Museu da Memória Americana
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7 min readAug 30, 2019

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Plácido conquistou a torcida do América ao jogar com o braço quebrado, há 80 anos

Momento histórico: Plácido Monsores ao centro, com o braço quebrado | Foto: Globo Esportivo

Placido Monsores foi um dos destaques da campanha do América no Campeonato Carioca de 1935, mas seu feito histórico mais relevante no clube ocorreria quatro anos depois, quando quebrou o braço em um jogo contra o Vasco. Mesmo assim, ele insistiu em continuar jogando, para não deixar o América com apenas dez jogadores. Em campo, ainda sofreu um pênalti e ajudou a consolidar a vitória. Para relembrar o feito, recuperamos uma matéria de Walter Salles, publicada na Revista do América de julho de 1975. Boa leitura.

A história de um braço quebrado, um exemplo do heroísmo americano

— Eu, como autoridade policial, proíbo que o senhor jogue com esse braço quebrado.

O Dr. Dulcídio Gonçalves Delgado, auxiliar de serviços no estádio do América, foi incisivo com o jovem atacante americano, mas não contava com a resposta igualmente categórica do jogador.

— Se o senhor é autoridade, quero lhe comunicar que sou maior de idade e como tal assumo inteira responsabilidade por meus atos.

O delegado ainda tentou argumentar, mas nada valeram suas palavras. Plácido Monsores voltou ao gramado com o braço entalado (era assim na época) e usando uma tipóia, sob intensa ovação e grande emoção de toda a torcida presente.

E o jogo continuou. O América vencia o Vasco por 2 a 1, jogados àquela altura cerca de 15 minutos do segundo tempo. Plácido do, como se nada tivesse acontecido, disputava normalmente a partida, jogando entre os beques adversários, que, inibidos ante a presença de um jogador naquelas condições, não eram os mesmos. Mas Plácido era o deu sempre. Corria e deslocava-se com a agilidade que lhe era característica. De repente, uma bola metida em profundidade, e ele a alcança na entrada da área, partindo livre para marcar o gol. Zarzur, que já havia quebrado seu braço, aplicando-lhe uma cama de gato, chega a pensar em deixar que a jogada prosseguisse, mas entre a admiração pelo heróico esforço do adversário e o dever profissional, faz pênalti. Era o terceiro gol do América, e o surgimento de um herói da história americana. E co mo diz o próprio Plácido: — Um clube sem história é um clube sem alma.

TÍTULOS INESQUECÍVEIS

Plácido Monsores no centro da imagem, de lado | Globo Esportivo

Plácido vive hoje em Mangaratiba, curtindo uma saudade mais do que justificada. Ele foi protagonista de duas conquistas realmente inesquecíveis: o campeonato de 33 pelo Bangu e o de 35 pelo América.

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Sua transferência para Campos Sales, em fins de 34, foi uma autêntica bomba nos meios esportivos. Para Plácido a partida com o braço quebrado não foi a grande emoção de sua carreira esportiva. Para ele, uma das maiores foi a estréia com a camisa rubra, que desde os tempos de Bangu sonhava em vestir. Foi um jogo contra o Fluminense, vencido pelo América por 4 a 1, tendo ele Plácido, assinalado um ou dois gols, não se lembra bem. Outra recordação imorredoura: a conquista do Campeonato de 1935, especialmente a partida contra o Fluminense, não a decisiva, mas sem dúvida a mais sensacional de todas elas. Plácido fez dois gols, na vitória de 6 a 5, com alternativas espetaculares. Fizemos 1 a 0. O Fluminense empatou e fez 2 a 1. Voltamos a empatar, mas o Fluminense sempre conseguiu passar à frente, marcando 3 a 2, 4 a 3 e 5 a 4, até que nos minutos finai s da partida, empatamos e marcamos 6 a 5, sob palmas inclusive da torcida tricolor, que àquela altura se despedia praticamente do título.

A trajetória de Plácido com a camisa vermelha foi sempre pontilhada de sucesso e muitos gols. Jogador fino no trato com a bola, habilidoso dentro da área, dificilmente perdia gols quando as oportunidades surgiam. Plácido não revela, mas sente-se que guarda mágoa por não ter sido convocado para a seleção brasileira de 38. Pimenta preferiu Niginho, do Cruzeiro, e acabou não podendo escalá-lo quando Leônidas se contundiu. Quem sabe se Plácido tivesse ido não estaríamos hoje festejando um quarto título mundial, em vez do tri tão decantado.

TESTEMUNHO HISTÓRICO

Sobre a partida do braço quebrado, muito se falou e muito se escreveu, mas somente agora Plácido dá seu próprio testemunho dos acontecimentos daquele dia memorável.

