QUERER, PODER E CONSEGUIR… MAS SERÁ?

Paula Santana
Mulheres de Produto
8 min readJun 15, 2018

Atenção, trago (as minhas) verdades.

Dessa vez não tem risadinha ou brincadeira. O assunto é sério. Convido todos a mergulharem comigo em uma realidade dura. Hoje vou falar do Brasil que eu conheço.

Começo esse texto com dor de cabeça (física, real mesmo…). Apesar de EMPATIA ser a palavra do momento, ela ainda está em falta. Vejo isso na minha rotina — especialmente quando percebo as pessoas não reconhecerem os seus privilégios. Para ser mais exata, a maioria sequer entende sua condição privilegiada.

Beleza, mas o que é privilégio? “É uma condição de vantagem atribuída à uma pessoa ou grupo em comparação aos demais. O privilégio garante ressalvas e imunidades que destacam o indivíduo perante outros, dando-lhe direitos especiais além dos comuns à todos”.

E essa definição é a do site www.significados.com.br, não da Paula.

MUITA GENTE possui uma situação de privilégio, cara! Você já parou para pensar nisso? Se você tem acesso à esse conteúdo, por exemplo, você tem alguma situação de privilégio como por exemplo, acesso à internet.

EU? ESTATÍSTICA?

Admito que eu me sentia maravilhosa por ter contrariado um montão de estatísticas. Vamos à minha realidade:

  • filha de mãe separada, que não tem ensino fundamental
  • família desestruturada
  • pobre
  • periférica
  • de escola pública
  • vivendo em paralelo aos traficantes
  • e, por consequência, convivendo com usuários de drogas

Mesmo assim, eu superei o senso comum: não engravidei na adolescência, me casei também sem estar grávida, tenho uma profissão que eu amo, entrei no “encantado mundo da tecnologia” e hoje trabalho em um polo econômico do Brasil. Eu vivo um sonho de princesa perto da vida que, por exemplo, a maioria dos meus vizinhos levam.

De onde eu venho, as pessoas economizam por meses para comprar um lanche. E isso se torna o evento do ano para as famílias. Estou falando do meu bairro. Não é tão longe assim.

EMPATIA E MEA CULPA…

Aqui, faço um “mea culpa”. Ao me perceber vitoriosa diante da realidade, de forma muito prática e pouco empática, eu pensava “meu, se eu consegui… qualquer um consegue!”. Não. Naquele momento, eu não estava pronta e nem aberta para entender algo que não fosse a minha percepção de mundo.

TUDO NOVO DE NOVO

Quando dei por mim, já estava inserida em um contexto trabalhista de classe média. E é um fato que essas pessoas estão academicamente melhor preparadas! Elas frequentaram escolas particulares, faculdades de qualidade… sabe a base para aprender mais? É disso que eu estou falando!

Perceber essa diferença gritante entre a minha história e a das pessoas que estão ao meu redor me fez sentir algo esquisito. Tipo uma dor na alma. Não só pelo fato de que a minha vivência foi totalmente oposta, mas também porque uma galera não tem esse tipo de oportunidade. Muita gente sequer chega a conhecer essa possibilidade. E isso machuca muito.

Lembrando que conheci a tecnologia aos 16/17 anos (falo mais sobre essa história nesse link), enquanto trabalhava para ajudar a sustentar a casa. Isso enquanto muitos com a mesma idade pensavam em vestibular e faculdade — a maioria podendo escolher onde estudar.

CONTEXTOS CRUÉIS PARA A EVOLUÇÃO

Talvez alguém esteja pensando “quanto vitimismo, tãnãnã mimimi, afff”. Gente, estou falando da minha realidade! Do que eu vejo todos os dias, praticamente tropeçando nos “nóias” para chegar até o ponto do meu fretado. Essa é a minha experiência de vida. É um “case” que mostra uma coisa importante: muitas vezes, não é questão de correr atrás e querer… e sim de oportunidade.

