Arte: Matheus de Moura

Amizade, perigo e ficção: aos romances policiais que nos formaram

Após a morte de dois gigantes da literatura policial brasileira, dois jornalistas refletem sobre como essas obras influenciaram suas trajetórias como indivíduos e amigos

N.E.U.R.A. Magazine
12 min readApr 25, 2020

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Matheus de Moura:

Assim que o carro parou de roncar e tremelicar, nossos corações foram do ponto morto ao limite do velocímetro. Estávamos eu e Gabriel Daros sob a penumbra dos prédios da Beira-Mar Norte — bairro da região central de Florianópolis erigido na curva de uma costa fétida e imbanhável — , num fim de tarde outonal de 2016. O prédio em que entramos era dos mais finos e discretos naquela avenida acinzentada; tamanha discrição lhe aferia um aspecto de prestes a fechar. Não havia portaria, só uma magra escadaria com apenas um caminho: up. Subimos em silêncio, com eventuais entre-olhadas camaradas. O trajeto da Universidade Federal de Santa Catarina até aquele fantasma de edificação fora breve e tranquilo, mas a busca por uma vaga para estacionar nos drenara a pouca energia que duas pessoas de pé desde às sete da manhã podem ter às quatro da tarde. Ainda assim, após alguns lances de escada, ali estávamos nós: dois rapazes barbudos, com cabelos pendendo ao ombro, tremendo de nervosismo frente à porta de madeira do que deveria ser uma clínica de aborto de noite e uma clínica pediátrica de dia.

Essa era uma daquelas odisséias juvenis que começam muito antes da proposta indecente. Fazia alguns meses que eu vinha trabalhando numa continuação para minha pauta sobre como a internet pode servir de suporte para mulheres que desejam abortar aqui, no Brasil, aka o país que, em maior ou menor grau, faz da vida de qualquer mulher um inferno. Terceira fase do curso de jornalismo de uma das melhores faculdades federais do país e eu me via envolvido em histórias complexas demais para minhas habilidades primárias. Nessa pauta, em especial, buscava por clínicas, vendas de remédios etc — depois desse sofrimento, teria ainda de refletir sobre como transpor isso para um texto online sem delatar para a polícia os eventuais esquemas seguros que encontrasse; um dilema que, por sorte e azar, nunca precisei encarar. Depois de muito pesquisar, perguntar por aí e atrair vírus para meu notebook, cheguei a algumas possibilidades a serem testadas: poderia comprar pílulas com camelôs do Centro de Floripa ou marcar uma cirurgia com algum médico a ser designado com o responsável pelo e-mail que organizava essas ações. A primeira foi testada numa aula de Redação, junto de minha então namorada — e hoje noiva — , que se passou por uma grávida desesperada para uma senhora loira ovo que vendia carteiras. Curiosamente, era na carteira que ela mirava quando propôs uma cartela de Cytotec (remédio abortivo) por 600 reais, com entrega somente duas horas após o pagamento, com a justificativa de que a fornecedora teria de ser acionada. Claro que não fomos além em comprar a droga e testar se era legítima ou de farinha, pelamor de Deus, se hoje não tenho 600 reais para investir numa pauta, quem dirá no começo da universidade. Então testei a segunda possibilidade: achei o endereço de e-mail em inúmeros websites e blogs, todos com a mesma escrita, indicando-o como um agregador e mediador de clínicas espalhadas por todo Brasil. Três mil reais: nome do médico e endereço na Beira-Mar. Precisava checar a veracidade disso, afinal, um golpe de três mil reais pode ruir de vez uma pessoa que já não está em seu melhor momento.

Foi após perceber que minha namorada nunca teria horário para me acompanhar nessa segunda empreitada que, deitado na grama com meu amigo recente Gabriel Daros, ao mesmo tempo que eu disputava meu café com uma abelha que circundava o copo de isopor, propus: “Quer me acompanhar na clínica de aborto?”. Ele já conhecia minha pauta bem. Passávamos parte de nossas tardes tomando café, em intervalos de trabalho cada vez mais longos, discutindo técnica textual, relacionamentos frustrados e pautas que sonhávamos em fazer. Ainda não podíamos nos considerar íntimos, mas tínhamos a química de uma boa de dupla policial pastelona. Entediado e desinteressado em voltar para o moroso trabalho de assessor de imprensa na agência de notícias da UFSC, Gabriel deu de ombros e disse: “por que não?”.

