O sentido da vida, segundo o Gita — Parte III

Natri (Fabio Natrieli)
MIND o>er matter
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25 min readFeb 26, 2021

Qual o sentido da vida?

Como algumas das principais tradições humanas responderam a esta pergunta?

Nos primeiros dois artigos sobre o Bhagavad Gita, nós introduzimos alguns conceitos do hinduísmo e comentamos sobre o contexto da história do Gita.

O resumo é o conflito que o guerreiro Arjuna sente em se empenhar numa guerra entre duas famílias, da qual ele faz parte, que disputam o poder sobre o reino. O problema é que ele conhece muitas pessoas de ambos os lados. Independente de quem vença, ele sabe que o resultado da guerra vai gerar sofrimento para aquelas comunidades.

Diante deste dilema, ele não sabe o que fazer.

Para a sorte de Arjuna, o seu cocheiro é ninguém mais ninguém menos que Krishna, o avatar do deus Vishnu (Vixnu, Vixenu), um dos principais deuses do hinduísmo.

Cabe lembrar que, como falamos no primeiro texto, o hinduísmo é uma simplificação que usamos para descrever um conjunto de doutrinas. Aqui, talvez a palavra mais exata fosse chamá-lo de Sanātana Dharma.

O hinduísmo tem, na maioria das suas doutrinas, um caráter politeísta, ou seja, tem muitos deuses. Contudo, existem três "principais" deles que, curiosamente, também formam uma trindade, a trindade sagrada do hinduísmo: Vishnu, Shiva e Brahma.

Vishnu é responsável pela sustentação do Universo. É através dele que o Universo é criado. Na mítica do hinduísmo, o processo de criação e destruição do universo é cíclico. Brahma cria o universo através de Vishnu, que depois é destruído por Shiva, para ser recriado novamente da mesma forma.

Krishna, portanto, Vishnu, uma divindade, afirma que Arjuna deve cumprir o seu dever, que é o de lutar, porque ele é da casta dos guerreiros, porque isso é o certo a fazer, que ele está pensando em coisas pequenas, em coisas relativas, quando o certo deveria asusmir a sua posição pensando no contexto maior.

Neste momento, Krishna apresenta um conceito muito importante do Gita: a ideia de svadharma.

Aprofundamos então sobre o conceito de svadharma, o dever sagrado e pessoal que todo o homem tem em relação à sua posição na vida, seja pessoalmente, como um pai ou mãe de família por exemplo, ou ainda, profissional ou socialmente. Vimos também que, ao longo da vida, todos estes fatores tendem a entrar em rota de colisão em algum momento, entre o "querer" do indivíduo e seu "dever" para com os seus próximos e também o seu "dever" em relação a algo maior.

O que vimos nos dois primeiros artigos é que a resposta que Krishna dá para enfrentar estes dilemas, que todos temos no dia a dia, quando temos de fazer escolhas difíceis, por vezes profundamente existenciais, é desenvolver um tipo de liberdade de ação, de independência, mas que não é a liberdade que o mundo moderno ocidental contempla, de ser livre para fazer o que bem se deseja, quando se quer.

A liberdade no Gita é uma consequência da disciplina (yoga). Ou, mais especificamente, três tipos de disciplinas: a disciplina da ação (karma yoga); a disciplina do conhecimento (jnana yoga); e a disciplina da devoção (bakhti yoga).

Estas não são disciplinas alternativas. Elas têm de ser vivenciadas de forma conjunta.

Afinal, não faz sentido agir sem ter consciência da razão da ação. Além disso, ainda dentro da perspectiva do Gita, toda a ação consciente tem uma dose de respeito por algo maior, um tom de sacrifício até, quando o homem coloca a sua ação acima do seu eu, das particularidades, homenageando uma causa maior, algo além de si mesmo, como quem vai fazer algo solene, para cumprir o que deve ser feito, dentro de uma lei, uma ordenação cósmica maior, livre das influências externas do desejo e apego.

A aplicação deste conhecimento, a prática destas 3 disciplinas, é parte da "receita" que Krishna oferece para quem busca uma vida com sentido. Uma vida que aponta para algo maior que nós mesmos, que não esteja centrada no eu, no ego, na busca da satisfação dos desejos pessoais.

Neste sentido, viver para satisfazer os desejos é viver escravo das circunstâncias, dos estímulos que nos acontecem, não algo que a gente faça.

Sem a liberdade, que advém da disciplina, estamos fadados a sermos joguetes nas mãos do destino, parafraseando o Romeu de Shakespeare.

Portanto, o que o Gita está propondo é colocarmos atenção em duas coisas: em nós mesmos, em refletir, pensar e decidir todas as nossas ações, imbuídos de respeito, e treinar a mente para ver as coisas de uma perspectiva maior, em contextos mais amplos, para além da nossa tendência para imediatismo.

