Como nunca poderei escapar de ser uma poeta matuta

Estela Rosa
Mulheres que Escrevem
4 min readDec 19, 2016
Arte por Gemma Capdevila

Há dez dias atrás, dois poemas meus foram publicados em uma revista de poesia. Dois poemas em uma revista de poesia de pessoas muito queridas, que ainda acreditam na poesia e no contemporâneo. A Grampo Canoa, da Luna Parque Edições, em seu terceiro e último volume, aceitou me autorizar enquanto poeta. E lá fui eu ser poeta na vida.

Quando a notícia de que meus poemas seriam publicados chegou, a euforia me tomou de uma maneira bastante estranha. Ainda que eu sentisse um prazer enorme em ver meu nome impresso ao lado de outros poetas, uma apatia passou a me consumir. Depois de saber que as letras estariam ali, impressas, também fui convidada a ler meus textos. Em São Paulo. A grande e enorme São Paulo.

Da euforia pulei pro medo. Do medo fui à procrastinação. Passei dois meses sem olhar uma letra sequer dos poemas que seriam publicados. De uma leitura atenta quase que diária, passei a nenhuma leitura. Nenhuma atenção. De alguma forma eu tentava fugir no destino que eu mesma havia traçado. Eu havia mandado os poemas, a iniciativa em voltar a escrever foi minha. A única autorização que ainda buscava eram as letras impressas. Mas havia mais por trás disso. É óbvio que havia mais por trás dessa postura de me autorizar a seguir adiante.

Arte por Gemma Capdevila.

Nasci em uma cidade com menos de 30 mil habitantes. No Brasil, isso não é nem tanto nem tão pouco, mas é o bastante para pensar que o vereador eleito com mais votos teve pouco mais de 300 confirma na urna. Nascer em uma cidade onde se dorme às 22h, impreterivelmente, é algo que marca profundamente a alma de uma pessoa. Ter a plena noção de que cada hora tem seu momento exato para acontecer, saber ler os sinais de uma natureza que ainda funciona é algo que transforma a maneira com que uma pessoa vê o mundo. Eu vejo o mundo da perspectiva de uma poeta matuta, ainda que meu interior nem seja tão interior assim.

Me dirigir, com minha melhor amiga, para São Paulo, em busca de uma aceitação enquanto poeta foi como me enfiar no olhar de um retirante em busca de um horizonte mais largo.

Enquanto escrevo, o nó na garganta parece avisar que não se deve falar tanto assim sobre os interiores, sejam eles físicos ou emocionais. Mas o fato é que imprimir minhas letras naquela pequena revista rosa choque foi, além de uma conquista, uma grande viagem para fora do meu interior. Há algo dentro de mim, que quer sair e vai saindo, que pede autorização para existir por medo de pôr para fora seu interior.

Há um medo enorme aqui dentro, além do medo de ser uma mulher escritora, que é o medo de ser algo que nunca me disseram que eu podia. Minhas conquistas de garota da serra eram resistir bravamente a uma cidade enorme e a seus salgados e refrescos por R$4,50. Seguir adiante disso, romper com o destino de ser professora, de voltar para o interior, é um panorama apavorante para quem sente expirar de tempos em tempos sua licença de interiorana. Como se precisasse, constantemente, renovar meu passaporte, volto para casa e piso na grama. Renovada, calço meus sapatos e sigo a jornada.

Arte por Gemma Capdevila.

Quando li meus poemas na frente de todas aquelas pessoas com sotaques diferentes do meu e reforcei ali, entre risos nervosos, minha obsessão com plantas e coisas sem valor, percebi que não havia nenhum risco. Todo o risco e toda a apatia que construí dois meses antes tentando me defender de mim mesma se desfizeram. Ali, sentada, com minha revista amassada de nervoso, renovei meu passaporte de poeta matuta, mesmo sem grama.

Agora sei que, no fim das contas, a chuva de verão, os cupins, os cavalinhos de santa Luzia, o doce de figo, o alpiste brotando no lixo e meus pés amarelos de nódoa da grama jamais deixarão meus olhos. Na frente de todos aqueles que me ouviam eu finalmente me autorizei: eu sou e sempre serei o que deixei brotar do meu interior.

Para ouvir o podcast que gravamos com Estela Rosa, clique aqui!

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Estela Rosa
Mulheres que Escrevem

Poeta e caipira, curadora da Mulheres que escrevem. Mestranda em Literatura-UFRJ e autora de Um rojão atado à memória (7 Letras) e Cine Studio 33 (Macondo).