Mais um café para cada um e alguns chips sabor isopor depois: enfrentávamos o dilema de como sustentar a narrativa de que eu fui checar o lugar para minha noiva e que ele, o cabeludo branquelo ao meu lado, veio me dar apoio para caso fosse uma cilada, Bino. Contudo, não precisamos gastar saliva com ninguém lá. O molho de chaves estava esquecido na porta, tilintando com a corrente de ar que transpassava pelo corredor uivante.

Nenhuma câmera de segurança.

Entramos.

Vazio como a caixa de lembranças de um recém nascido. Três salas largas, uma para recepção, outra para exames e uma última, ao fundo, para descanso do médico. Nenhum utensílio que indicasse a atividade, nenhum documento nas gavetas que apontasse para ilegalidades. Se algo, a coisa mais estranha daquele apartamento convertido em clínica pediátrica era a coleção de revistas adultas na gaveta do médico (tsc tsc, no meio do expediente, doutor?). Claro que vocês devem estar se perguntando: caralho, vocês revistaram as coisas dos outros? Pois, entenda, a curiosidade é o maior amigo do jornalista e nós dois, eu e Gabriel, somos curiosos por natureza e metidos a investigadores pelo excesso de literatura policial. O espírito detetivesco foi exorcizado pelo eco de passos no corredor. Saímos correndo, para descobrir que não passava de alarme falso. Contudo, já era hora de um terceiro café e o lugar se provou legítimo como clínica pediátrica, o que, por consequência, deslegitimou-o como clínica de aborto. A pauta, todavia, nunca foi publicada. O texto era um texto de estudante de terceira fase mais entusiasmado com o ato de investigar que apto para isso propriamente. Mais tarde um terceiro texto usou dessas informações e ajudou uma prostituta de Santa Maria a não cair no golpe do e-mail — mas isso é história para outro momento.

Numa mesinha ao ar livre, riamos da meia hora que passamos naquele lugar. Dois garotos que sonhavam em incorporar Mandrake, Espinosa, Rust Cohle, dentre tantos outros detetives/investigadores da ficção noir. Aquela fora a primeira de muitas aventuras detetivescas em que nos metemos. A primeira e mais importante para selar nossa duradoura amizade. Foi quando, energizados por mais e mais cafés, percebemos que o que tínhamos em comum, acima de tudo, era o delírio de um dia vestirmos a pele dos nosso ídolos imaginários. A literatura policial nos uniu. Foram Fonseca, Garcia-Roza, Larsson e Chandler que criaram oportunidade para nossa amizade e para investidas investigativas que iam do juvenil ao perigoso demais para contar para nossas mães. Para celebrar a amizade e a ficção desses mestres, tão mortos quanto vivos, escrevemos aqui sobre como eles mudaram nossas vidas tanto quanto aquela tarde na clínica que não era de aborto.

Enquanto escrevo, do outro lado da tela, Gabriel balança o molho de chaves da clínica, o qual guardou como souvenir.

Por trás de uma prosa visceral e amargamente violenta, Rubem Fonseca se apresentava como um homem carinhoso, mergulhado em amizades de longa data, em especial com outros escritores do mundo policial. Tal como eu e meu amigo Gabriel Daros, a fixação por morte e violência, seja na perspectiva psicológica ou sociológica, une todos aqueles que passam tempo demais divagando sobre o fim. A amizade e o companheirismo habitam o âmago das narrativas policiais tanto quanto morte, violência e traição. De pólos opostos que encontram um meio de sobreviver às diferenças e solucionar o caso, como acontece na primeira temporada de True Detective, a personalidades similares que se complementam com leveza, vide Espinosa e Welber, a amizade é essencial para o andar da carruagem. Isso porque mesmo a investigação mais simples exige eficiência e velocidade num nível que dificilmente alguém consegue entregar sozinho. Assim, por uma necessidade de baixar custos e aumentar o desempenho, o crime une duas pessoas, que provavelmente nunca se aproximariam em outro contextos, pela força inexorável da curiosidade perante a mortalidade.