É claro que a força de vontade é uma parte importante do processo, mas me fala UM que sobreviveu puramente de força de vontade… Eu não conheço. Por isso, não adianta sentar confortavelmente na sua casa com energia elétrica, comida na geladeira, cama gostosa, chuveiro quentinho e tudo o que você precisa para sobreviver com conforto… e falar que basta querer! Não, não “basta” querer. É preciso ir além disso. Especialmente se você não viveu essa realidade.

COMO EU VEJO ISSO NA MINHA VIDA?

Simples… né?

Durante a minha trajetória de programadora eu já ouvi um montão de coisas. E a maioria, admito, é bem desestimulante. Junte uma realidade periférica, o fato de ser mulher (minoria em tecnologia) e uma lógica de programação desenvolvida basicamente “na raça”… Escutei muitos comentários do tipo “nossa, como você não sabe isso?”, “ué, você não aprendeu ainda?” ou “você realmente pesquisou antes de perguntar?”… Geralmente esses comentários acompanham olhos revirando para cima, uma respirada funda e uma cara que fica entre o desprezo e o deboche. Na maioria esmagadora das vezes, essas atitudes têm barba, cabelo da moda e blusa de herói… se é que você me entende hehe.

Quantas vezes você acha que eu pensei em desistir? Quantas eu chorei ou quantas mais eu pensei em jogar a toalha e me entregar à estatística? Nem queira saber… Eu não nasci para isso e, de uma forma ou de outra, tenho pessoas que me ajudam a levantar. Por mais que eu fique uma porção de vezes no chão.

Na minha experiência, as pessoas que fazem esse tipo de comentário depreciativo são as mesmas que julgam as iniciativas de inclusão. E estou parando de lutar contra elas.

UM EXERCÍCIO DIÁRIO

A vontade é de gritar e espernear… de vencer essa turma na porrada (psicológica, né rs). E nesse momento, eu reflito e percebo que me considero iniciante no mundo da TI. Comecei oficialmente em 2014, aprendendo Java. E eu sabia que seria a chance da minha vida. Não sou ninguém na fila do pão neste mundo de tecnologia, não tenho resultados extraordinários e não fui ensinada a pensar na cultura em que fui criada. Não fui ensinada sobre economia, política… Fui aprendendo sozinha, comparando minha realidade com os discursos das pessoas.

Eu não tive tempo de fazer muitos planos. Antes disso, eu corri para garantir o que muita gente já tem de berço: uma casa estável e segura para a qual voltar. Comecei a corrida bem atrás dessa turma e isso cansa, diariamente.

A AMIGA MILITANTE

Cresci com uma menina sensacional, a Thayany Muniz. Jovem, negra e militante! Apesar de amá-la e de acompanhar sua evolução pessoal e profissional, nunca entendi direito que o meu maior privilégio era simplesmente ter nascido branca. Muitos me consideravam com “aparência de riquinha”, o que é bem estranho: dinheiro não tem cara, não, gente rs.

Eu nunca entendi direito as coisas que ela falava, para ser honesta. Até 2017.

ACHO QUE ENTENDI…

No ano passado, tive a minha primeira participação no The Developers Conference (TDC). Eles fizeram uma campanha legal que incentivava a participação das mulheres: a trilha TDC 4Women era de graça! Eu, sem grana, vi nisso uma oportunidade de conhecer gente. Me inscrevi e ouvi muitos comentários negativos sobre essa trilha. Na época, achei que eram ataques pessoais e fiquei bem desestabilizada.

Me lembro que, enquanto tentava engajar pessoas para participar do evento, ouvi de uma mulher que aquele movimento estava errado. Não me lembro exatamente das palavras, mas confesso que aquilo me desestimulou demais. Tudo piorou quando escutei em seguida que a mulher em questão nunca havia passado por situações de machismo.

COMO ASSIM?!

Aquilo me deixou possuída pelo ritmo ragatanga de uma forma bem negativa. Na época, eu não tinha ferramentas para contra-argumentar e acabei me deixando levar pela emoção. Em algum momento no meio daquele turbilhão de emoções, caiu uma ficha sinistra, que vou exemplificar: eu nunca vou entender com perfeição o que um negro passa.

