O conto da mulher ativa

Seane Melo
Mulheres que Escrevem
5 min readSep 6, 2017
Ilustração: Savron

A luz do corredor tinha ficado ligada, constatei assim que meu cérebro começou a processar as imagens. Não fechamos a porta do quarto direito e ela se abriu deixando a luz do corredor penetrar no cômodo. No momento em que terminava de formular a explicação para ter acordado de repente no meio da noite, o vento sacudiu a janela fazendo um barulho assustador. Talvez tivesse sido a janela no fim das contas, avaliei, ou o frio. Encarei minhas pernas descobertas e encolhidas já sabendo que, ao lado, Arthur estaria todo enrolado no cobertor felpudo que ele jurava nunca usar. Sou calorento, tinha dito naquela noite, antes de se deitar só de cueca.

Eu era friorenta e, quanto mais o tempo passava, mais tinha raiva daquelas dormidas fora de casa. Especialmente das que não eram planejadas. Podia ter pedido um uber, só agora me dava conta; a grana tava curta, mas teria sido melhor dormir na minha cama, com um pijama quentinho, meias — meu deus, meias!, sentia o meu pé se contorcer de frio — e quantos cobertores quisesse. Ainda praguejava mentalmente, quando comecei a tentar roubar um pedacinho de cobertor para o meu lado da cama. Já julgava ter puxado o suficiente para cobrir as duas pernas, quando Arthur rolou na cama mais uma vez e prendeu tudo embaixo de si. Ninguém merece, repeti pra mim mesma enfurecida. Sem ter um bom plano em mente, concluí que minha única opção era ficar deitada encarando o teto, talvez não estivesse tão longe de amanhecer. Quis checar as horas, mas não sabia onde tinha deixado o celular, provavelmente dentro da bolsa, que ficou na sala, e eu não gostava de andar sozinha pela casa alheia. Pensava isso enquanto o celular de Arthur piscava no criado mudo ao meu lado, queria só ver as horas, mas não tinha coragem de apertar o botão de desbloqueio. Homem já é paranóico, se ele acorda de madrugada e me olha com esse celular na mão, vai surtar.

Fiquei pensando em todas as coisas que não podia fazer na casa dos homens com quem saía e lembrei de uma vez em que acordei às 8h e fiquei deitada até 11h esperando um cara acordar. Esperei quase uma hora antes de decidir fazer xixi e, ainda assim, fui na ponta do pé. Cada vez que ele se mexia na cama, meu coração se enchia de esperança imaginando um omelete com café preto em breve, alarmes falsos. Só almocei naquele dia.

A pele e o frio alimentavam a minha raiva. Todos esses anos de solteira, todas essas relações passageiras, toda a minha boa vontade com eles, toda a minha paciência para, no fim, ainda sentir as pernas e os pés congelando na casa de alguém que nem fez questão de me chupar. A minha versão de 20 anos, que sequer tinha coragem de reclamar de beliscões nos mamilos e masturbações mal feitas, não parecia tão distante dessa versão de 30 anos afinal. Experimentava cruzar um pouco mais as pernas e testar posições em que elas ficassem mais quentes, quando um pé encostou na canela da outra perna. Ai, caralho, xinguei baixinho no automático. Sempre me disseram que eu tinha pés gelados, mas ficar por aquele tempo sem coberta, parecia ter potencializado em muito isso. Olhei pro calorento ao meu lado, todo empacotado no coberto felpudo, e, antes que desse por mim, estava em pé na cama puxando o cobertor com toda a raiva acumulada ao longo de muitos homens medíocres.

Arthur acordou sobressaltado quando consegui arrancar o pano. Tentou falar alguma coisa, mas, antes que formasse uma palavra, me posicionei em cima dele e perguntei com uma voz melosa: você tá com calor, Arthur? Você me disse que sentia calor à noite, lembra? Posso te ajudar, baby?

Coloquei o pé esquerdo sobre sua coxa direita e escutei Arthur gemer ao sentir o choque do pé congelado contra a sua pele quentinha. Minhas unhas arroxeadas contrastavam com sua pele clara. Achei que pararia ali, mas não tinha nada a perder e queria mais. Pisei em sua outra coxa e o encarei, esperando que me expulsasse dali. Arthur não disse nada, dessa vez, só fez uma careta. Passei um pé carinhosamente pela sua barriga e o observei soltar um sorriso nervoso, então, caminhei pelo seu tronco até parar sobre o seu peito. Dentro de mim, uma parte pedia desculpa e perguntava se doía, outra, dizia que não estava nem aí. Precisei me agarrar à última para continuar.

“Você acha o meu pé gelado, Arthur?”, pergunto manhosa.

Ele sinaliza que sim com a cabeça e envolve minha panturrilha em suas mãos.

“Ele tá gelado assim porque você é malvado comigo, Arthur. Eu sou boazinha mas você é malvado. Isso me deixa zangada, sabe?”.

“Desculpa, baby, não foi minha intenção”, responde com um olhar sugestivo.

“Eu perdôo você, baby, mas você tem que prometer que vai cuidar de mim. Promete?”

“Prometo, faço o que você quiser”, completa passeando as mãos pelas minhas pernas.

“Eu quero sentar em você, Arthur”, digo já me virando e sentando sobre a boca dele. “Tá tão difícil dormir, baby, tô tão acordada. Preciso que você me faça gozar, gozar ajuda a dormir, sabia?”, descanso o meu corpo sobre o dele, enquanto Arthur me chupa.

Acordo às 9h30, perdida no cobertor felpudo de Arthur. Estou sozinha na cama, mas escuto água caindo de alguma torneira. Chamo por ele apreensiva e escuto passos no corredor, espero ainda deitada enquanto penso que teria sido mais prudente já ter me vestido pra sair.

“Você gosta de café?”, Arthur aparece sorrindo e pergunta com uma piscadela.

Não soube se foi a voz tímida dele em sua lembrança ou a voz inconfundível da noite fria que a acordou. Por alguns minutos, tudo ainda era flutuação e distância, decalques de formas que não chegavam a se formar, o mundo era uma sonolência indiscriminável na qual ela podia até mesmo escolher ainda estar vivendo o passado. Sentiu a cama se materializando embaixo de si quando esbarrou nessa ideia de passado. Não é possível contar, senão no passado, pensou, e era preciso contar porque era preciso entender. O que queria entender era como noites tão mornas e familiares podiam desaparecer tão rápido, como as 730 noites daquele relacionamento agora não passavam de um tempo uniforme e irreal.

Esse conto forma uma dupla com O conto da mulher passiva, publicado em maio. Um pode ser lido sem o outro e os dois possuem seus próprios personagens, mas representam um reforço de pensar a alteridade.

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Seane Melo
Mulheres que Escrevem

Jornalista e escritora maranhense, autora do romance “Digo te amo pra todos que me fodem bem”