Das amizades de Rubem Fonseca, a que mais se destaca publicamente é a com o escritor e jornalista Zuenir Ventura. Rubem bebia de suas experiências como comissário de polícia — na qual entrou em 1952 e ficou até 1958 — para construir personagens como Wexler, guia intelectual de Mandrake, neste caso, Weksler era o nome do verdadeiro, que além de ter sido colega de faculdade de Fonseca, tornara-se sócio dele num escritório de advocacia; enquanto isso, Zuenir, habitante do mesmo mundo sombrio que Fonseca, transitava pelos mesmos cenários violentos com o intuito de descrevê-los tal como eram, sem ficção, sem muito mais que sua própria subjetividade. É impossível não ler os livros dos dois sem pensar na possibilidade de Zuenir parar nas páginas de Fonseca e vice-versa. Essa proximidade com a violência crescente do Rio de Janeiro — e do Brasil num todo — faz da amizade deles especialmente forte aos olhos de nós, leitores mortais.

E há algo de muito belo nisso.

Após a recente morte de Fonseca no dia 15 de abril, li a coluna de Ventura, que vinha acompanhada de uma imagem marcante e fofa: ambos sobre uma bicicleta old school, já idosos; o jornalista na dianteira, de short demasiado curto, levando o ficcionista pelo Leblon na traseira da bike, vestido de camiseta branca e calça social. Tamanha intimidade dos escritores que Zuenir se via presente em cada premiação e honraria de Rubem, chegando a fazer parte da comissão que honrou-o com o Camões — o que deixou o ficcionista desconfiado quanto a veracidade da notícia, achando que seria uma brincadeira do amigo.

Claro que uma relação desse tipo pode estar unicamente relacionada com o universo dos intelectuais, da literatura e do carioquismo, mas não consigo deixar de pensar sobre a meditação excessiva sobre o fim, intrínseca ao ofício de escrever sobre morte e violência, sejam elas reais ou ficcionais. Se nenhuma ação humana é tão extrema quanto matar ou tão abrupta quanto morrer, nada mais lógico que essa experiência radical una os que sobre isso refletem. Penso sobre as outras amizades de Fonseca, mentor de inúmeros escritores, responsável pelo empurrão que levou Jô Soares à literatura, e nenhuma soa tão lógica quanto a com Ventura, nenhuma parece tão próxima da nossa realidade de leitores de romances policiais/true crime quanto a com o jornalista premiado.

Gabriel D. Lourenço:

Há uma cena na primeira temporada de True Detective que, quando se retira tudo de singular da situação, se torna, também, uma cena da minha experiência de investigação com Matheus.

No seriado, é assim: um carro corta as estradas de Louisiana. Dentro dele, não ouve-se nada senão o murmurar dos pneus na estrada e o motor ronronando. O investigador Martin Hart mantém as mãos no volante e os olhos na pista, enquanto seu colega, Rust Cohle, observa o passar interminável dos campos na paisagem cinzenta da janela. A cena é a mesma dos últimos três meses, onde ambos não se conhecem e tampouco se entendem. Martin decide resolver isso perguntando o que Cohle acha da vida. A resposta — a de que a humanidade é uma falha na evolução e todos deveríamos parar de nos reproduzir — só aumenta a estranheza entre ambos. Frustrado, o motorista propôe que os trechos na estrada entre um e outro passo da investigação sejam reservados para contemplação silenciosa.

O próprio Martin quebra essas regras criou. Não entendi imediatamente por quê.

Em outro lugar, no espaço-tempo da vida real, Matheus está ao volante, olhos atentos à uma saída daquele bairro estranho cuja familiaridade vinha do dia em que seus pais o levaram para almoçar frutos do mar nos arredores. O horizonte escurecido não nos desvelava mais praias, apenas faróis acesos, que faziam as sombras mais sombrias por contraste. No banco do carona, eu fitava os rostos que tornavam-se borrões suspeitos, que por sua vez estranhavam nossas camisas brancas e gravatas pretas. Eu me questionava em silêncio qual deles podia ser amigo de um assassino, e pelo simples fato de termos feito a mesma pergunta para tanta gente numa tarde inteira, me irritava só da mente repeti-la, como quem quer levar trabalho pra casa. Matheus, entretanto, vocalizava as questões — mesmo eu implorando para que não.

A primeira cena, claro, é ficção. A segunda, não. Viver essa experiência me fez entender que a amizade cristalizada por uma investigação é diferente da média das relações profissionais. Não à toa, Martin quebra sua regra de silêncio. Não à toa, eu também passei a debater as possibilidades com Matheus.

