Vergonha de pedir ajuda? Que tal disfarçar dizendo que é pro gato? (As fotografias deste ensaio são de produções da autora)

A vergonha em aceitar livros como ajuda

[Experiências de leitura #2]

Carla Soares
Mulheres que Escrevem
9 min readMar 15, 2017

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Nem sempre é um processo tranquilo se livrar de preconceitos quando escolhemos o que estamos interessados em ler. Somos constantemente ensinados sobre o que os livros devem ser ao invés de construirmos respostas próprias sobre o que ler significa pra nós ou traz pra nossa vida.

Porém, se a gente quer ler coisas que sejam realmente significativas pra gente, é imprescindível a gente se livrar do medo de que existam os livros certos e os livros errados. O que existem são os livros que te tocam, que conversam com a sua experiência. E só você pode dizer quais são eles. Foi o que compartilhei por aqui mês passado, provocando a pensarmos O que falamos dos livros que lemos, na série Experiências de leitura, que estou publicando na .

Porém, se tem um tipo de livro que muita gente torce o nariz sem nem se dar ao trabalho de entender bem se faz ou não algum sentido ler, são os livros que se apresentam como livros de ajuda — prefiro pensar assim de maneira mais ampla, sem me apegar a um rótulo como "autoajuda", pois há mais preconceito com a ideia de ajuda do que o gênero literário consegue mostrar.

A lista da vergonha, escrito pela foi um dos primeiros textos que veio no encontro dos meus próprios incômodos com essa relação que a gente tem com nossas escolhas literárias. Ali, ela convidava a gente a refletir porque falamos de algumas leituras enquanto outras nos deixam encabulados, fazendo com que a gente se esquive de falar que lemos ou gostamos. Julgamos o tempo todo os livros — pela capa, pelo título, pela editora — , mas o mais terrível é ver como também julgamos as pessoas por aquilo que elas dizem ler. Ela terminava com essa pergunta:

Por que ainda agimos como se pudéssemos saber como alguém é pelo que lê, quando isso é impossível?

A minha experiência sempre foi de ter muito medo do julgamento alheio. Eu me sentia muito amedrontada de revelar meus interesses e que eles fossem tidos como fúteis e menores — e sei que especialmente mulheres se identificam com essa vivência. Eu não só sentia medo, como também sabia que na minha experiência houveram muitos momentos em que de fato isso havia ocorrido. De incrédulos como assim você nunca leu x? a um episódio inesquecível em que um colega tomou um livro da minha mão na sala de professores (e, acreditem, eu também era professora), o jogou sobre a mesa, rindo, dizendo eu não acredito que você está lendo isso. Por isso, eu me via constantemente dando desculpas para assumir coisas que eu gostava, enquanto outras me pareciam tão controversas que eu preferia ignorá-las.

Avaliamos um único aspecto, material e visível, como se ele pudesse definir quem somos, ao invés de pensar pessoas como uma soma muito complexa de experiências. Sofrer esse tipo de preconceito não é uma exclusividade de um tipo de livro; acontece com qualquer título ou gênero que não se pareça com o qual achamos que deveríamos nos comprometer.

Quando levamos esse julgamento aos livros de ajuda, o constrangimento costuma ser maior ainda. Temos uma relação estranha com a ideia de ajuda. Precisar de ajuda parece ser indesejável, ainda que ninguém consiga viver sem ela ou sozinho. Desde os bebês humanos, que nascem incapazes de se manterem vivos por si próprios, passando pela infância, idade adulta, maturidade e velhice, precisamos contar com alguém que nos ampare, nos faça companhia, divida as angústias. Tudo isso é ajuda.

Ser ajudado, no entanto, é associado com ser fraco, e com o seu ápice: ser um super fraco, um "fracasso". Esse tipo de pensamento não só prolonga por vezes algum sofrimento que poderia ser confortado por outras pessoas, como também nos impede de enxergar as inúmeras ajudas com as quais contamos ao longo da vida.

Também não é coincidência que nessa relação estranha que a gente alimenta com a ajuda, as profissões que são consideradas como tais — como enfermeiros, psicólogos, professores e cuidadores — recebem valores menores em comparação com outras atividades profissionais de mesma escolaridade e responsabilidade. Ainda: profissões de ajuda são vistas como tipicamente femininas. Papéis sociais que inspiram ideias de assistência também estão no feminino — são mães, tias e avós que são vistas como incumbidas de ajudar, com uma frequência e intensidade muito maior do que suas contrapartes masculinas.

