Eu não sou uma mulher difícil de amar

Sobre figuras femininas, amor e escrita.

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem
8 min readMay 2, 2017

--

Arte: Camelia Pham

Em janeiro deste ano li o Deslocamentos do feminino da Maria Rita Kehl, um livro que se debruça sobre a relação entre a clínica psicanalítica e a posição feminina fazendo uso, principalmente, da literatura como um documento que nos dá acesso ao inconsciente — que é sempre uma instância coletiva, ou seja, social — do século XIX. Nesse livro fica evidente o quanto a psicanálise dá à linguagem o estatuto de uma materialidade que constrói e transforma a vida humana a todo o tempo — uma perspectiva que me agrada muito — de modo que toda produção discursiva — literatura, jornalismo, marketing, textão no Facebook — tem um impacto no mundo. É, assim, tratando os livros como documentos privilegiados, que Kehl analisa de que maneira ocorre, no mesmo período no qual a psicanálise emergiu, a invenção de uma figura feminina que é profundamente atrelada a um ideal romântico.

São muitos os pontos que gostaria de destacar sobre esse livro, mas aqui me interessa sobretudo duas coisas: O procedimentos de amar, inventados por homens, que envolvem a figura feminina e a materialidade da literatura.

Kehl expõe como o ideal romântico aposta numa posição feminina que se fundamenta em procedimentos contraditórios: A recusa e a submissão. A recusa é a posição que a mulher deve sustentar antes do casamento, como um objeto casto que se valoriza apenas para instigar o prazer masculino da conquista. A submissão é o ato seguinte, no qual a mulher já conquistada deve venerar aquele que a domou. Para além das expectativas românticas conflituosas que essa invenção produz, há essa violência grotesca: Não cabe aí o desejo das mulheres, a performance tipicamente feminina nessa concepção de amor é passiva e moldada exclusivamente a partir do desejo do outro.

Lacan diz que o desejo é sempre desejo do outro o que parece mais uma dessas formulações obscuras que ninguém entende, mas que, para mim, se faz mais compreensível quando penso na recusa e na submissão como procedimentos que as mulheres podem executar, não como obrigação, mas como meio para um tipo de desejo: o de serem coisas desejáveis. É importante reconhecer que isso é uma opção. O que provoca a opressão das mulheres é quando essa parece ser a única opção e não cabe a nós o papel de desejantes. Quando o desejo das mulheres começa a mostrar os dentes e deixar suas manguinhas de fora algo já se estraga, porque é um risco na passividade que se espera desses seres.

O problema é enorme porque nenhuma opressão se estabelece sem uma gama de resistências. Dentro de cada narrativa que sustentamos por algum tempo como Lei ou Verdade há toda uma praga de possibilidades explorando cada milímetro que resta entre um símbolo e outro. E as mulheres, apesar ou justamente a partir do silêncio imposto, aprenderam a infestar o mundo com outras formas de dizer seus desejos. Assim, nasce a histeria, o corpo que fala o que a língua deve esconder, a astúcia das que fazem uso desse jogo, que sabem exercer os procedimentos guiadas por um desejo ativo, e a posição de infeliz coragem das que recusam.

“Assim como o orgulho das mulheres, antes do casamento, só se pode manifestar tenacidade com que elas resistem à entrega, a coragem feminina também não tem outro modo de emprego, e Stendhal refere-se à firmeza com que certas mulheres resistem ao amor, como a qualidade mais admirável que existe sobre a terra. Mas essa coragem, temperada pelo hábito do sacrifício e do pudor, assim como o orgulho feminino, são qualidades íntimas, invisíveis socialmente. “Uma infelicidade das mulheres é que as provas dessa coragem permaneçam sempre secretas e sejam quase impossíveis de divulgar. Uma infelicidade ainda maior é que ela seja sempre empregada contra sua felicidade”.

Cito 3 posições possíveis, mas isso não é para ser um catálogo, é o que consigo visualizar e se escrevo é porque preciso de um repertório mais amplo do que essa ninharia. Esse jogo, que a gente ainda costuma tomar como amor, me parece uma rua sem saída independente do lugar que se ocupa.

Tem sido recorrente um tipo de discurso entre as mulheres da minha idade: Somos difíceis de amar. Isso é afirmado não mais como uma falha nossa, mas como uma incapacidade masculina. Em poemas, músicas, artigos na internet e séries existe esse tema: Mulheres socialmente (mais) independentes e ideologicamente livres que estão insatisfeitas quando o assunto é o amor. Amar parece difícil, insuportável, impossível, uma trapaça.

O que essa produção discursiva sustenta, às vezes de modo mais implícito e em outras mais escancarado, é que as mulheres livres não são feitas para o amor, que os homens são incapazes de acompanhar seus ritmos e, principalmente, de aceitá-las indomáveis — basicamente uns boy lixo frouxo do inferno. Nessas narrativas, a mulher livre é sempre um excedente, algo intenso, pesado, sedento, desejante demais.

Tenho pensado muito sobre o que isso quer dizer sobre nós. E me pergunto o que significa esse “demais”, de onde tiramos esse parâmetro? De onde vem o tamanho que delimita esse excesso? Afinal, sobre quem e para quem estamos falando/escrevendo?

Quando o amor e o desejo da mulher se libertam de seu aprisionamento narcísico e repressivo para corresponder aos do homem, parece que alguma coisa se esvazia no próprio ser da mulher. Os suicídios de Ana e Emma são nesse caso, exemplares. Teriam suas vidas perdido o sentido depois que elas se entregaram sem restrições ao conde Vronsky, ou a Rodolphe Boulanger? Não; diria que a perda de sentido se dá nelas próprias. Ao desejarem e amarem tanto quanto foram amadas e desejadas, elas deixaram de fazer sentido como mulheres — primeiro para os amantes, depois para si mesmas.