Para alcançarmos isso, precisamos primeiro conhecer a nós mesmos, compreendermos qual é o nosso papel no mundo e cumprir o nosso dever pessoal (svadharma) e, preferencialmente, feito isso, alinhá-lo com o jeito certo de fazer as coisas, com o caminho correto, a lei universal (dharma).

Ou seja, devemos agir de forma consciente, com objetivo de interagir com o que é permanente, imutável, perene e não focar nas coisas pequenas, fúteis, transitórias e relativas.

Esta é, em certa medida, o resumo da mensagem do Gita, da primeira parte do texto. Mas existe outra seção do texto, também muito relevante, que é a Teofania de Arjuna.

Uma epifania "é um sentimento que expressa uma súbita sensação de entendimento ou compreensão da essência de algo".

Teofania é o mesmo que uma epifania, mas com Deus. Ou seja, é uma revelação de Deus, quando Ele se revela a si mesmo.

Durante parte do texto, Krishna não é considerado um deus por Arjuna, mas um mestre, um homem sábio. Somente ao longo do texto que ele vai se revelando. Nas passagens que iremos aprofundar hoje, tem como objetivo justamente revelar a manifestação divina de Krishna e, em outras palavras, a própria natureza da divindade, a realidade de Deus.

Além de ser uma parte relevante e indispensável do Gita, o que falarmos agora sobre a teofania nos será particularmente útil quando estivermos falando sobre o sentido da vida dentro de uma perspectiva moderna, com base nos conhecimentos modernos sobre o cérebro e achados da psicologia e experiências de epifania.

Na teofania, Krishna mostra como Arjuna pode se integrar com a Unidade, uma integração com o divino. Mas aqui, vamos estender esta compreensão para além do literal.

Levar um texto belo e poético como o Gita ao pé da letra, e se deixar contaminar por preconceitos ideológicos ou religiosos, é limitar a compreensão de um texto sofisticado pela régua do conhecimento relativo de cada um.

O que estamos querendo dizer é que, quando Krishna fala de integrar com a Unidade, isto também pode ser interpretado como uma integração com o universo, ou, em outras palavras, uma integração cósmica. E isso, por sua vez, é integrar-se com o divino. Veremos isso mais adiante.

Para tanto, vamos voltar para o ponto inicial. Na sua primeira parte, que tratamos acima e nos textos anteriores, o Gita está falando de um sentido da vida no âmbito mais palpável à humanidade, quase como uma receita de bem viver, em termos bem mundanos.

De um lado, temos esta ideia de cumprir o dever pessoal e fazer isso com desapego. Fazer o trabalho, cumprir o seu dever sem esperar desfrutar do fruto do trabalho. Mas aqui, temos um conflito que frequentemente emerge do cumprimento deste dever.

O dever pessoal é, por definição, intrinsicamente particular. O meu dever como professor é ensinar, o seu, como médico, cuidar das pessoas. Entretanto, ao mesmo tempo, não é um dever que está personalizado única e exclusivamente na minha pessoa. Qualquer professor que ocupe o meu lugar tem de cumprir este mesmo dever da melhor forma.

Do outro lado, temos dois polos, entre a ideia de liberdade e da disciplina. A liberdade que nos permite fazer escolhas significativas não é a liberdade de fazer escolhas de forma arbitrária, de fazer tudo aquilo que desejamos, de seguir os nossos desejos. É uma liberdade de não ter desejo, não de atendê-lo e de sucumbir diante dele.

Os desejos, dentro da perspectiva do Gita, são autônomos a nós, são fatos que estão fora da gente e do nosso controle; desejos são impulsos que nos dirigem, que nos guiam na vida, se nós assim permitirmos.

Então, para o Gita, a verdadeira liberdade é aquela que permite com que o indivíduo afaste os desejos de si, tenha-os sobre o seu domínio. O indivíduo se torna senhor de si e age não por conta da influência externa que recebe, mas de dentro para fora, através do seu Eu.

As três disciplinas (os três yogas) podem ser compreendidas como um método para atingirmos esta liberdade de ser, ou seja, tomarmos decisões e agirmos com consciência, com conhecimento.

Isso significa agir dentro de um contexto maior, visando não aquilo que é pessoal, particular, mas grandioso, alinhando-se com a lei universal das coisas, integrando-se com o cosmos, como um todo.

Contudo, tudo isso que dissemos até agora diz respeito a uma forma de atuação mundana do homem. É um pensamento sofisticado, elaborado, nobre até e visa elevar a vida do homem sem dúvida, mas até agora, até esta parte do texto, tudo o que foi dito é praticamente uma receita de como caminhar pela vida de uma forma muito prática e mundana.

Agora, nós vamos abordar a coisa de uma perspectiva transcendental.