Há um componente bastante misógino no nosso estranhamento com a ajuda e o ajudar. Parece que não só não nos sentimos muito bem em dizer que precisamos de ajuda, como também valorizamos pouco quem exerce esses papéis. Numa cultura machista em que tudo o que se associa ao feminino é de "segunda categoria", a ajuda é empurrada como uma exclusividade feminina porque o feminino é "o gênero dos fracos".

Apesar de ser um estilo literário com vendas altas, merecendo do mercado editoral uma lista própria com os mais vendidos do gênero, os livros de autoajuda costumam ser fonte de controvérsia, especialmente entre as pessoas que mais se interessam e têm prazer com a leitura. Por isso mesmo, livros de ajuda ou de autoajuda foram o tipo de livro que eu evitei ler durante toda a minha vida. Ou lia, e arranjava algum tipo de desculpa. Em geral, costumava dizer que tinha lido algo (supostamente) ruim pra poder criticar com propriedade (!). Rejeitava ou procurava desculpas pra ler livros de ajuda que me via lendo ou interessada, enquanto, por exemplo, nunca tive coragem de falar abertamente que não gostava de poesias, um gênero que nunca me disse muito, nem nunca me fez sentir à vontade, mas que sabia que era apreciado por muita gente.

Alguns argumentam que livros de autoajuda são muito superficiais e ilusórios, pois costumam generalizar situações, e daí serem sem importância ou fúteis. Outros reforçam que esse tipo de livro impede que pessoas procurem uma ajuda realmente eficaz, por acreditarem que serão capazes de superar dificuldades apenas com o apoio de um livro.

Parte dessas críticas parecem se esquecer de que existem livros que nos servem e livros que não são pra gente, como existiria em qualquer gênero que a gente escolha ler. Vão existir livros que, do nosso ponto de vista e da nossa história, vão soar ingênuos e pouco profundos, não importando se são ensaios, teoria, ficção ou poesia. Um único livro nunca dará conta da complexidade humana, mas isso não é um defeito. Vão existir outros que podem ser para você. Já a outra parte da crítica parece não se dar conta de que a ajuda nem sempre está tão disponível como gostaríamos, e poder contar com algum apoio externo, ainda que seja um apoio tão pouco social como é um livro, pode exercer um papel importante, como o de reconhecimento de uma questão. Pouco eficaz mesmo é não fazer nada e não procurar o apoio naquilo que lhe é possível. Morar dois anos no interior colocou particularmente essa falta de disponibilidade de ajuda no meu radar, e talvez tenha contribuído para que eu tenha aumentado minha experiência na leitura de títulos em busca de auxílio.

Além do preconceito que o gênero costuma enfrentar, o rótulo da "autoajuda" também contribui pouco para entender que a ajuda pode estar disponível em qualquer lugar, e não só nesses livros específicos. Ler ficção, ensaios, ou poesia pode servir como um auxiliar para entender uma questão ou iluminar uma resposta. É claro que também é importante que a ajuda dos livros não se restrinja a uma ajuda “auto”, pois sabemos que a partir da leitura socializamos ideias, e toda troca aumenta as possibilidades de acumular experiências e produzir sentido. Por isso também é tão gostoso poder conversar sobre o que lemos.

Não há nada errado em procurar apoio em um livro. Equivocado é perpetuar nossa visão de que precisar de ajuda é não ser forte o suficiente. Ou a ideia de que existam pessoas fortes e outras pessoas que não são fortes — independente do gênero. Precisar de ajuda não torna ninguém menos forte; talvez apenas um pouco mais humanos.

As fotos que ilustram esse ensaio são do divertidíssimo Yoga para Gatos, com textos da Christiénne Wadsworth e ilustrações da Lynn Chang-Franklin: bom humor pra dissipar preconceitos.

Cinco livros de ajuda escritos por mulheres pra você dar uma chance

Nem todos os livros são pra gente, mas não custa conhecer o que tem por aí. Eu já tive muita vergonha de dizer que me interesso por livros desse gênero, e precisei reconhecer muita coisa em mim pra ver que não passava de preconceito. Escolhi 5 livros — todos escritos por mulheres — que me ajudaram a quebrar a ideia de que livros como ajuda não era pra mim, e resolvi dividir por aqui. Quem sabe algum deles também não é pra você?

