Céu de inverno (fotografias: arquivo pessoal da autora)

Ler não é uma competição

[Experiências de leitura #5]

Carla Soares
Mulheres que Escrevem
8 min readJun 14, 2017

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Se tem uma época do ano em que não tenho vontade de nada, essa época se chama inverno. Aquela história de coberta e livros não costuma funcionar comigo.

Sinto como se eu continuasse interessada em ler, mas não conseguisse de fato comprometer minha energia com absolutamente nada neste momento.

Ano passado foi a mesma história: diminuí muito o meu ritmo de leituras nas beiradas de junho. Neste ano, o primeiro mês frio me deixou ler só um livro — foi Ritos de Adeus, da islandesa Hanna Kent — e só porque eu tinha feito um compromisso com as amigas do meu clube de leitura por skype. Até cheguei a escolher um livro sobre astrologia que parecia interessante na estante da minha irmã, e fui capaz de estudar algumas partes com gosto, mas sem chegar ao fim. Cheguei a começar também um livro de ensaios entusiasmante, com um um tema que me pega bastante — The Lonely City: adventures on the art of being alone, da inglesa Olivia Laing — , e ainda assim tudo anda a conta gotas. Não passei da página 30. Em nenhum desses casos consegui assumir um compromisso mais sério de terminar a leitura.

É justamente nesse período que me sinto mais vulnerável, improdutiva, um fracasso. É uma época em que eu paro de funcionar e fico muito mais recolhida. Não me dou bem com o frio, e ele me desacelera de verdade. O efeito que sinto é semelhante ao que vejo acontecendo com as plantas: algumas assumem uma aparência quase morta, sem folhas, outras apenas param de crescer e soltar brotos novos e ficam estacionadas. Essa sou eu no inverno.

Sei que muita gente reage de maneira oposta à estação, e se sente muito bem disposta, mas não estamos aqui pra opinar que clima é mais agradável. O que dá pra gente entender quando percebemos que nossa disposição varia conforme o termômetro é que temos ritmos. Temos tempo de nos sentirmos mais à vontade, com mais energia, disposição; e temos tempos de balanço, de recolhimento, de armazenagem.

Nem sempre nossos períodos de recolhimento e disposição coincidem com as estações do ano. Ainda mais se pensarmos no tamanho do país e na diversidade climática, frio e calor são bastante relativos, e variações às vezes são inexistentes em algumas partes do país. Também não temos mais uma relação muito intensa com as estações, seja porque os alimentos não mudam em cada época dentro dos supermercados, ou porque estamos constantemente dentro de escritórios e na frente das telas, um pouquinho alheios a essa esfera do mundo. Por isso, muitas vezes nossos ciclos só se tornam visíveis quando acontece algo importante, como descobertas ou oportunidades que aparecem e percebemos como estamos mais ou menos dispostos pra qualquer atividade. Ou ainda, acontece da gente nem se dar conta de que os ciclos existem, e ficamos nos cobrando pra continuar bem, fazendo, querendo, com o mesmo pique sem mudar nunca.

É preciso reconhecer que às vezes o mundo é muito hostil com essa disposição cíclica tão natural em nós. Mulheres, aliás, reconhecem com facilidade essa hostilidade: ao invés de exaltar a previsibilidade que nossos ciclos biológicos carregam, com uma alternância de picos e declínios marcadas pelo nosso ciclo mensal reprodutivo, a nossa cultura tende a nos diminuir pelo fato de que a gente oscila, mesmo sabendo que as oscilações são completamente esperadas. Vira e mexe a gente tem de agir como se não tivesse nada diferente, e por isso a gente pode levar anos pra entender de verdade de que modo esse diferente se manifesta na gente nos nossos ciclos. Isso só piora nossa relação com as mudanças.

Reconhecer que temos fases com maior ou menor disposição, e que isso não só é normal como também é interessante e desejável, é uma forma sutil de retomar vivências femininas que ficam subjugadas na nossa cultura. É assim que tento combater um pouco da minha decepção e cobrança interna de que eu "deveria estar fazendo mais": lendo mais, trabalhando mais, conhecendo mais, vivendo mais. Não importa o quê, mas apenas mais e sempre sem diminuir. Reconhecer que existem ciclos é ter confiança pra dizer que isso não é possível, e nem sei se seria saudável.

Ler não precisa ser mais uma obrigação. Nunca me senti confortável com metas de leitura porque elas me deixam ansiosa, com um saborzinho amargo de que há um lugar a se chegar. Quando eu preciso cruzar uma linha de chegada, não consigo criar muito espaço pra simplesmente navegar, saltar de livro em livro sem me comprometer muito com nada, ou até mesmo escolher não ler. E essas atividades são deliciosas também.

Ler não é uma competição — nem mesmo comigo mesma. Não tem linha de chegada, e não vai haver distribuição de prêmios. Ler também não é produção — e nem tudo precisa ser produtivo. Andamos tão carentes de espaços em que apenas somos, em que podemos fruir, que às vezes é difícil se desvencilhar de sentimentos ruins — como a culpa — de não estarmos fazendo o bastante (mas o que é bastante?), ou de não estarmos em dia com a leitura (e o que é estar em dia?), ou de estarmos ficando pra trás (atrás de quem?). Essa abordagem competitiva, que domina quase tudo o que a gente faz porque é parte do sistema produtivo em que vivemos, nos faz esquecer que o bom da leitura não é terminar, mas estar lendo. A atividade deve ser um prazer; ter prazer só no término é um desperdício.