Um jeito de olhar o conhecimento do Gita é pensar que tudo o que é real, tudo aquilo que nos cerca é ilusório. Este é o conceito de maya (a realidade ilusória do mundo material) que falamos mais apropriadamente no artigo anterior.

Então, é fácil cair em certo desânimo quando se entende isso. Afinal, se tudo é relativo, superficial e ilusório, qual a diferença entre viver bem, de forma honrada ou viver de forma egoísta?

Apenas os seres iluminados, que enxergam uma realidade além, transcendental que são capazes de ver o mundo como ele é?

Não! Esta é a beleza do ensinamento contido no Gita sobre o significado da vida.

O ponto que o Gita propõe é justamente o contrário. A vida, a própria existência de tudo, já contém em si toda a beleza, espiritualidade e significado nela mesma. Nós só precisamos abrir os olhos para notar isso. Não é ver além, é ver o todo. Vou explicar isso abaixo conforme a teofania de Krishna acontece.

A existência do universo é muito é mais próximo do perfeito que a inexistência. Nós, entretanto, acostumados com a própria existência, tomamos a vida como algo que nos é garantido, natural, dado como certo. Algo acidental, trivial.

Quando buscamos o sentido da vida, estamos procurando por algo além, sem perceber que o sentido está justamente onde tudo está acontecendo! O universo, a sua própria existência, já tem um sentido em si, já está imbuído de espiritualidade. Não há qualquer necessidade de procurar significado em algo além.

Dentro da perspectiva do Gita, nós não precisamos buscar muito mais a fundo, nós só precisamos enxergar o óbvio. Basta olharmos ao nosso redor. A existência de tudo que há já contém, em si, significado!

Vamos ao texto do Gita, extraído do Capítulo 9 do livro. Lembre-se, aqui, o contexto é a teofania de Krishna, ou seja, quando ele se revela à Arjuna não meramente como um sábio cocheiro, um mestre espiritual, mas como Deus. Diz ele:

VERSO 4: Sob Minha forma imanifesta, Eu penetro este Universo inteiro. Todos os seres estão em Mim, mas Eu não estou neles.

VERSO 5: E mesmo assim, os elementos criados não repousam em Mim. Observe Minha opulência mística! Embora Eu seja o mantenedor de todas as entidades vivas e embora esteja em toda a parte, não faço parte desta manifestação cósmica, pois Meu Eu é a própria fonte da criação.

VERSO 18: Eu sou a meta, o sustentador, o senhor, a testemunha, a morada, o refúgio e o amigo mais querido. Sou a criação e a aniquilação, a base de tudo, o lugar onde se descansa e a semente eterna.

Vamos analisar essa passagem que tem um ponto específico que devemos tratar. Especialmente um trecho:

Todos os seres estão em Mim, mas Eu não estou neles.

Preste atenção à frase acima. O que ela está dizendo?

Novamente, a recomendação é não se prender a uma leitura ou interpretação estritamente religiosa do texto, mas tê-la em um sentido mais amplo e poético.

Vamos à uma possível interpretação: tudo o que existe no universo, absolutamente tudo, todos os seres vivos, ou seja, nós, os animais, um cachorro, uma bactéria, um cavalo bem como todas as coisas, um grão de areia, computadores, mesas, cadeiras, carros, cidades, tudo isso existe dentro de um contexto maior, de um todo. Tudo está compreendido dentro deste todo cósmico. Eu, você, abelhas, carros, planetas, galáxias, tudo!

E a importância que todas estas coisas possuem está dentro deste todo, deste conjunto e não quando estão isoladas.

Vamos ver um exemplo que vai ajudar a esclarecer este ponto.

Pense em uma peça de um carro. A direção de um automóvel, por exemplo. Qual é a sua importância (da direção) quando ela sozinha, apartada do carro?

Ela, em si, não tem qualquer relevância ou utilidade. Ela não tem um significado. Entretanto, ela faz parte de um todo chamado carro. Dentro do contexto maior do carro, ela se torna uma peça fundamental, assim como todas as demais peças de um carro.

Portanto, todas as peças existem no automóvel e é ele, o automóvel, o todo, que provê sentido para a peça dentro deste contexto maior, desta unidade.

Agora, voltemos ao trecho do Gita citado acima. O que Krishna está dizendo?

Uma interpretação plausível é justamente esta analogia das peças e do carro. Ou seja, tudo, absolutamente tudo que existe no universo tem o seu lugar, a sua posição e é a sua localização, sua posição no universo, que provê o seu significado.

O contrário, não é verdadeiro. Nós não podemos dizer que todo o carro está naquela direção. Ele não está. Ela está no carro e não ele nela. Isoladas, estas peças não têm importância, elas têm importância dentro do contexto do todo, do automóvel.