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— Ganhávamos a partida de 2 a 0 quando sofri uma cama-de-gato do Zarzur e caí em cima do braço. Imediatamente fui levado ao vestiário, onde o Dr. Alcebíades constatou a fratura, que era fácil de diagnosticar pelo estado do meu braço. Não havia gesso e o jeito foi imobilizar com talas de papelão.

Dr. Alcebíades deixou você retornar a campo?

— Não. Ele não queria de forma alguma, temendo que a coisa se agravasse. E não era só ele que não queria. Todos os que participaram do problema fizeram mil apelos para que eu fosse para o hospital e esquecesse a partida. Mas o Vasco já havia descontado para 2 a 1, e eu tinha certeza que com 10 jogadores não conseguiríamos evitar o empate iminente. Por outro lado, sabia que minha volta prenderia os zagueiros ou pelo menos um deles em sua própria área, facilitando o nosso trabalho.

— No vestiário, contudo, não foi o pior. Quando voltei ao gramado com o braço na na tipóia, o Delegado queria impedir a todo custo que eu entrasse no campo. Precisei ficar brabo para conseguir o meu intento. E não foi somente o Delegado. Também os jogadores do Vasco pressionaram o juiz e o próprio policial alegando que não podiam se responsabilizar pelo que acontecesse dali em diante. Depois de muito falatório e não havendo, naquela época, nenhuma lei que me impedisse de jogar com o braço quebrado, voltei mesmo.

— Teve medo ou algum problema maior?

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— Confesso que nos primeiros minutos fiquei meio acanhado, inibido. Mas com o correr do jogo até me esqueci do braço e fui jogando como se nada tivesse acontecido, embora meu equilíbrio estivesse prejudicado. As palmas da torcida toda vez que eu pegava na bola foram outro incentivo para que eu esquecesse tudo e só pensasse na vitória.

— E os jogadores do Vasco, como se portaram?

— A princípio cautelosos, evitando mesmo tocar em mim. As facilidades com que me concediam, no entanto, acabaram por tumultuar inteiramente a sua defesa. Eu recebia a bola sempre livre e armava todas as jogadas como bem entendia. Aí eles passaram a soltar o sarrafo, como se eu estivesse bom mesmo. Não os condeno. Talvez eu mesmo na situação deles não tivesse outra escolha.

— E o pênalti?

— Foi uma consequência natural da liberdade que eles me vinham dando. Recebi livre na entrada da área e parti para o gol. Não houve outra alternativa senão calçar.

— Esperou pelo pior?

— Confesso que não. Caí realmente em cima do braço fraturado, mas não houve nenhum problema senão o de limpar a poeira.

SANGUE, SANGUE, SANGUE

— O resto da história acho que todo mundo sabe. Saí do campo para o hospital, onde o Dr. Mário Jorge engessou meu braço. Só então vim a saber que havia sofrido uma fratura dupla no antebraço esquerdo. Mas valeu a pena. As palmas, o carinho da torcida, jamais poderei esquecer.

Quem viu tudo isso dentro de campo foi Carola. Um dos grandes ídolos americanos de todos os tempos, Carola, tal como Plácido, é um exemplo de amor e dedicação ao clube, como poucos existem. Tão grande foi e é seu amor pelo América, que jamais conseguiu se desligar dele, mesmo depois de descalçar as chuteiras. Carola hoje é funcionário administrativo do clube. Um quebra-galho para o que der e vier.

Pedimos a Plácido e a Carola que fizessem uma análise daquela equipe com a atual, especialmente em termos de luta e fibra. A resposta foi quase que uma só:

— Mesmo naquela época já sofríamos na carne o problema das arbitragens. Tínhamos que lutar e muito para conseguir nossos objetivos.

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E Carola acrescenta, por ele mesmo:

— O exemplo de Plácido naquela partida foi sensacional, mas se vocês analisarem a história do América vão encontrar outros exemplos extraordinários, embora não tenha havido outro braço quebrado para torná-los tão famosos. Plácido sempre foi um exemplo de correção profissional e o seu gesto naquele dia não chegou a causar surpresa para seus companheiros de equipe.

Amigos até hoje, Plácido e Carola, mesmo distanciados pelas atividades diferentes que exercem, dão um conselho aos atuais jogadores americanos:

— Esqueçam os juízes e tratem de jogar a bola que sabem. Eles nunca foram e jamais serão nossos amigos. Companheiros, tivemos sempre a bola e a fibra. Com os dois conseguimos vitórias e títulos e vocês têm tudo que tínhamos para conseguir o mesmo.

Curadoria: O atacante Plácido Monsores jogou no América entre 1935 e 1943. Quando pendurou as chuteiras, seguiu carreira de treinador, dirigindo a equipe principal do clube em 1956. Morreria em dois de julho de 1977, aos 64 anos, dois anos após essa entrevista.

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