Reconhecer os ciclos também nos permite botar em perspectiva um outro aspecto cruel do mundo em que vivemos: não somos máquinas programadas para funcionar 24/7. Precisamos de tempo de descanso, de assimilação, de pausas. De fazer nada. É assim que a gente acaba se lembrando de pequenos pedaços do livro, ou fazendo alguma relação com outra coisa que leu e viveu. E isso é algo que torna o livro vivo, e que aprofunda nossa relação com aquilo que foi lido.

Uma newsletter muito interessante do confirmou minha percepção sobre o que notei na minha falta de vontade de ler em determinados períodos. Nela, ele fala sobre como os ciclos climáticos, que alternam crescimento e recolhimento, regulavam a temporalidade dos nossos dias enquanto ainda vivíamos conectados à terra. A lógica dominante de produção e consumo incessante que vivemos hoje subtraem nossos ciclos — os da estação e também os do corpo — num processo que a psicóloga Teresa Brennan chama de biodesregulação. Colaboram neste processo desde "a iluminação artificial noturna, que aumenta a duração do dia e sua produtividade, passando por todas as inovações tecnológicas que vieram perturbar a alternância de companhia e solidão, barulho e silêncio, atividade e repouso que constituíam a vida cotidiana."

Não me sinto imune à pressão pra estar sempre fazendo algo — ler entra nesse pacote, mesmo que de um jeito meio torto; afinal, ler também se parece com o ócio, ou com um modo de tornar o ócio produtivo. Mas eu luto contra esse sentimento, especialmente quando resolvo compartilhá-lo publicamente. Ao escrever sobre minhas experiências de leitura, tenho tomado muito mais conhecimento dos meus próprios ritmos pois sou obrigada a refletir não só sobre o que leio, mas sobre como leio, porque leio, onde leio, entre outras pequenas questões. Vivenciar o tempo de não ler, longe de ser preguiça, falta de força de vontade, ou um desperdício do meu tempo, tem se parecido cada vez mais com um pequeno ato cotidiano de resistência a coisas que não me agradam no mundo. É um modo de me conectar comigo mesma pra entender que não há uma linha de chegada, nem os livros que "preciso" ler, e nem uma disputa pra ver quem sabe mais, conhece mais, experimentou mais.

A pausa também é uma experiência, e das que cada vez menos estamos em contato. Parar não é esvaziar a vida e sim enchê-la de significados. E eu espero que, ao compartilhar sobre minhas pausas também se torne possível que outras pausas por aí aconteçam, sem cobranças, sem culpas, mas como uma experiência tão plena quanto qualquer leitura de um livro.

Três textos sobre os ciclos e o tempo parado (e sobre a ausência deles):

Da próxima vez que não sentir disposição pra ler por uma temporada, experimente lutar contra o sentimento de estar desperdiçando seu tempo por não estar lendo. Faça o que seu corpo pede e não leia, nem se sinta mal por isso. Reconhecer ciclos é um movimento importante, e tem muita gente conversando sobre a importância das pausas dentro dos nossos ciclos. Pra me sentir menos sozinha, eu tenho me cercado de mulheres que estão pensando nisso, e queria dividir algumas dessas reflexões com você. Vamos juntas:

Em defesa da lentidão ) — Esse texto é um convite e tanto a repensarmos como nos relacionarmos com a necessidade incessante de produzir — especialmente a de escrever. Precisamos reconhecer a importância do tempo devagar. Ter um tempo de pausas é um jeito interessante de fazer o tempo passar mais devagar. Quando as coisas acontecem rápido demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo.

The inevitable future of Slack is your boss using it to spy on you (Lila MacLellan) — Essa reportagem mostra uma realidade quase distópica em que mecanismos criados para aumentar a produtividade se tornam instrumentos para nos tornar cada vez mais como máquinas. A leitura me deixou apavorada. Também me fez pensar que no caso da leitura, a gente tem um tanto de aplicativos e redes (como goodreads ou skoob, pra ficar só nos mais populares) que com o propósito de nos ajudar a monitorar nossas leituras, sem querer nos levam a pequenas competições, estabelecimentos de metas, produção de resenhas, ao estilo do exemplo que a reportagem traz. (em inglês)

Life-Hacks of the Poor and Aimless: On negotiating the false idols of neoliberal self-care (Laurie Penny) A princípio pode parecer distante do que discuti por aqui, mas acredite: não é. Amar-se e cuidar de si é um discurso bastante colonizado pelo mesmo ciclo de produção 24/7, incessante, do qual discutimos por aqui. Você sempre precisa fazer mais: cuidar mais da sua alimentação, da sua saúde mental, do seu sono, como uma forma de demonstrar que está bem e ajustada. Porém, o que a autora nota aqui é que o modo como o capital nos impõe esse tipo de cuidado gira sempre em torno de uma responsabilidade individual. Reconhecermos nossos ciclos, nossa biologia, e nossas experiências ganha outra conotação na proposta deste texto: sua importância deve ser coletivizada para se tornar uma resistência. Por isso, reconhecer e principalmente falar publicamente sobre a ausência de uma vontade de ler como uma fase compreensível seria uma espécie de auto-cuidado. (em inglês)

Para ouvir o podcast que gravamos com Carla Soares, clique aqui!

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Carla Soares
Mulheres que Escrevem

Escrevo sobre comida e PANCs no http://outracozinha.com.br, e outras coisinhas no Mulheres que Escrevem