Maria Rita Kehl em A mínima diferença

Um texto privilegiado para pensar essa questão é o Para mulheres que são difíceis de amar, um poema da Warsan Shire que provoca uma intensa e contínua repercussão. A primeira imagem do poema é a de um cavalo que corre sozinho incapaz de ser domado. Essa metáfora que dialoga perfeitamente com uma cena icônica de Sex and The City em que Carrie faz um discurso sobre ser uma mulher indomável e que por isso perdeu seu amor.

Nós precisamos escolher nossas identificações e por isso a arte ou qualquer coisa que envolve representação importa, porque dita as nossas possibilidades. Assisti a essa cena aos 16 anos, querendo ser escritora, não sendo exatamente bem sucedida em minhas incursões amorosas e com um cabelo de adolescente que não sabe ainda o que pode ser, eu vi minha possibilidade de futuro quando Carrie defendia a si mesma enquanto uma mulher livre e indomável. Copiei o monólogo no meu diário — dá uma dorzinha imaginar quantas outras garotas, talvez até Warsan, fizeram o mesmo.

O problema dessa defesa é que ela não é sobre o desejo de Carrie e, sim, sobre uma falta recalcada. O discurso supostamente libertador é apenas uma elaboração fantasiosa que se sustenta em imagens muito antigas. Carrie quer defender a todo custo que é uma mulher livre guiada apenas pelo que deseja, mas, naquele momento, o que ela deseja é justamente o desejo de um homem que, por sua vez, parece desejar uma ideia de mulher completamente incompatível com quem ela é. Mas, em vez de acatar e sofrer essa perda, ela sai de cabeça erguida como uma vitoriosa, porque constata que o que ganha, quando perde o amor, é sua própria liberdade. Para não assumir que perdeu o homem que desejava, para desviar dessa vulnerabilidade insuportável, ela se consola enaltecendo uma falsa altivez, porque, assim, pelo menos, não perde a identidade que construiu para si mesma. A recusa ainda é o que conhecemos como um caminho para nossa liberdade.

O poema de Warsan Shire e o episódio de Sex and the City são eficazes porque afagam justamente a dor mais delicada quando se vive uma rejeição: a perda de si mesma, essa ferida narcísica, é um luto melancólico e trabalhoso. A gente, eventualmente, percebe os objetos de amor não são tão insubstituíveis assim (já dizia Beyoncé, não é mesmo?); o delicado nessa operação é o quanto colocamos de nós, a torção que aceitamos quando nos dispomos a amar mais do que ser uma coisa amável ou quando ser amada significa se abster dos nossos desejos.

No entanto, Para mulheres que são difíceis de amar tem um complemento, entre parênteses, A afirmação. Ele compõe um dos 7 estágios da solidão no áudio livro Warsan versus a Melancolia, é, portanto, uma fase que se atravessa em um processo. É assim que tento pensar essa narrativa: Algo que precisamos gritar para o mundo, uma insatisfação que dói, porque significa se compreender por anos como algo que não pode ser inteira e que, quando ousa essa liberdade, é condenada ao destino de triste, louca ou má.

Acho que precisamos nos debruçar sobre essa ferida para seguir. Porque não pode ser aí o ponto de chegada. Porque enquanto nos tomamos como excesso usamos um parâmetro alheio a nós; porque quando acatamos a posição da recusa como uma altivez mitológica estamos fazendo uso de narrativas que não são sobre nós, mas sobre os desejos que nos atravessam; porque enquanto focamos na falha ou na incapacidade masculina não podemos perceber as possibilidades que existem nas nossas mãos. Em resumo, porque remoer essa ferida é preciso, mas não é nosso destino, não pode ser.

Tenho pensado muito sobre amor e escrita, os mitos e figuras que me formam enquanto mulher e escritora. E penso em como escrever melhor.

Acho que, nós, mulheres vivinhas neste ano de 2017, estamos presenciando uma nova onda feminista que produz uma proliferação de discursos e movimenta radicalmente nossos desejos.

Como escritora, quero fazer parte disso em um mergulho cuidadoso, entendendo que colocar uma palavra no mundo é um gesto de responsabilidade. Por isso pensar em qual verso/ história/ relato eu quero construir como uma possibilidade de futuro.

Como mulher, quero participar desses movimentos como uma tentativa de descoberta e investigação que amplie meus repertórios de possibilidades, que me permita ser, muito além da representação de uma figura, uma pessoa contraditória, polifônica e desejante.

Os sete estágios da solidão termina com uma oração:

se deixará meu coração macio

quebre meu coração todos os dias

Como Warsan diz no primeiro verso dessa saga, também não sei quando o amor se tornou tão insustentável, mas todos os dias peço às forças que desconheço que continuem me movendo, mesmo que isso me quebre. Porque estar vulnerável é melhor do que acatar a recusa e me colocar em uma redoma na qual sou soberana e inalcançável. Porque o meu desejo não é excesso, é parte fundamental de quem sou. E eu digo sim.

Para ouvir o podcast que gravamos com Taís Bravo, clique aqui!

Se você gostou desse texto, clique em “❤” , recomende para outras pessoas! Deixe uma nota, comente, compartilha com o mundo. Escrever é muito solitário, por isso é importante essa conversa. Também aproveite para assinar minha newsletter: http://tinyletter.com/taisbravo

--

--