Projeto Que Mulherão da Porra

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem
4 min readNov 2, 2016
“Mulheres são fortes pra caralho” ou não, miga, ou não.

Essa semana quase deixei escapar a frase “Lido com as bads da vida me ocupando com novos projetos”. Ficou na ponta da língua. A frase que eu de fato disse, um pouco depois ou um pouco antes já não sei medir, foi: Não aguento mais não receber dinheiro para ser maravilhosa.

Dia desses estava bem arrasada então fui postar uma selfie no Instagram. Uma autoafirmação: Sou bonita demais pra aguentar tanto desgraçamento na cabeça.

Se é verdade ou não, não importa, há aí uma dinâmica: Minha cabeça dá todas as voltas possíveis na dor. Eu encaro e invento qualquer desvio só para não acabar nesse lugar em que não me resta nada além da tristeza. Óbvio que às vezes essas voltas provocam um mal-estar que é pior do que a tristeza. Mas prefiro carregar a insatisfação bem próxima e me manter em movimento do que correr o risco de parar.

Por um lado, isso é resultado de uma lógica bem nojenta que impõe a produtividade como medida e sentido de nossas vidas. Por outro, sou só eu tentando um caminho que pelo menos pareça coerente na vida adulta.

Em uma das minhas cartinhas falei um pouco sobre como desenvolvi um projeto de ser um Que Mulherão da Porra, uma imagem feminina que é imbatível, que resolve as coisas, que é maravilhosa & realizada.

A questão é que ser uma mulher envolve figuras que foram construídas por narrativas que não são nossas e que nos aguardam com todos os seus limites. Se socialmente nos foi negada a possibilidade de fazermos história, de alterarmos a ordem das coisas, inventarmos narrativas e escrever nossas próprias memórias, é difícil ser qualquer coisa além de uma personagem.

Essa questão se torna ainda mais complicada quando até o que supostamente deveria nos libertar acaba nos atando em outros paradigmas. É uma tendência dentro das narrativas feministas a ênfase no quanto nós, mulheres, somos maravilhosas, impecáveis, guerreiras e poderosas. Entendo que isso é um movimento importante de autoafirmação. É verdade que, em mundo que diariamente se encarrega de destruir a autoestima das mulheres, se amar é, sim, o início de uma revolução. No entanto, esses adjetivos às vezes podem ser um peso em vez de um alento. Porque o mais difícil é se reconhecer imperfeita e ainda assim se amar.

Muito da minha vida adulta parece girar exaustivamente ao redor desse conflito. Percorrer minha história às vezes é encarar uma série de ruínas, de peles abandonadas como peças que não me cabem mais e guardam mudas experiências de uma pessoa que conheço vagamente.

Eu busco uma permanência entre essas peças. É um esforço construir um processo coerente a partir disso, mas parece que essa é a única possibilidade de encontrar ou forjar um sentido. Nos ensinaram — pela própria lógica do sistema escolar — que crescer é um progresso: acumulamos experiências, conhecimento, títulos até que enfim chegamos lá.

Eu mal consigo vislumbrar uma continuidade.

Por isso eu gosto do projeto Que Mulherão da Porra. É um modo de forjar coerência e algum progresso. É uma estratégia possível para uma mulher adulta que não quer (ou simplesmente não tem) as coisas que as mulheres adultas devem ter.

Minha mãe — que quer me admirar incondicionalmente — tem uma justificativa pronta para todas as coisas que me faltam. Ela sabe direitinho as palavras chaves: forte, independente, corajosa. O mais constrangedor é perceber que eu também faço uso dessa narrativa para me justificar e com isso ratifico o que o mundo espera de uma mulher adulta, ou seja, me apoio nos parâmetros de uma narrativa que me oprime. Reconheço meus desvios como erros e não me aceito, mas tento me enfiar em um outro molde.

O problema com o projeto Que Mulherão da Porra é que é desconfortável não ser franca. No fim das coisas que importam a dor ainda é dor.

Se me afirmar em mais uma imagem feminina que não vai além de uma dimensão superficial ajuda a manter a minha vida em movimento, é um movimento que me faz desviar da responsabilidade dos meus desejos. É mais uma vez dissimular a tentativa de ser quem narra essa história.

Para ouvir o podcast que gravamos com Taís Bravo, clique aqui!

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