Isso seria de alguma forma muito diferente sobre a percepção que Albert Einstein tinha do homem em relação ao Universo? Veja o que Einstein escreveu sobre isso:

“O ser humano é uma parte do todo a que chamamos Universo, uma parte limitada pelo tempo e pelo espaço. Ele experimenta a si mesmo, os seus pensamentos e os seus sentimentos como se fossem fatos separados do resto, o que é uma espécie de ilusão de ótica da sua consciência. Tal ilusão é para nós uma forma de prisão, porque nos reduz aos nossos desejos pessoais e nos constrange a reservar o nosso afeto para algumas pessoas, as mais próximas. O nosso esforço deveria consistir em libertarmo-nos desta amarra, alargando o nosso círculo de compaixão, de modo a abranger todas as criaturas vivas e a natureza em toda a sua beleza." — The New Quotable Einstein, de Alice Calaprice (Princeton University, p. 206.

Portanto, esta passagem parece nos sugerir que nós também ganhamos significados em nossas vidas através de nosso relacionamento com o todo! O todo, portanto, é a fonte de significado, não nós, as partes, individualmente.

Leia mais esta passagem:

VERSO 19: Ó Arjuna, Eu forneço calor e retenho e envio a chuva. Eu sou a imortalidade e sou também a morte personificada. Tanto o espírito quanto a matéria estão em Mim.

Qual é o ponto aqui? Estressar que Krishna está se referindo a tudo: às nuvens, ao calor, todos os fenômenos da natureza, a morte, tudo o que existiu antes e que hoje não existe mais, o que existirá no futuro, tudo isso é parte de um todo. Não estamos falando aqui mais somente do universo físico. Mas de toda a existência e não-existência juntas, o passado, o presente e o futuro. Tudo o que foi, é e será.

Portanto, a nossa importância não se dá somente por nossa localização no espaço físico, mas dentro do tempo, em relação ao que já existiu e o que virá a ser.

Percebe onde estamos querendo chegar?

Tudo o que fazemos, ou seja, as nossas ações (karma yoga), dado este conhecimento (jnana yoga) nos torna parte integrante de um todo maior. Portanto, quando agimos não estamos simplesmente excercendo um papel qualquer no mundo, mas agindo considerando algo maior, o bom funcionamento do todo, como uma forma de devoção (bakhti yoga). Isso, claro, quando aplicamos as três disciplinas.

Quando não estamos "despertos" ou disciplinados, continuamos a ter um papel no mundo, continuamos agindo (karma yoga), mas sem este conhecimento (jnana yoga) agimos de forma mecânica, incosciente, sem devoção, sem atribuir sentido à nossa ação (bakhti yoga). Vamos interagindo com as coisas como um animal o faz, como um cachorro. Diante de um prato de comida, ele se sacia. Diante de uma fêmea no cio, ele se sacia. Ele age de acordo com a sua natureza, sem refletir sobre a sua ação, sem conhecimento ou devoção. É uma ação mecânica.

Quando somos disciplinados, tudo o que fazemos tem um papel dentro deste contexto maior, do todo. Por isso, enfatizamos tanto no texto passado a importância destas três disciplinas e não somente de uma ou outra como alternativas.

O que Krishna está dizendo é que devemos dedicar tudo aquilo que fazemos para cumprir a nossa parte dentro desta grande engrenagem cósmica, como a direção do carro o faz quando integrada ao todo da qual faz parte.

Então, aos poucos, aquela disciplina do início do texto, dos textos anteriores, que têm um caráter estritamente mundano à primeira vista, que pode soar quase como uma forma do homem se guiar pela vida através da disciplina da ação, do conhecimento e da devoção, agora, dentro desta nova perspectiva, ganha amplitude. Está fundamentada em uma base muito maior, uma base transcendental. Assim, uma vez que todas as coisas que existem no universo têm uma causa (ou seja, são efeitos de uma causa) e têm a sua posição, lugar, no universo, também nós, cada uma de nossas vidas, têm igualmente um lugar no universo, dentro deste grande todo cósmico, seja ele material e imaterial. Aqui, unindo a visão mundana e transcendental, nós começamos a tatear a noção de que todas as vidas têm significado em si próprias quando inseridas dentro de um contexto maior.

Pense assim. Você não conheceu o seu tataravô. Mas a sua existência aqui hoje continua a valorizar a existência dele, mesmo que ele, hoje, esteja inexistente para nós, dentro da nossa relativa janela no tempo. O mesmo se dará com você e seus filhos, netos e todas as demais vidas que tocar.

Então, feito este ponto, vamos adiante. Krishna continua:

VERSO 27: Tudo o que você fizer, tudo o que comer, tudo o que oferecer ou der para os outros, e quaisquer austeridades que você executar — faça isto, ó filho de Kuntī, como uma oferenda a Mim.

