ON THE ROCKS

Réu Confesso

Walter Hupsel
Microphonia
Published in
4 min readJul 8, 2020

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Planta do Cemitério de Módena — Aldo Rossi.

Causou celeuma o articulista Hélio Schwartsman publicar um artigo em que diz que torce pela morte do Excrementíssimo Presidente que estaria, segundo o próprio (compre a versão quem quiser… não eu), com Covid-19.

Em seu texto, Hélio Schwartsman defende uma simples ética utilitarista / consequencialista na qual o que importa é o resultado das ações, ou seja, o parâmentro para o julgamento do bom/mau é se a ação provoca mais bem do que mal. Para Hélio, a morte do presidente evitaria a morte de dezenas ou milhares de pessoas que estão sendo vítimas da COVID-19 e do negacionismo do governo com a pandemia.

Em um simples cálculo, Schwartsman afirma que a morte de uma pessoa salvará uma quantidade enorme de outras do mesmo destino, logo é sim desejável.

Um amigo, cientista político, logo lembrou do dilema do bonde, um clássico da ética:

Um bonde está fora de controle em uma estrada. Em seu caminho, cinco pessoas amarradas na pista por um filósofo malvado. Felizmente, é possível apertar um botão que encaminhará o bonde para um percurso diferente, mas ali, por desgraça, se encontra outra pessoa também atada. Deveria apertar-se o botão?

Como imagem, o dilema procede, mas como analogia ele tem uma falha. A Schwartsman não está dada a possibilidade da ação, não há botão para ele apertar. Ele apenas disse “torcer” para o vírus contra o corpo do excrementíssimo presidente (Thiago Amparo publicou um texto com a mesma falha, confundindo desejo e ação) .

(Ah, me perdoem mais um parentêses. Dois dos livros mais mal entendidos da história são O Princípe e Raízes do Brasil. Nem Maquiavel defendeu o “os fins justificam os meios” e nem Sérgio Buarque falou que o cordial é gentil… mas isso é pra papos futuros).

Entender assim é não se lembrar da diferença entre desejo e realização, potência e ato, é esquecer da lição de Rui Guerra:

Se trago as mãos distantes do meu peito

É que há distância entre intenção e gesto

De imediato apareceu um tal ministro da justiça afirmando que iria investigar a torcida do articulista com base na lei de segurança nacional… (a lei… AH, A LEI!). Se o texto de Schwartsman não me assustou, não mexeu com as minhas categorias de bom ou mau gosto, a manifestação do tal ministro me atemorizou bastante.

Estamos aqui para além de Kafka (ou Kafta, como falou um ex ministro). Não é que não saibamos, tal como Josef K., o porquê da perseguição. Para esse governo os DESEJOS podem sim serem perseguidos e enquadrados em alguma lei.

Não há palavras na filosofia ou na ciência política para descrever uma máquina estatal que persiga DESEJOS, até porque é impossível. Tais conjecturas só imaginávamos na ficção destópica de Burroughs, Orwell ou Huxley.

Fascismo, absolutismo, totalitarismo me parecem pouco diante de tamanha distopia real.

Da minha parte, eu não desejo a morte do excrementíssimo presidente. Meus 5% kantiano tendem a ver o utilitarismo como uma praga a ser combatida, enxergar no ser humano um fim em si mesmo. Já até teci elogios à inutilidade com base em Immanuel.

Desejo a enfermidade, o definhamento e o restabelecimento. Não terá nenhuma consequência prática, nem mesmo pedagógica, já que ele é incapaz de aprender algo, mas terá em mim um quê de prazer. Sou humano e deixo a ascese para a hagiografia.

Desejo que ele fique vivo para que enfrente os julgamentos dos livros e tribunais. Desejo que permaneça vivo e debilitado, vendo no espelho o tal passado de atleta completamente esvaído. Se vendo frágil e covarde. Isso me dará mais prazer que a sua morte.

Sou desejo. Somos desejos. A eterna busca por esse lugar inerentemente vazio é que nos faz vida, nos faz humanos.

Acima está descrito o que eu desejo. Outros tantos não são publicáveis. Se torcer para sofrimento de alguns, por qualquer motivo ou ética que seja, é crime contra a segurança nacional, então sou réu confesso.

Não apertarei botões e não escolherei por qual trilho o bonde passará, mas fico no lado da arquibancada escolhida e empunhando bandeiras.

Assumo minhas condições, meus pensamentos, minhas dualidades e contradições. Assumo também minha moral e meus limites éticos, e não tenho vergonha alguma de explanar alguns dos meus anseios.

Vergonha tenho é do que o Brasil se tornou (ou se mostrou ser), desse governo, do ministro da justiça orwelliano. Assombrado por tudo isso, a mim resta o gozo de torcer que esteja mesmo contaminado e ver o vírus e os tribunais pegarem de jeito o presidente.

Walter Hupsel para o Microphonia

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Walter Hupsel
Microphonia

Cientista político, punk, anarco… uma caralhada de moléculas em choque constante. Aqui é barulho, dissonâncias e muito fuzz. Só JESUS (AND MARY CHAIN) SALVA!