Para mim, que fui criada no meio de negros, não existe racismo. Inclusive, o meu marido é negro. Por isso, no meu mundinho não existe preconceito racial e não tem porque discutir algo que não existe. Era o que eu pensava. Entende?

Tudo se trata de contexto, respeito e muita resiliência para que a empatia floresça. Independentemente do que eu acho ou de como é a minha realidade, eu não tenho o direito de enfiar a minha verdade goela abaixo de alguém. Um dos argumentos da menina “que nunca sofreu com o machismo” foi que se era necessário inserir a mulher no evento, que aumentassem as palestrantes mulheres, o número de participantes no evento… E isso faz sentido!

A PERGUNTA É: COMO?

Como, se tudo no mundo é questão de mérito? E o mérito te acompanha em tudo, da cor da sua pele até a estrutura de vida que você teve. Muitas vezes a meritocracia é mérito das pessoas que puderam te dar uma vida melhor. Com isso, você pode sair muito na frente, dependendo da sua realidade. Mas… e as exceções?

AÍ VAMOS VOLTAR AO COMEÇO

“Paula, mas fulano também passou por isso tudo e venceu”. Aí eu te retorno com uma verdade chocante: nem todos são iguais ao seu exemplo, nem todos tiveram a mesma oportunidade que essa pessoa. Assim como o fato de que os seus privilégios não diminuem os esforços que você teve que fazer na sua vida. Não é uma competição de vida melhor x vida pior.

Entender que os privilégios existem e que mesmo que não pareça, você tem o seu pacotinho particular… é entender um pouco mais da vida em sociedade. Se o seu colega chegou atrasado na corrida talvez não seja só preguiça: você não sabe qual foi o start dele.

DAQUELE MOMENTO EM DIANTE EU DECIDI

Comecei a procurar entender mais sobre a diversidade, realidade das mulheres, LGBT, pessoas pobres, deficientes e que estão aí todos os dias para vencer ou virar estatísticas. Eu comecei a me importar com o que eu poderia fazer para ajudar aqueles que estavam atrás de mim na corrida da vida. E, não… isso não faz de mim uma freira, nem uma santa.

Eu sou uma programadora que se cobra diariamente por não ser uma gênia das ciências da computação. Quando eu chego em casa, ainda preciso lidar com toda uma estrutura de lar — isso porque não tenho filhos ou bichinhos de estimação. Com tudo isso, a minha rede de apoio (em especial a que mora comigo hehe) se esforça bastante para me entender.

Não é fácil, pois periodicamente preciso relembrar meu marido e a minha família do quanto é importante para mim estudar, estar em eventos e o impacto positivo que isso causa na nossa vida a médio e longo prazo.

TEM MUITO CARA LEGAL POR AÍ, MAS…

E quem não tem um cara legal? Ou uma família compreensiva? E as mães solo? E as mulheres solteiras que bancam a família toda? E todas as outras realidades fora do padrão social considerado normal?

Muita gente que está começando agora só está tentando sobreviver, sem focar muito na própria carreira. Vejo LGBTs, pessoas mais velhas, gente que migrou de área… a imensa maioria com um medo absurdo de não entenderem, de estarem atrasados na largada do conhecimento. O triste é que essa realidade se aplica para qualquer profissão ou área.

PENSE DE NOVO

Depois desse conteúdo todo… pessoa aí do outro lado: quais são os seus privilégios? Como você pode desenvolver sua empatia com as pessoas e as iniciativas?

Já parou para pensar no tipo de batalha que a pessoa ao seu lado está travando? Pois é… Ao invés de julgar, faça o exercício de propor soluções!

Imaginem que milhares de pessoas desistem ou não cogitam entrar na área de tecnologia, porque algum(a) babaca, sim “babaca” ( você acabou de ler isso mesmo ) fez que ele não se sentisse capaz para aquele meio, quando na verdade sabemos que envolve muitas outras coisas além de ser acima da média…

Recomendo que você assista este vídeo:

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