Se levarmos isso ao pé da letra, de um ponto de vista estritamente religioso, nós tenderemos a pensar esta citação de uma perspectiva teísta, de oferecer as coisas a Deus, atrelando isso a oferendas e rituais. E isso não está, necessariamente, errado. Mas aqui, vale lembrar que estamos ampliando um pouco o sentido das palavras.

Pode ser que Krishna esteja pedindo oferendas para si? Pode. É uma possibilidade. Mas uma leitura possível também é a seguinte: todas as nossas ações podem, de forma consciente, estar alinhadas com contextos maiores que nós mesmos, sejam eles familiares, sociais, profissionais, nacionais e até mesmo universais.

Vou dar um exemplo prático e bastante popular em nossos dias. Quando falamos de sustentabilidade hoje em dia, da questão da preservação da natureza, de usar os recursos naturais com maior inteligência, estamos agindo dentro deste contexto maior.

Nós estamos plantando sementes de árvores em terrenos áridos, em cujas sombras não iremos nos sentar e nem os frutos comer. Pensando no curto prazo, é mais "saudável" para a nossa sociedade fechar os olhos para as questões ambientais e gerar riqueza, exploração desmedida de recursos e aproveitarmos os frutos deste trabalho no presente. Mais empregos são gerados, tudo é mais fácil de ser produzido, ninguém precisa descartar lixo direito, nem reciclar. Basta simplesmente jogar tudo fora em algum aterro e pronto.

Entretanto, sabemos que o nosso modo de agir hoje pode influenciar as possibilidades de ação das próximas gerações. Por isso, há este esforço em agirmos (karma yoga) baseados no conhecimento (jnana yoga) com este aspecto de devoção (bakhiti yoga), pensando não em nosso objetivos pessoais de curto prazo, em colher os resultados imediatos no presente, mas sim em um futuro melhor, em nossos filhos e filhos de nossos filhos, mas fazendo um bem para a sociedade, o mundo, dentro de um contexto maior e não de forma obtusa.

E são estes "todos", esta ideia de servir a uma causa a cada ação que você faz, dentro de um contexto maior e não apenas na satisfação imediata dos seus próprios prazeres, que dá sentido à vida. Como pontuamos no primeiro texto, o sentido da vida é algo que aponta para algo além de nós mesmos.

Voltemos ao texto. Neste momento, então, se dá e teofania de Krishna, que mostra todo o seu esplendor para Arjuna.

VERSO 5: A Suprema Personalidade de Deus disse: Meu querido Arjuna, ó filho de Pṛthā, veja então Minhas opulências, constituídas de centenas de milhares de variadas formas divinas e multicoloridas.

VERSO 6: Ó melhor dos Bhāratas, veja aqui as diferentes manifestações dos Ādityas, Vasus, Rudras, Aśvinī-kumāras e todos os outros semideuses. Contemple todas estas coisas maravilhosas que ninguém jamais viu ou ouviu antes.

VERSO 7: Ó Arjuna, tudo o que você quiser ver, contemple imediatamente neste Meu corpo! Esta forma universal pode mostrar-lhe tudo o que você deseja ver agora e no futuro. Todas as coisas — móveis e imóveis — estão aqui completamente, num só lugar.

VERSO 8: Mas você não pode ver com seus olhos atuais. Por isso, Eu lhe dou olhos divinos. Observe Minha opulência mística!

VERSO 9: Sañjaya disse: Ó rei, tendo falado essas palavras, o Supremo Senhor de todo o poder místico, a Personalidade de Deus, mostrou a Arjuna Sua forma universal.

VERSOS 10–11: Arjuna viu naquela forma universal bocas ilimitadas, olhos ilimitados e maravilhosas visões ilimitadas. A forma estava decorada com muitos ornamentos celestiais e portava em riste muitas armas divinas. Ele usava guirlandas e roupas celestiais, e muitas essências divinas untavam o Seu corpo. Tudo era maravilhoso, brilhante, ilimitado e não parava de expandir-se.

VERSO 12: Se centenas de milhares de sóis nascessem ao mesmo tempo no céu, talvez seu resplendor pudesse assemelhar-se à refulgência desta forma universal da Pessoa Suprema.

VERSO 13: Neste momento, Arjuna pôde ver na forma universal do Senhor as expansões ilimitadas do Universo situadas num só lugar, embora divididas em muitos e muitos milhares.

Nesta passagem, Krishna toma a forma de vários semideuses da tradição hindu (Ādityas, Vasus, Rudras, Aśvinī-kumāras), que não precisamos entrar em detalhes aqui.

O ponto é pensar no todo que ele apresentou, Krishna está mostrando que tudo isso está nele, o que foi, é e será. Isso É ele, e Ele está em tudo e tudo tem nele a sustenção!

