começar, então vou tentar dividir em tópicos mais ou menos elencados. Vai ser um texto complexo e longo porque eu vou abordar vários assuntos que não geram discussões simples, mas tudo isso está conectado.

O Caso Aline

Na madrugada do dia 14 de Outubro de 2001, Aline Silveira Soares foi encontrada morta com 17 facadas no corpo, num cemitério em Ouro Preto. Ela tinha viajado com uma amiga e uma prima de Espírito Santo para a Festa do Doze — que acontece todo 12 de Outubro na cidade, com alunos e ex-alunos da UFOP.

Todos os suspeitos eram moradores da mesma república estudantil e as autoridades envolvidas na investigação foram rápidas em promover um linchamento midiático do RPG Vampiro, A Máscara. Segundo a versão deles, Aline teria perdido o jogo de RPG e a morte seria sua punição, num tipo de ritual Satânico promovido e encorajado pelo jogo. Obviamente, incriminar os estudantes e o jogo foi apenas uma resposta leviana e sensacionalista de um delegado de polícia que deparou-se com um caso extremamente chocante e se sentiu pressionado a dar uma resposta rápida para cidade e para as manchetes de jornal. O RPG foi temporariamente proibido pela Justiça, mas conforme o julgamento andava e ficava cada vez mais evidente que nem rapazes da república e nem o jogo tinham qualquer relação com o crime, o assunto foi esquecido. Os estudantes foram absolvidos e até hoje ninguém tem respostas sobre o que aconteceu com Aline.

Eu e uma amiga fomos lembradas do caso no Facebook enquanto tomávamos café na casa dela e fazíamos moldes para trabalhos com resina, na semana passada, 2 dias antes do Dia Nacional do RPG. Conversa vai, conversa vem — sobre como nossa polícia não tem recursos investigativos suficientes, como nossa mídia sensacionalista, preconceituosa e moralista é rápida em encontrar espantalhos para a fúria da sociedade indignada, sobre como é frustrante e terrível para a família que o caso tenha terminado sem que a justiça fosse feita para a jovem capixaba — ficamos com aquela sensação desesperançosa de que, no fundo, nós não estamos seguras dentro do RPG.

(A Verdade Saindo de Seu Poço, do artista Jean Léon Gerome)

1.830 por Hora

Ser mulher — cis ou trans — nesse mundão grande aí fora é uma batalha constante por si só. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou no dia 26 de Fevereiro os números de uma pesquisa bem alarmante a respeito da violência praticada contra a mulher no país: 27,4% das mulheres já sofreram algum tipo violência ou agressão física. Dessas, 76,4% disseram que essa agressão veio de alguém conhecido (companheiros, ex-companheiros, familiares, vizinhos ou amigos).

Em Novembro do ano passado a BBC publicou uma pesquisa encomendada pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês) que revelou que o lar é o local mais provável de uma mulher ser morta, baseando-se num monitoramento global sobre ocorrências de violência de gênero. Esses números são confirmados pela pesquisa do FBSP: 42% das entrevistadas disseram que as agressões aconteceram em casa. Mais da metade delas não denunciou as agressões.

De acordo com a pesquisa: “ Em valores absolutos, os resultados são assustadores. Segundo uma estimativa da pesquisa, são mais de 4,6 milhões de mulheres que sofreram uma agressão física (batidão, empurrão ou chute) propriamente dita no Brasil no último ano. O que dá, em média, 536 mulheres por hora. Para violências de qualquer tipo, são 16 milhões de mulheres — 1.830 por hora.” — confira a reportagem aqui.

Por quê esses dados são importantes?

Porque a gente tem MUITO que caminhar como comunidade.

Voltando para o caso Aline, uma moça no Facebook fez questão de lembrar sobre como a comunidade de RPG foi rápida em organizar um linchamento contra a memória da jovem assassinada, pautando-se unicamente nas palavras de uma jornalista que culpava a vítima pela própria morte ao dizer que teria sido um acerto de uma dívida de drogas que deu errado. Porque é claro que ia aparecer alguém culpando a vítima em algum ponto. Porque a mulher só é vítima de verdade quando é moralmente pura, perfeita e inocente. E a comunidade de RPG como um todo estava se mordendo pra aparecer alguém que lhes desse a licença de culpar o elo mais fraco e sem voz na história. Aline foi feita vítima várias vezes: quando foi assassinada, quando a justiça falhou em encontrar respostas para o caso e quando o tribunal social justificou sua morte através de um susposto consumo de drogas/práticas sexuais numa festa de universidade.

Se nem quando morremos de forma violenta temos nossos corpos e memórias respeitados, como podemos esperar que isso aconteça num jogo? Se nem o Estado e a Justiça estão preparados para nos acolher em caso de alguma agressão, como esperar que uma comunidade majoritariamente masculina e conservadora o faça?

A violência que Aline sofreu depois de ser vítima — ser desacreditada e julgada como mais ou menos merecedora de nossa piedade de acordo com o que fez ou não em vida — é uma outra violência muito comum contra mulheres. Uma que só desencoraja vítimas a buscar ajuda e denunciar seus agressores.

