Poesia é faca, pão, manteiga e dentes

Poemas não são úteis na escala de utilidade do mundo

Estela Rosa
Mulheres que Escrevem
5 min readMay 8, 2017

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Arte por Holly Exley

Quando entrei na faculdade de Letras, não me passava pela cabeça nada disso do que sou hoje. Foi preciso caminhar muito para chegar exatamente ao ponto em que me encontro agora, me autorizando (timidamente) a me dizer poeta. Já falei aqui sobre como acordar e dormir todos os dias em uma cidade do interior é algo que altera muito nossa perspectiva. Mas nunca falei como escrever também alterou essa minha realidade de acordar e dormir em uma cidade do interior. Quando cheguei ao Rio de Janeiro, para viver no Rio de Janeiro, para respirar o Rio de Janeiro todos os dias, ainda que eu sonhasse em voltar, precisei ajustar meus pontos de vista. As possibilidades se alargavam e eu me enchia de adjetivos para narrar aquilo que passava a viver.

Construir imagens poéticas, ao que parece, sempre foi minha atividade favorita. Minha família me chama carinhosamente de pipa avoada. Eu colecionava lixinhos da rua. Ressignificando toda uma vida ao meu redor. Ir embora do meu pequeno universo e alargar minha vista me trouxe uma necessidade imensa de narrar em detalhes meu novo horizonte. Foi nesse estado que encontrei um grande amigo, meu primeiro leitor de fato, com quem travei duras conversas sobre a escrita. Com quem troco muito até hoje. Acho que foi lá naquela aula de Teoria Literária, sendo eu uma das primeiras alunas dele, que o Caio Meira acabou me mostrando que era possível agarrar as palavras e fazer delas minha vida.

Arte por Holly Exley

Escrevi muita coisa lotada de imagem ao longo desses anos. Muita coisa cheia de adjetivo. Muita coisa para fazer os outros enxergarem o que eu via. Escrevi demais para que o mundo me entendesse. Meus textos e poemas se convertiam em lamentos incompreendidos, recheados de metáforas para, de alguma forma, fazer com que quem me lesse chegasse até mim. O que eu não percebia, de início, era o quanto isso era uma forma de egoísmo, uma vontade imensa de ser aceita e não de apenas comunicar. O Caio foi uma das primeiras pessoas a me apontar isso ao dizer que as imagens e metáforas poluíam a minha visão de mundo. “Olhem para mim, meu olhar é o mais único da cidade”. Spoiler: não, não era.

Aos poucos aprendi que todos os olhares são únicos e que isso pode nos colocar em uma espiral de desespero se lutarmos contra. Cada pessoa olha de uma maneira para a sua própria realidade e, para mim, escrever poesia se trata de entregar talheres para que alguém devore sua própria realidade e não a realidade de quem escreveu. Hoje, quando leio poemas ou textos com descrições extensas, metáforas longas, adjetivos demais, lembro de mim mesma desesperada por ser compreendida. Meu coração aperta. Mas em seguida me lembro de que foi só quando eu mesma aceitei compreender meu próprio olhar que a satisfação de ser lida veio.

Poemas não são úteis na escala de utilidade do mundo. Eles não servem para passar manteiga no pão, eles não servem para estacionar o carro e não servem para fazer cópias de chaves. Na escala da utilidade do poema, ele serve para mostrar de outra forma a manteiga, o pão, a faca e a mordida. O carro. A vaga. As chaves e a porta. Escrever poesia se tornou, pra mim, uma maneira de linguagem, um idioma de comunicação com o outro. O poema cabendo certinho, como uma luva, na vida de outra pessoa. Deixando de ser o meu olhar, passando a ser o olhar do outro. É preciso generosidade para escrever poesia. A imagem a gente deixa para quem lê, inclusive para nós mesmos, que escrevemos. A imagem a gente deixa para o leitor.

Arte por Holly Exley

Fabricar imagens é do campo da leitura. Entregar ferramentas é do campo da escrita. Percebi que quanto mais explicava o que sentia, o que via, o que era meu material de poesia, mais eu menosprezava quem um dia poderia me ler. Precisei passar por todo esse processo, esbarrar em alguém como o Caio, que me dissesse “ei, o que me interessa são as palavras e não suas visões” para que eu, enfim, aceitasse que minha potência era a palavra.

Hoje já não espero que alguém leia meus poemas e sinta-se como eu. Isso é de uma impossibilidade sem fim. Hoje eu espero que alguém leia meus poemas e me mostre uma realidade que até então eu não conhecia. Espero que peguem as ferramentas que criei e distorçam a realidade de uma maneira que eu mesma não seria capaz de ver. Também espero ter minha realidade alterada por outros poemas, fabricar eu mesma minhas próprias imagens.

Caio me disse que Hemingway reescrevia seus textos tirando as partes explícitas. Pensando nisso agora, chego à conclusão de que o que me interessa ao escrever é colocar quem lê em um local escuro, deixar quem lê acostumar a própria visão, se ambientar e se espantar. Criar em sua própria escuridão as imagens que lhe façam se sentir mais confortável depois do susto. O susto, o conforto, são coisas particulares. E vejo como é importante deixar espaço para isso. Enquanto leitora de poesia, percebo que os poemas que me invadem me deram voz para descobrir coisas que eu sentia e sequer sabia. Isso não significa me entregar facilmente imagens, isso significa atravessar meu modo de pensar. Deixar um caos em um lugar que não existia.

A utilidade da poesia é ser copo, faca, talher e não banquete. Deixo as metáforas para explicar o que não apavora. Para todo o resto, prefiro o susto. Ninguém disse que seria fácil.

Para escutar o podcast que gravamos com Danielle Magalhães sobre este texto, clique aqui!

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Estela Rosa
Mulheres que Escrevem

Poeta e caipira, curadora da Mulheres que escrevem. Mestranda em Literatura-UFRJ e autora de Um rojão atado à memória (7 Letras) e Cine Studio 33 (Macondo).