Aqui, Krishna revela-se a si mesmo em toda a sua grandeza.

Eu sei. A coisa fica um tanto estranha para a maioria das pessoas nesse ponto. Deuses que não conhecemos, ou simplesmente, dependendo da sua crença, a simples menção a deuses ou Deus e toda esta roupagem mística que o texto toma pode afastar os mais desatentos e céticos. Afinal, pode até ser um texto que tem uma beleza poética, mas, filosoficamente, soa desprovido de sentido, de uma verdade mais objetiva como o mundo moderno entende. Interpretar o Gita de forma estritamente literal faz com que muitos limitem a sua compreensão, ignorando a possibilidade de desfrutar de um sentido mais amplo.

Aqui, o Gita está nos mostrando um sentimento de pertencimento, o sentimento de plenitude, um momento de epifania pessoal, de conexão com o todo funciona.

Para isso, façamos um paralelo. Olhe para estas imagens:

Lindas. Sublimes! Cheia de cores, de vida, quase que psicodélicas. Expressam formas e cores maravilhosas em escalas inimagináveis para nós.

Podemos olhar para o que é micro também.

Ou então, olhe para as redes de relacionamento do planeta. As grandes cidades, a interdependência das coisas que aqui existem, o ajuste fino de forças que trazem o equilíbrio para o nosso ecossistema.

Veja com distanciamento o planeta, não como algo inanimado e frio, como estamos acostumados, mas como um organismo vivo e pulsante, que vibra e respira:

Portanto, este trecho do Gita nos sugere prestar atenção às coisas dentro desta perspectiva, com devoção, com conhecimento, seja do macro ao micro.

Considere a cadeia de eventos necessários para que tudo isso exista ao mesmo tempo, em uma escala universal à microscópica.

Será preciso procurar algum sentido para além deste?

Olhe o planeta Terra, um pedaço de poeira cósmica, um grão de areia cercado por uma camada fina de ar, uma bolha que flutua no universo como um oásis em meio à mais completa escuridão em um cantinho pequenino de uma galáxia entre bilhões de galáxias que faz parte do cosmos.

Dentro destes contextos citados, todos os fenômenos são interdependentes e têm valor como parte de um contexto maior, para além das suas individualidades. Todas as partes, cada qual, se grande ou pequena, não importa, tendo o seu lugar e exercendo uma função dentro deste todo, cada fenômeno com a sua própria beleza, a vida, a morte, a transformação da energia em ciclos de criação e destruição.

Talvez, colocando a coisa toda de uma perspectiva física e matemática nos ajude a dar uma dimensão da beleza da existência.

Segundo Sir Fred Hoyle, um astrônomo inglês que foi diretor da Universidade de Cambridge, o nosso Universo parece ter um ajuste fino, extremamente preciso, para permitir a criação da matéria e de tudo que existe, inclusive a vida. Seus cálculos sugerem que se a densidade da matéria após o Big Bang fosse 0.0000000000000000000000000000000000000001 diferente do que foi, ou o Universo se curvaria para fora e o espaço seria um grande vazio ou se curvaria sobre si mesmo, em um colapso que iria criar um buraco negro. Ou seja, dentre todas infinitas possibilidades viáveis, tivemos a sorte da densidade da matéria ser exatamente como deveria ser para o Universo poder existir tal como é.

Depois, este mesmo cientista, que se negava acreditar na evolução química da vida — ele defendia a ideia de panspermia, a teoria de que a vida surgiu no espaço, espalhando-se pelo universo -, escreveu uma metáfora para tentar explicar a impossibilidade lógica da vida surgir por acaso. Diz ele que supor que a matéria inorgânica passou a ser viva é tão razoável estatisticamente como acreditar que, mesmo em uma escala de bilhões de anos, “um tornado varra um depósito de lixo e possa, por acaso, fabricar um Boeing 747 a partir dos entulhos lá disponíveis”, de forma espontânea.

Hoyle também comparou a probabilidade de se obter até mesmo a mais simples proteína capaz de funcionar a partir da combinação aleatória de aminoácidos à de um sistema solar cheio de homens cegos resolverem o Cubo de Rubik simultaneamente.

Michael Turner, PhD, astrofísico da Universidade de Chicago, que cunhou o termo Matéria Escura, certa vez disse o seguinte sobre esta precisão das forças que criaram o universo:

“A precisão (das forças que criaram o universo) é como arremessar um dardo de um lado do universo para atravessar todo o universo e acertar o alvo de um milímetro lá na outra ponta”.

Estamos enfatizando aqui a beleza, delicadeza e sutileza sobre qual toda a existência, da vida e dos cosmos, improvavelmente se sustenta.

As nossas vidas também são assim: raras.