A arte da imperfeição (Brené Brown) — Você já deve ter topado com esse nome por aí. A autora ficou muito conhecida a partir da sua fala no TED, sobre vulnerabilidade, vergonha, e a dificuldade da gente assumir quem a gente é. Seu livro é uma extensão dessa fala, escrito de modo simples, bem objetivo. Por trás da acessibilidade do seu livro, no entanto, tem um longo trabalho de pesquisa, resultado do Ph.D da autora em Serviço Social (aliás, outra profissão de ajuda, vista como feminina e desvalorizada). Brown é didática mas não é pedante, e eu a lia e me reconhecia. Tenho muita coisa em comum com ela.

Pequenas Delicadezas — conselhos sobre o amor e a vida (Cheryl Strayed) — Como classificar este livro de nome tão controverso e adorável? Ele é um compilado de cartas escritas em respostas a uma coluna de aconselhamento online chamada Dear Sugar. Não há um tema específico do livro. Ela fala sobre decidir ou não ter um filho, sobre ser traído, sobre violência em contextos de vulnerabilidade social, sobre nem sempre conseguir pagar as contas, ou se sentir perdido. Isso não quer dizer que os conselhos sejam para você, nem que não sejam. Aliás, eu nem mesmo sei dizer se são conselhos. O que me deixou emocionada — aos prantos — foi perceber a franqueza com que a autora se coloca pra responder as perguntas que lhe são feitas. A Sofia Soter, na Revista Deriva, narrou suas desventuras recomendando o livro aos outros, que nunca se sentiam confortáveis em ler "conselhos". Ela nota, no entanto, o quanto o livro era tão oposto à sucessão de clichês que os outros esperavam: observar tal grau de vulnerabilidade na literatura, uma sinceridade tão aberta, é raro.

Quando tudo se desfaz: orientações para tempos difíceis (Pema Chödrön) — Não fique com vergonha. Todos nós passamos por momentos difíceis na vida, e não há nada de errado em tentar encontrar algum consolo ou conforto. O livro da monja budista Pema Chödrön é um carinho. Não é um livro sobre ensinamentos budistas, embora, é claro, eles estejam ali pela narrativa. Ela fala sobre como tudo muda, e sobre como lidar com o medo que sentimos quando essas mudanças chegam. Também fala de modéstia, boa vontade e ensina alguns exercícios simples pra acalmar nossa turbulência interna. Foi com ela que criei coragem pra tentar esses exercícios pela primeira vez. E não me arrependi.

A mágica da arrumação (Marie Kondo) — Esse livro tem uma carga de preconceito duplo: além de ser considerado autoajuda, também está na lista dos mais vendidos. O método de arrumação proposto é simples: você deve responder pra cada objeto se ele te traz alegria. Em tempos de excesso, ajudas para lidar com as tralhas é um alento. Enquanto lia, também pensei sobre o que ficou de fora do livro, sobre como o descarte também é parte da equação que nos faz consumir em excesso. Reduzir o consumo é muito mais importante pra evitar o acúmulo, mas nem por isso o método da Marie Kondo deixa de ter seus méritos.

Escrevendo com a alma (Natalie Goldberg) — Escolhi falar desse livro pra reconhecermos como um livro pode ser de ajuda sem ser exatamente autoajuda, e sofrer preconceitos da mesma forma por isso. Assumir-se como escritora é uma questão e tanto. O meu incômodo com essa ideia era tão grande que eu resistia a ler livros que falassem sobre escrita, apesar do meu interesse. A Natalie Goldberg convida a gente a acolher nossos escritos, de uma maneira tão gentil e bem humorada, que eu passei a acreditar ao menos um pouquinho em mim. E eu desconfio que ela esteja certa: nossa própria acolhida é o primeiro passo pra gente se tornar o que desejamos ser.

Para ouvir o podcast que gravamos com Carla Soares, clique aqui!

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Carla Soares
Mulheres que Escrevem

Escrevo sobre comida e PANCs no http://outracozinha.com.br, e outras coisinhas no Mulheres que Escrevem