A vida TransGay de Kaito Felipe

História e trabalho do vlogger manauara, que vive em Curitiba e tem ajudado muitos homens trans do Brasil.

Lucas Panek
Não faz a frígida
8 min readMay 25, 2016

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Os tabus, o senso comum e a forma com que a mídia trata a transexualidade masculina chega a beirar o absurdo no Brasil, e não passam nem perto da experiência e da percepção real dessas pessoas. Em Curitiba, além do trabalho do Transgrupo Marcela Prado, um jovem chamado Kaito Felipe tem ajudado muitos adolescentes brasileiros com seu canal no Youtube, “A vida TransGay de Kaito Felipe”, onde fala sobre o seu processo de transição e incentiva o empoderamento de pessoas trans. Conheça a sua história:

Conta pra gente quem você é e como se deu conta da sua transexualidade?

Sou Kaito Felipe, tenho 23 anos, sou vlogueiro, um homem transexual e gay. Sabia que era transexual desde novo, creio que na realidade a gente sempre sabe de alguma forma, a única coisa que muda quando a gente cresce é descobrir os termos existentes. Nunca fiquei mal por ser transexual, só sabia que tinha algo de estranho por nunca ter me visto da mesma forma que minha irmã gêmea, que por sinal é gêmea univitelina. Então, de alguma forma as pessoas sempre estavam cobrando que fossemos crianças “iguais”, só que era muito evidente a diferença de personalidade de ambos. Desde cedo eu falava para minha mãe algo como “mãe, eu acho que nasci errado”, mas ela não acreditava.

Você tem um canal no Youtube, “A vida transgay de Kaito Felipe”. Como surgiu e o que ele traz?
O vlog surgiu pelo fato de que quando comecei a pesquisar sobre transexualidade só encontrava vídeos em inglês e era muito triste pois, como muitos brasileiros, eu não sabia praticamente nada de inglês, eu só soube o que significava por ter visto vídeos de meninos transexuais da frança marchando com diferentes corpos expostos nas ruas. E tínhamos um grande problema com os brasileiros pois, sempre que começavam um vlog sobre o assunto, acabavam desistindo depois que conseguiam a passabilidade. Assim eu me obriguei a nunca acabar com o canal e sempre atualizar ele. Foi assim que eu continuei. Então, meio que sou o primeiro menino transexual brasileiro do Youtube(não desistente!), o que penso que é bom pois atualmente muitos se assumem publicamente quando veem que cada vez mais não há desistentes.

Por que TransGay? Pode falar um pouco sobre essa questão?
TransGay, eu coloquei esses tempos pois queria um complemento pro meu canal, que se chamava apenas “Kaito Felipe”. Acabei juntando o fato de ter me descoberto gay depois da transição e ser Transexual, daí criei o termo TransGay.

No seu último vídeo, você aborda a problemática de a sociedade esperar que as pessoas transgêneras façam a transição para atingir o padrão cis de beleza e comportamento. Pode falar um pouco sobre isso?
Creio que isso é um dos maiores problemas, pois em cada local que você pesquisa sobre transexualidade, o que se encontra são postagens assombrosas de coisas como “homens transexuais maravilhosos” e o que se vê são meninos com o padrão cisgênero. O que acaba sendo até mesmo um pouco de desrespeito na minha opinião, não desrespeito por existir meninos transexuais que se pareçam com cisgêneros, mas desrespeito ao dar a entender que só há beleza nos meninos transexuais se eles parecerem meninos cis, entende? Muitos de nós não são musculosos, muitos não têm um corpo grande ou não têm barba, há quem nem se quer usa hormônios! Quem não entende nada do assunto, acha que todo homem transexual quer usar hormônio, fazer cirurgias e ter um padrão como esse e isso não é verdade.

Você me contou que vai sempre ao Transgrupo Marcela Prado. Desenvolve algum trabalho lá, ou o grupo tem algum significado especial na sua transição?

Um pouco dos dois, quando mudei da minha cidade natal (Manaus), eu sabia que existiam ONGs aqui. E quando falei que era transexual, me mandaram para lá. O Transgrupo foi o primeiro lugar onde me falaram “ué, não tem problema de ser quem você é aqui”, e eu ficava falando “Posso mesmo?!? Posso me apresentar com meu nome correto?”. Sempre vi o espaço como uma segunda casa. Participei de documentários por fazer parte de ONGs e depois disso não demorou muito a me voluntariar, pois participava de lá desde a segunda reunião de meninos transexuais. Com o tempo, me tornei coordenador de grupo e estava sempre levando gente nova.

Teve uma noite que foi muito legal, eles foram questionados sobre como chegaram ali e quase 80% deles responderam que foi por terem visto meu canal ou algo do gênero. Outro motivo que me dá orgulho de continuar indo lá é ver como tinha pessoas tristes e perdidas, que hoje em dia estão com a vida um pouco mais encaminhadas.

Acho que uma questão que as pessoas ainda tem muitas dúvidas é sobre o processo de readequação corporal. Como foi pra você?