As vidas que vivemos e a qual procuramos dar sentido também fazem parte desta grande ordenação cósmica. A minha vida está contida dentro desta ordem, que é muito maior do que a minha limitada compreensão alcança.

Fisicamente não conseguimos nos afastar e ver o todo desta ordenação. É por isso que muitas tradições religiosas e espirituais não são tratados filosóficos puramente intelectuais, mas também compostas por práticas meditativas que nos conectam com esse todo.

Mas, ainda assim, restringindo a nossa percepção a uma dimensão material, por pura observação, por conhecimento científico e por lógica, nós podemos saber que fazemos parte deste todo.

Nós olhamos para o planeta, nós olhamos para o céu, o universo e temos uma ideia, por mais vaga que seja, desta beleza incomensurável e de grande mistério.

E qual o papel prático de tudo isso que falamos?

Bem, intuitivamente nós sabemos que quando agimos da forma correta, olhando para o todo e não apenas para pequenas particularidades e fins imediatos, como no exemplo da sustentabilidade que ofereci há pouco, sobre agir agora pensando nas próximas gerações, ainda que nós não desfrutemos das consequências de nossos atos, estamos agindo em acordo com o que devemos fazer e não somente com aquilo que queremos fazer.

O que o Gita está nos sugerindo é que tudo que existe tem o seu lugar no universo.

Independente da vastidão do cosmos, e hoje temos uma boa dimensão de quão imenso o universo é, ainda assim, diante de tamanha grandeza, tudo que existe tem o seu lugar dentro deste mecanismo e o que dá sentido a todos os seres e todas as coisas não é o seu valor individual, mas a sua existência como uma parte de uma grande engrenagem cósmica. Pode ser algo muito pequeno, é verdade, mas com o seu lugar e necessário.

Trazendo a coisa para uma perspectiva prática. Pense em você como parte de um time em um esporte colaborativo. Você é um jogador de defesa de um time de futebol. Você sabe o que deve fazer. Você joga para o benefício do time. Você não precisa marcar gols, embora eventualmente possa fazê-lo. Mas este simplesmente não é o seu papel. O seu dever é defender e jogar com o time e não pensando em seu benefício próprio e particular.

Eu me lembro que na Copa do Mundo de 2006, o Brasil tinha uma seleção de craques. Ronaldo, Ronaldinho, Adriano, Kaká e afins. Do goleiro ao ataque só havia jogadores experientes e verdeiros craques em suas posições. Mas o Brasil não ganhou aquela Copa do mundo. Quem ganhou foi a Alemanha. Um time bom, mas muito mais modesto em termos de talento individual. Mas ela ganhou a Copa ainda assim. O Brasil tinha os craques. A Alemanha tinha um time.

A proposta do Gita, de forma resumida, é esta. Nós precisamos conhecer quem somos, compreender o nosso papel no mundo, qual é o nosso dever, qual é a nossa virtude e, dentro desta grande engrenagem cósmica, contribuir para o bem do todo e não apenas para os nossos fins particulares, visando aproveitar prazeres sensoriais de curto prazo.

Colocar a nossa virtude à disposição do todo.

O que verdadeiramente importa é o todo, a plenitude e não as partes isoladas. As partes só têm a sua importância por causa do seu papel dentro do todo, como a direção do carro só tem importância dentro do contexto do carro inteiro e não em si mesma.

Portanto, se nós queremos encontrar ou atribuir algum significado para a vida, para as nossas vidas, nós temos de saber qual é o nosso lugar dentro desta vastidão cósmica toda.

Seria por isso que a recomendação de filósofos gregos, que também estava inscrita na entrada do Templo de Apolo, em Delfos, era justamente a máxima filosófica "conheça-te a ti próprio"?

O que alguns dos mais célebres filósofos gregos comentaram sobre o sentido da vida nós trataremos em um post futuro. Por ora, vamos fechar o assunto da perspectiva do Gita, neste último trecho deste terceiro e úlimto artigo.

Para isso, voltaremos ao cerne da questão, ao campo de batalha, onde Arjuna estava com Krishna no começo da história.

Lembre-se, Arjuna estava relutante em lutar. Então, Krishna, depois de lhe explicar sobre as três disciplinas e da sua teofania, de demonstrar a grandeza de tudo, dentro de tudo aquilo que dissemos acima, insiste:

VERSO 32: A Suprema Personalidade de Deus disse: Eu sou o tempo, o grande destruidor dos mundos, e vim aqui para destruir todas as pessoas. Com a exceção de vocês [os Pāṇḍavas], todos os soldados aqui de ambos os grupos serão mortos.

VERSO 33: Portanto, levante-se. Prepare-se para lutar e conquistar a glória. Vença seus inimigos e desfrute um reino próspero. Por Meu arranjo, eles já estão mortos, e você, ó Savyasācī, é apenas um instrumento na luta.