(a cara da Leia — e a minha — ao ver gente relativizando violência)

#METOO e o gênio criativo acima de qualquer crime

Nós vimos isso acontecer quando Mandy Morbid denunciou Zack Smith após 11 anos de agressões, violência psicológica e estupros. Ela está longe de ser a vítima pristina do imaginário Cristão, imaculada feito a Virgem Santa e, portanto, imediatamente merecedora de toda nossa simpatia. Então o tribunal da comunidade de RPG foi rápido em questionar a veracidade da denúncia. Como uma pessoa fica 11 anos vivendo com um agressor até vir a público e denunciá-lo, afinal de contas? Com certeza é só umazinha querendo aparecer. O conto da falsa denúncia é a falácia favorita das pessoas que questionam a versão da vítima e a colocam em xeque, mesmo que apenas 0,01% de todas as denúncias sejam realmente apuradas como falsas.

E uma vez que as denúncias são de fato apuradas como verdadeiras, ainda existe uma resistência muito grande da sociedade em punir seus “gênios”.

Isso aconteceu com as denúncias contra Wood Allen, Harvey Weinstein, Johnny Depp e obviamente Zack Smith não foi exceção.

As pessoas são muito rápidas em falar sobre separar o autor da obra para continuar consumindo o conteúdo de um abusador, qualquer que seja o conteúdo em questão. Todos sabem que ele ‘passa da conta’ quando vê um rabo de saia, mas ele é um excelente produtor. O que é que tem ele ter ‘casado’ com a filha adotiva e muito mais nova? Eles se amam.

O que elas não percebem é como essa sensação de impunidade só colabora para que as vítimas não denunciem agressões e abusos. Passar pano pro seu amigo que fala uma groselhas sobre mulheres faz parte dessa cultura. Continuar amigo do cara que você sabe que foi um babaca com a ex-namorada também faz parte dessa cultura. Agressores sempre contam com uma rede de apoio maior e mais sólida do que as vítimas e isso tem que acabar.

Os posicionamentos das editoras de RPG frente à denúncia de Mandy não poderiam ser mais desoladores. Até o fechamento desse texto, pode-se contar nos dedos de uma mão as editoras e profissionais de RPG que de fato declararam a retirada de seu apoio/colaboração com Zack Smith.

(Não pensem com isso, porém, que eu acredito que pessoas estão além de qualquer redenção. Muito pelo contrário. Mas pra que as pessoas se redimam de um crime elas primeiro precisam admiti-lo e não é o que se viu em nenhum dos casos envolvendo os nomes que citei.)

(The Dawn Will Come… eu espero!)

E o que podemos fazer pelo RPG?

Não se enganem: eu acho ótimo ver como o RPG cresceu nesses últimos anos.

Mais produção, mais conteúdo, mais jogadores. Canais no YouTube dedicados exclusivamente para RPG, streaming de mesas, podcasts, um mundo de pessoas girando em torno dos jogos e sistemas.

O que me entristece profundamente é perceber que esse não é um espaço tão assim mais seguro para mulheres (e outras minorias) do que era alguns anos atrás, quando comecei a jogar (por acaso, 18 anos atrás também). Se fala mais sobre inclusão e segurança em mesas de jogo, mas se faz pouco.

Pra mim o maior exemplo recente disso é a quinta edição de Vampiro. O jogo foi lançado e a editora prometeu um guia sobre segurança em mesas, afinal de contas ele trata de assuntos adultos e pesados e que muitas vezes podem ser gatilho de alguém, e até agora nada. Quando colocamos na conta o conhecido histórico deles em assoar o nariz com assuntos delicados em busca de manter uma imagem contraventora e chocante e dark e má e violenta — Mundo das Trevas, oras — já estou duvidando de que isso sequer aconteça. Olhando assim, os esforços em chancelar um evento de proporções continentais no dia Internacional da Mulher me soa apenas como uma piada de muito mal gosto ou apenas outro sinal do completo apagamento que passamos enquanto indivíduo na sociedade.

Mas nós precisamos continuar falando sobre as coisas que nos são importantes dentro do RPG. Precisamos continuar dando voz às pessoas que fazem um trabalho sério, consciente e criativo. Nós precisamos continuar ocupando esse espaço e ocupá-lo cada vez mais, pra que não nos esqueçam ou apaguem. Não estamos loucos por exigir tratamento humano básico. Por querer ser respeitado como indivíduo independente das roupas que vestimos, das pessoas que amamos ou nossas vidas sexuais.

Eu comecei esse texto focando na Aline e em violência de gênero, mas racismo, transfobia e homofobia também são problemas dentro da comunidade de RPG. Nossos corpos e nossas existências não são fetiches narrativos pra serem distorcidos ou torturados em nome de uma história vazia ou enredo preguiçoso cheio de tropos ofensivos. Nossa dor é real e não pode ser romantizada impensadamente ou explorada como trampolim para que algum homem impulsione sua evolução. E nós temos que cobrar isso das pessoas que criam conteúdo ou criar o conteúdo nós mesmos.

Usem suas vozes pra apontar os erros de seus amigos. Não só homens, mas LGBTs e minas também podem ser machistas e tóxicos. Desconstruam suas próprias noções tóxicas sobre masculinidade, sobre “o que um homem” ou “o que uma mulher” deveria fazer, sejam gentis e empáticos consigo e com os outros.

Essa luta é de todos nós.

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