De certa forma foi até rápido, com 11 meses de hormônio-terapia, eu fiz minha mamoplastia masculinizadora. Eu quase morri na cirurgia, tive hemorragia e corria riscos de inflamação, mas tive a sorte de não ter dor! Demorei 2 anos pra pagar, já tive momentos que deixei de comer pra conseguir passar pela transição, ir em psicólogos, pagar cirurgia, uma vez que ainda fiquei desempregado um pouco depois da cirurgia e não podia ficar com nome sujo pois me informaram que atrapalhava na mudança dos documentos. Foi um pouco desesperador, mas no final o esforço valeu a pena pois se eu não tivesse feito minha cirurgia, eu teria sofrido bem mais pra conseguir trabalho, ou mesmo conseguindo trabalho, eu não me sentiria a vontade perto das pessoas por medo de me expor em local inapropriado. A gente nunca sabe se é uma boa pessoa ou ruim que está por perto.

Você tem um perfil no Hornet, né? Quais são os principais problemas que você enfrenta com relacionamentos?

O principal problema é a ignorância e a preguiça das pessoas, pois a transexualidade é um assunto um tanto grande, então você tem que estar disposto a entender. Muita gente pergunta coisas como “você tem vagina ou pênis? só pra eu entender” e eu sempre respondo “por qual motivo quer saber? se você quer ter algo comigo tem que ser comigo por completo não por uma genital”. As pessoas muitas vezes ficam irritadas e começam a falar de cromossomos e mais uma vez eu questiono que cromossomos não são só marcadores sexuais e, então, cansam e falam “mas eu só quero entender”, eu completo com “Fui marcado/designado como menina ao nascer, mas sou homem”.

Se eu sou homem, eu vou ter uma vagina de homem (caso eu não seja um trans operado) pois meu corpo é de um homem. Eu gosto de quebrar esse padrão que dizem que nossos corpos são errados. Meu corpo não está errado, eu só faço alterações para me sentir a vontade, qualquer pessoa pode fazer isso se ela não se sente a vontade com o corpo e não é considerado um corpo errado, por qual motivo só o meu corpo e de outros Trans é errado?

Você conta que não sentiu dificuldades em aceitar sua transexualidade, mas já com relação à sua homossexualidade foi um pouco diferente. Por que isso?

Por que a sociedade é machista! Eu sabia que eu poderia até viver “normalmente” sendo transexual homem, caso eu ‘me escondesse um pouco’. Mas esconder ser gay é muito difícil, ainda mais quando estamos num relacionamento, quem que não gostaria de andar de mãos dadas ou dar ao menos um beijo de despedida na rua? E eu também tive dificuldade pois eu era um dos únicos meninos transexuais e gays na cidade. Então, eu não tinha com quem conversar sobre isso e no começo os meninos eram muito machistas nas reuniões. Era muito difícil pra mim, mas no final das contas não demorou tanto para eu me aceitar, pois eu sabia que não ia mudar nada não me aceitar, só faria as coisas ainda mais difíceis.

Tem alguma história que aconteceu contigo por causa do seu vlog?

Não posso chamar de fãs, mas sim de colegas ou mesmo amigos. O que sempre lembro é que foi legal receber mensagens com notícias boas, como o de alguns que não se mataram por não estarem sozinhos ou de outros que se revelaram meninos transexuais gays que tinham a mesma dificuldade de aceitação.

O problema é que as pessoas acreditam que ser transexual significa ser hétero, mesmo que não tenha nada ver! Ser transexual só diz respeito a como nos vemos na sociedade.

Qual o seu vídeo favorito do canal?
Eu tenho dois, atualmente o que mais gosto é o último que foi lançado, justamente por ser uma problemática:

E o segundo é mais de forma sentimental, que é sobre o aniversário de 1 ano de transição:

Afinal, o que sou hoje só aconteceu por causa do garoto corajoso de 4 anos atrás.

-Tem alguma coisa que gostaria de falar para as pessoas que ainda não entendem sobre a transexualidade?

Sim, inicialmente é ESQUEÇA a curiosidade do que temos entre as pernas, pois mesmo que alguém faça cirurgia não é como se fossemos andar por aí exibindo o resultado. Independente do que temos, existe toda uma estrutura corporal além da genital.

Em segundo lugar, faça muita pesquisa, leve seu tempo para entender, mas entenda de forma correta e respeitosa pois não adianta nada achar que entendeu o assunto e ir dizer que um “homem transexual tem corpo de mulher”. Se é um homem transexual, então o corpo é de um homem independente do formato!

E, por fim, quando estiver pesquisando sobre o assunto, veja se a pessoa que está lhe passando informação também entende do assunto pois, sim, há pessoas, mesmo no meio transexual, que não entendem muito do assunto. Eu mesmo no começo da transição ia na ONG para entender várias outras pessoas e fiquei calado por um bom tempo para que eu não falasse bobagens sobre ninguém de lá ou mesmo para não machucar ninguém, pois acima de ser transexual somos humanos e ninguém gosta de ser tratado sem respeito.

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