Perceba que tudo o que falamos, tudo aquilo que falamos até agora se resume a responder à questão que todos enfrentamos em nossa vida: o que devo fazer?

Aqui, depois de toda esta volta o texto volta para o contexto da decisão que Arjuna deve tomar. Deve lutar? Deve abdicar de lutar?

O que Krishna está dizendo é que Arjuna está olhando para a coisa de uma perspectiva tacanha. E todos nós, não estamos?

Quanto iremos viver? O que devemos fazer? Como devemos agir quando nosso querer se colide com o dever pessoal ou transcendental?

Todos estamos em um campo de batalha todos os dias. Abdicar de lutar, abaixar as nossas armas não fará as coisas melhorarem. As pessoas vão morrer, o mundo continua girando, tudo de bom ou ruim que acontece nele continuará a acontecer, quer você queira quer não… mas até ele, o planeta, vai desaparecer um dia, antes do Sol engoli-lo e explodi-lo, bem como todo o nosso universo. Ao menos, assim diz a ciência atual. E o próprio Gita. Lembre-se que a criação e destruição do universo é um processo cíclico.

Então, a mensagem do Gita é: pare de se preocupar com tudo aquilo que você não tem controle e faça o que deve ser feito nesta situação em que você se encontra agora, neste exato momento, considerando este contexto maior que tanto falamos.

Na Teofania, nesta visão transcendental do cosmos, a ideia é que esta unidade é, em si, divina. Não uma unidade que está entre duas partes, nós, seres humanos e Deus; mas juntos, unidos, tudo como uma coisa só.

No Gita, a ideia não é um universo material separado de um Deus transcendental que está além e inacessível. O universo é parte do divino. O universo reside em Deus.

A implicação disso é que, embora muitos possam discordar ou negar este fato, segundo esta lógica, as nossas vidas não precisam de um significado extra, porque elas já são essencialmente divinas.

Ou seja, simplesmente por fazermos parte de um universo, nós também fazemos parte do que é divino. Isso nos permite sair de nosso egocentrismo, nos vermos como parte de algo muito maior, que está além da vida, das nossas vidas e perceber que os nossos desejos, apegos e "quereres" são insignificantes dentro deste contexto maior. É o todo que é importante.

Então, lá no primeiro texto a pergunta que estava implícita era: como uma vida finita pode ser importante dentro de um universo infinito?

Observamos que o homem se encontra entre dilemas morais e existenciais. Que ele oscila entre o que ele quer fazer e aquilo que deve fazer. Ele alterna entre a ideia de liberdade para fazer o que deseja quando provocado por impulsos exteriores a si, como um doce, e a disciplina que cria um estado de liberdade para ele não fazer o que deseja e, portanto, ser mais livre, ou realmente livre, que no primeiro caso, quando está mais para um escravo dos fatos que lhe acontecem e não senhor de si.

Então, o Gita nos mostra essa relação entre o apego ao mundo sensorial e os desejos particulares e disciplina que leva o indivíduo à liberdade.

E vimos por último que é justamente essa conexão com o todo, esta ideia de integração com uma ordenação cósmica maior, neste vasto universo, que nos permite ser ou estar livres das amarras do ego e desejos sensoriais que visam a satisfação de curto prazo, viver sem conflito e de forma significativa pois é o todo que nos dá significa e não a nossa existência isoladamente, como exemplificando no caso do sentido da direção e o automóvel.

Isso significa que devemos virar ascetas, dedicar a nossa existência para o que é transcendental e largar essa vida material? Não!

Não é esta a mensagem. Embora este caminho de uma vida monástica seja nobre e viável para alguns, certamente não serve para todos. Esta é parte da beleza da mensagem do Gita. Cada um deve descobrir e exercer o seu papel dentro doesta grande engrenagem cósmica. Esta filosofia é prática, para ser aplicada no dia a dia, por pessoas comuns, que vivem em um mundo cheio de estímulos e que se deparam com frequência com os seus conflitos éticos e dilemas morais.

Em outras palavras, o Gita sugere que todos devem engajar-se de forma profunda com o mundo material, com a realidade que nos cerca, sabendo que ela é ilusória, e agindo de forma consciente, com respeito e devoção.

O que vimos é que a ação é inevitável, até porque a inação é uma forma de ação, mas o apego é opcional.

O que o Gita sugere é testar as duas formas de vida: a mundana, que atende aos desejos e é guiada pelos fatos e impulsos exteriores a nós, que a maioria das pessoas já vive no dia a dia; e uma outra em que a pessoa se engaja nas três disciplinas do yoga. Com as duas referências, a sugestão é comparar as duas experiências de vida e decidir qual vida lhe parece mais significativa.

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