Os investigadores de True Detective estão certos em querer entender também um ao outro. Isso é crucial para estabelecer confiança mútua, e confiando se entende, e se entendendo, a investigação vai pra frente. Rust e Martin, mesmo tão diferentes, ao estarem confinados um com o outro no trajeto, partilham visões que só o companheiro ao lado, que testemunhou e se intrigou pelas mesmas minúcias, poderia entender. Esse tipo de compreensão, tão preciosa, é o que sustenta as relações de buddy cops — os policiais parceiros que confiam mais em um ao outro do que na própria corporação que trabalham.

Esse tipo de relação eu fui entender enquanto discutia com Matheus nas nossas inúmeras voltas investigativas. E porque as conjecturas, ainda que meros palpites, fazem parte do trabalho. É assim que teses se testam, ideias se organizam, e suspeitas desaparecem (ou se aprofundam). Era assim com os investigadores de True Detective. Era assim com Espinoza e Welber nos livros de Garcia-Roza. Era assim com Mandrake e Raul nos trabalhos de Rubem Fonseca. Foi assim com Matheus e eu, uma amizade que surgiu da paixão pela literatura policial e evoluiu para um buddy cop de verdade — que eu descobri, não era tão ficcional assim.

Tenho que dizer que sou muito grato por isso.

Eu tinha virado a madrugada do dia 15 de abril lendo O Silêncio da Chuva, de Luiz Alfredo Garcia-Roza. 210 páginas se passaram voando. Aquele foi o romance de estréia de um autor que começou a escrever tarde, já passando dos sessenta. E me deixou completamente impressionado. Tão logo o Sol raiou, mandei uma mensagem ao meu buddy. “Acho que encontrei um nome do policial brasileiro que vale à pena ser lido, um que carrega a tocha do gênero tão bem quanto Fonseca.”

Mais tarde, uma pré-vestibulanda, em tempos de quarentena, pede indicações no Instagram de autores brasileiros pra ler. Escritores que fossem tão bons quanto nosso amado Machado de Assis. Indico a ela Rubem Fonseca. A conversa evoluiu para como o autor é um dos nossos maiores gigantes da literatura, na minha opinião o maior contista de nosso país. No meio de meu encanto me peguei pensando se uma jovem de dezenove anos em Caxias do Sul teria a mesma impressão que eu, um criciumense itinerante, de que aqueles contos eram o retrato de cenas universais das ruas de um Brasil tão urbano, arrebatador e irônico.

Não sabia como seria a primeira impressão dela com Fonseca. A minha foi de querer matá-lo, abrir seu cérebro e devorá-lo pra ver se me tornava tão gênio como ele. Algo que não fui o único a sentir: boa parte dos escritores brasileiros tinham reações parecidas, a ponto de imitá-lo. Eu quis também, no começo dessa jornada. Me perguntei então se o mesmo ocorreria com ela, que tinha a sorte de ainda não conhecê-lo e, portanto, teria maior chance de se impressionar com ele. Talvez, numa redação futura, encheria o texto de palavrões e gratuidades — os dois erros que todo imitador de Fonseca comete, e eu também cometi, mas graças a deus, não mais.

Melhor assim. Fui entender com o tempo que parte do carinho que você tem por um autor é dele te mostrar as possibilidades de um texto. E a melhor retribuição a isso é encontrar as suas também.

Na tarde daquele mesmo dia 15, Rubem Fonseca teve um infarto fulminante. Matheus me ligou pra lamentar tão logo soube da tragédia. Ficamos com a amarga sensação de que a morte estava estranhamente mais perto. Fiquei me perguntando, num ápice de estranheza, se não era por conta de minha indicação que ele havia morrido.

Verdade seja dita, crescer como escritor nos obrigou a escolher alguns nomes para chamar de pai e seguir de exemplo, até aprendermos a caminhar com as próprias pernas e falar com nossa própria voz. Fonseca foi um nome que Matheus e eu adotamos. E o que nem ele nem eu sabíamos é que o próximo passo de crescer envolve assistir a morte de nossos pais, algo que, bem, não existe orientação concreta pra se encarar.

Tão logo Fonseca se foi, no dia seguinte, Luiz Alfredo Garcia-Roza, o autor que eu recém conhecera e virei uma madrugada me divertindo com uma história tão fantástica, também nos deixou. Nem deu tempo para que eu lhe transferisse a paternidade ou assumisse o posto de Fonseca. Deixou-me, tanto quanto o primeiro, com a impressão de que se foi cedo, de que a morte não estava mais longe, afinal.

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Matheus de Moura
N.E.U.R.A. Magazine

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre