BANDA DESENHADA

Vozes Que Me Inspiram: Beth Gibbons

André Lissonger
Microphonia
Published in
4 min readMay 19, 2020

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Retorno à mini-série sobre as vozes que ouvi, me surpreendi e me inspiro para compor e cantar, resgatando, dessa vez, outra das minhas maiores musas cantoras: Beth Gibbons.

Entre o final dos anos 90’ e o início dos anos 2000 a estética Trip Hop já estava consolidada. Eu curtia os Massive Attack, os Morcheeba (assunto para outra resenha), e estava amando a nova fase inglesa após o “boom” do grunge estadunidense.

Aquela cena inglesa havia solidificado a sofisticação do uso dos recursos eletrônicos aliados aos timbres analógicos. Novos grupos souberam atualizar as sensações sonoras da tradição britânica dos dubs. E, sobretudo, conseguiam trazer uma tensão sonora pós-punk ao hip hop, como contraponto ao eletrônico reinante dos idos 90' na Europa.

É nessa atmosfera em que, além de Gibbons, também reinaram as vozes de Tracey Thorn, Skye Edwards e Liz Fraser — algumas musas das minhas crônicas Vozes Que Me Inspiram.

Nas primeiras notas que ouvi do Portishead, grupo que consolidou a carreira de Beth Gibbons, me encontrava em meio a um pesadelo obscuro e aterrorizante. Trilha de suspense de um filme compassado pelos marcantes baixos e violoncelos acompanhados de ruídos os mais estranhos na escuridão.

No breu do sonho insistia o beat de zumbi arrastando corrente. Scratches de sapos e grilos eletrificados. E, “do meio do nada”, solos bluesy de um guitarrista com a mesma elegância de Joniel Franco.

Mas, em meio a tudo isso, até a voz soar… ou encarnar na personagem.

E lá, no esquisito onírico da minha madrugada, estava Beth! Cantava desesperadamente que ninguém mais a amava. Mas cantava tão desesperada e magistralmente, a ponto de eu acreditar que aquilo não era um sonho.

Passei a acreditar, embriagado por Morfeu e Psiquê, que eu precisava resgatá-la daquele pânico quase demente.

Take a ride, take a shot now

Cos nobody loves me, it’s true

Not like you do.

Tentei puxá-la longe dali, ou para fora do sonho… mas, de modo impressionante, a melancólica diva usava dos mais incríveis artifícios de encantamento com a sua voz e interpretação. Uma cena composta e vigiada pelos olhares indiferentes vindos da efusiva orquestra de cordas acústicas, elétricas, teclados, samplers e pickups.

Absolutamente trágicos e sinceros, me convenciam de uma frágil condição quase que nos braços de Hades. O que fazer com a minha impotência diante desse ritual?

Aquela voz voltava ironicamente aos timbres da puberdade e depois retornava adulta e madura desabando o sofrimento da perda do seu verdadeiro amor…

Just

Give me a reason to love you

Give me a reason to be… A woman

I just wanna be a woman

Naquela situação eu já estava morrendo de medo que eguns ali aparecessem. O grupo de musicistas vestido(a)s de preto embalava, sem pressa, lentamente, com cadência e sem explosão sonora, uma incrível ambiência melancólica mesclada de jazz, blues e pós punk.

Com isso, a Sereia do Estiges insistia!

It’s only you

Who can tear me apart

And it’s only you

Who can turn my wooden heart

Acordei do sonho. Para a minha surpresa estava na cama do Motel Love Story, no Bixiga (São Paulo/SP). O leito estava uma bagunça, cheio de sacolas pelo chão. Suado e sonolento, cansado de não ter dormido o suficiente, de ressaca. Fiquei lembrando o sonho e permaneci deitado, tentando ser racional no meu torpor.

Beth Gibbons é uma mezzo soprano britânica, nasceu em 1965. Considero três aspectos relevantes em sua performance:

  1. O domínio técnico das notas, altas e baixas, e suas modulações nas três oitavas do seu alcance vocal.¹
  2. A exploração da timbragem de voz que evoca ambiências trágicas, melancólicas, tensas, e, por vezes, até situações irônicas.
  3. E, sobretudo, o alto poder de interpretação articulado com o trabalho vocal. Em meio a uma espécie de fossa sofisticada, ela canta com a alma, o coração, e o feeling sai pelos poros. As expressões dos seus olhos, da sua face, os movimentos do seu corpo, encarnam o drama.

Toca agudo e insistente o despertador.

No criado mudo o velho Citizen, fosco cinza esverdeado, que lembrava os olhos de Danielle, me despertou de vez.

— Sonho invocado foi esse?

Ainda sonolento levantei dessa vez. Subitamente vi os dois CDs importados adquiridos na loja Baratos Afins da Galeria do Rock no início da noite anterior.

Os Portishead não eram um sonho… e minha musa estava lá!

Desde aquela noite, até hoje, me continuam seu jazz and soul super arrastado, e zunindo arranhões de unha de gato em um velho vinil, enquanto os Run DMC insistem em “sussurrar” em meu ouvido:

#fififfifefecox#*v#!x** xxfiffefefecco# v*~#* xv#*~#*… (Scratches).

It’s like that! ffifefecofefeco*…²

It’slikethat!!!

(…)

¹ Referência The Vocal Range of Beth Gibbons (Portishead).
² Scratches com “It`s Like That” do Run DMC em “Only You”, do Portishead ao vivo no Roseland BallRoom NYC. Cf. a citação em Only you e a performance completa da banda em Roseland New York.

André Lissonger para o Microphonia.

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André Lissonger
Microphonia

Microphonia editor and reporter . Architecture . Urban planning Professor . Rock music . Urban sketchers . Art