Comida que nutre

[Cartas que escrevi na cozinha #3]

Carla Soares
Mulheres que Escrevem

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Pra mim, falar de proteínas e carboidratos, e dos venenos, nitritos, nitratos, gorduras saturadas, era uma coisa muito comum. Até hoje comer macarrão e arroz juntos é um tabu alimentar pra mim, porque minha mãe disse que não era pra juntar os carboidratos. Sem falar que eu sempre lembro dela quando como arroz e feijão, porque ela também me ensinou que os dois juntos formam uma proteína que não existe com eles separados.

Ano passado eu fazia academia com personal, e de vez em quando a gente conversava sobre comida. E realmente, ficar falando do que você deve comer porque é o que vai formar músculo, fazer perder gordura, etc é muito frustrante. Eu já estava acostumada a falar de comida pelas partes porque minha mãe era nutricionista, mas nunca tinha pensado nas implicações disso. C.

C.,

Na minha experiência também sempre foi muito comum falar nesses termos, e eu também aprendi a falar disso muito bem, apesar de na minha casa não ter nenhuma nutricionista. Tem gente demais falando desse jeito, pra todo lado. E nós mulheres somos as mais incentivadas a aprender essas coisas, independente das nossas profissões.

É curioso como a gente naturaliza essas coisas.

Não dá pra questionar o interesse das pessoas em se manter bem, mas o que me impressiona é como tentamos chegar a isso. Esse balanço elaborado — de não comer macarrão e arroz ou outros carboidratos, ou de comer o arroz com feijão pra ter uma combinação de aminoácidos — parece mais isso que você disse: tabu. Uma versão moderna dos tabus alimentares, como o da manga com leite.

Eu entendo que ninguém em sã consciência vai dizer que não se interessa por ter saúde ou por ser saudável. Só que isso não significa que a saúde esteja contida em rótulos, quantificações, medições e um saber frio de que tomates são ricos em licopenos.

Comer deveria ser uma atividade natural, já que a gente fica com fome várias vezes ao dia. Aliás, a gente come também sem estar exatamente com fome e só isso já é motivo suficiente pra entender que comer não é igual a se alimentar.

Tem um aspecto muito perverso na forma como a linguagem da nutrição é apropriada pela indústria alimentícia, pelo mercado, pela mídia e por todos nós. Tratar arroz e pão por carboidrato ou laranja e acerola por vitamina C é usar a linguagem de maneira reducionista. Desconsiderar aspectos subjetivos da nossa alimentação, como os afetos, a memória, o pertencimento, o prazer, a história pessoal de cada um, a identidade cultural de certos gostos e aprendizados, pra focar em nutrientes como argumento pra botar algo na boca é não ser capaz de compreender o que significa mesmo comer. Fica a sensação de coisa desviada, como se as palavras mais me impedissem de entender o que é comer e me afastassem, mais do que aproximassem, de me sentir bem.

Falar assim de comida me lembra muito um outro tipo de fala que a gente vê por aí, uma que diz que a gente nasceu pra produzir, trabalhar e pode até transformar estresse e ansiedade em produtividade, produzir mais e mais e mais, infinitamente mais sem haver um limite. Como se aqui dentro da gente houvesse uma engrenagem no lugar de um coração.

Essa abordagem sobre comida centrada em nutrientes reforça a metáfora do corpo-máquina, do corpo como uma entidade reprogramável, que podemos alterar de acordo com a nossa vontade e com a disponibilidade tecnológica pra funcionar de maneira otimizada. Pro corpo máquina, é como se não houvesse barreiras. Pra funcionar de maneira ótima, a gente só precisa ter as peças corretas (e trocá-las quando elas não servirem mais), o mecanismo correto (e tomar pílulas quando o mecanismo prega peças na gente e se recusa a obedecer) e o combustível correto. É uma abordagem tão presente que parece fazer sentido num primeiro momento, mas, quando reconhecemos o quanto estamos insatisfeitos, deprimidos e exaustos-correndo-dopados, começamos a nos perguntar se essa metáfora faz algum sentido mesmo.

Um exemplo recente do tipo de monstruosidade que esse pensamento do corpo-máquina produz quando falamos de comida é a proposta do ex-prefeito de São Paulo de produzir um composto alimentar (supostamente) enriquecido com os nutrientes que a gente precisa pra seguir vivendo. Era de uma insensibilidade gritante com o que significa se alimentar. Havia outros problemas graves com relação à proposta — o supostamente entre parênteses é um deles, mas há também questões de favorecimento econômico da indústria que assim evitaria pagar taxas de descarte, além de um desprezo claramente classista. Esse exemplo faz a gente perceber que, quando alguém acredita que pode dar a casca do ovo a alguém em vez do ovo inteiro, se perde de vista completamente a dimensão humana da experiência.

O caso causou indignação coletiva, mas o fato é que essa ideia de que o corpo é uma espécie de máquina sofisticada que só precisa ser alimentada com os compostos corretos, ainda segue firme por aí.

Tem um livro que acho muito interessante sobre o assunto e que ficou em evidência depois que o jornalista-escritor-professor Michael Pollan, aquele da série Cooked, popularizou o termo nutricionismo. No livro que tem esse nome como título, e que ainda não tem tradução pro português, Gyorgy Scrinis desenha a história de como essa abordagem de reduzir os alimentos a seus nutrientes ganhou terreno a ponto da forma popular de se falar sobre comida ter se tornado predominantemente afetada por esse tipo de linguagem técnica. Apesar do tom mais formal — Scrinis é professor de política da nutrição na Universidade de Melbourne — as histórias tem um bom espaço no livro, sem falar que é muito interessante entender como a margarina se popularizou em substituição à manteiga ou como as proteínas se tornaram sinônimo de indispensável e a única coisa que você deveria ter pânico de cortar do seu prato.

Scrinis explica como esse tratamento tem uma afinidade grande com a indústria, que sempre gostou muito da forma direta e objetiva com que os alimentos pareciam poder ser destrinchados em carboidratos, proteínas e gorduras. Essa abordagem foi incentivada também porque a indústria tem sido um dos grandes financiadores do desenvolvimento científico da nutrição. Não por acaso, os macro e micro nutrientes sempre foram utilizados pelos departamentos de comunicação e marketing pra comunicar sobre os atributos de um determinado pacote. Eles aparecem como uma linguagem moderna, superior, imbuída da segurança e neutralidade da ciência.

Pra indústria, o incentivo dessa visão de componentes fazia sentido pois importava muito que se compreendessem as partes dos alimentos e como eles interagiriam com nossos corpos para que fosse possível manipulá-los e processá-los. A questão é que um punhado de carboidratos na farinata proposta pelo ex-prefeito de São Paulo não é a mesma coisa que comer uma batata assada com ervas e azeite entre amigos, como certamente a revolta que sentimos com a proposta nos deixa entender. E medir essa diferença não é simples, mas sentimos isso sensivelmente cada vez que participamos de rituais em torno da mesa.

Também não é o caso da gente ignorar esse conhecimento, C., mas acho que há uma diferença marcante entre deixar os grãos de molho da noite para o dia, porque ao longo do tempo muitas pessoas faziam assim e perceberam que os grãos ficavam melhores; ou deixar os grãos de molho para retirar os fitatos, essas-partículas-antinutricionais-que-se-associam-a-alguns-minerais-formando-complexos-insolúveis-e-diminuindo-a-biodisponibilidade-de-nutrientes-quando-a-gente-ingere-os-alimentos.

A linguagem do nutricionismo, essa, que parece cheia de tecnicidades, precisão, prova científica e rebuscamento, é também cheia de controle, medo, insegurança, reducionismo, esvaziamento e demonizações. Toda essa preocupação é fruto de um mundo e de uma ciência que foca em controle e observação de partes e, não, em um entendimento do significado global do alimento.

Ao escolher falar nutricionês, estamos reforçando o corpo-máquina, a ansiedade de comer as coisas corretas, o imperativo do conhecimento técnico no lugar do tradicional, a desvalorização do subjetivo no lugar do objetivo. Ao darmos ênfase na quantidade de antioxidantes dos mirtilos, a gente escolhe dar espaço pro controle, pra comida combustível, pra função no lugar da fruição. E tudo isso já é tão alimentado nesse mundo em que a gente vive que me pergunto se quero mesmo fazer isso. Ainda que não seja simples de responder, pego esse incômodo — como o que você me contou sobre suas conversas com o personal trainer e o que vai formar músculos ou fazer perder gordura — e aproveito pra me perguntar: o que eu quero alimentar nesse mundo?

Quando era mais nova, eu costumava pensar que me sentia como uma flor de estufa. A flor de estufa é maravilhosa; são aquelas com que a gente fica admirado quando vai comprar um vaso na flora, mas que, assim que a gente leva pra casa, perde seu brilho, logo murcha e as flores caem. Eu vivia uma vida rigorosamente controlada, em que observava muito aquilo que colocava para dentro, com uma quantidade de sol e de regas e de podas que a flor de estufa supostamente precisaria pra se manter viçosa. Mas essa vida me deixava triste, porque a flor de estufa tem um esplendor tão controlado que não se deixa afetar. Eu tinha muito medo de murchar, ao mesmo tempo em que não queria viver uma vida de flor de estufa; queria poder ser tocada, tocar as outras pessoas e participar dos rituais e das vivências, alimentar e ser alimentada. Viver é estar o tempo todo em contato com esse afetar possível. É uma viagem feita de medos, forças, inseguranças, persistências, constâncias e transições. A flor de estufa quando murcha revela, sem querer, que esse controle todo nunca foi viável. A flor de estufa nunca foi real porque, como nos versos do Fernando Pessoa, “viver não é preciso”: nunca teve um jeito exato.

Com amor,

C.

Para ouvir o podcast que gravamos com Carla Soares, clique aqui!

Esta carta faz parte da série Cartas que escrevi na cozinha, publicada mensalmente. Leia as cartas anteriores:

#1: Para fazer as pazes com a cozinha
#2: O corpo que a gente habita

Essa carta foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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Carla Soares
Mulheres que Escrevem

Escrevo sobre comida e PANCs no http://outracozinha.com.br, e outras coisinhas no Mulheres que Escrevem