Sobre legados (ou “Porque Alaska era a escolha óbvia para o All Stars 2”)

Francine Oliveira
Nada Errado
Published in
4 min readOct 23, 2016

Precisamos falar sobre legados artísticos — e políticos — de um ponto de vista menos pessoal e para além das nossas preferências.

Alaska Thunderfuck 5000

Eu hesitei bastante em escrever este texto porque há um tempo desisti de debater sobre RuPaul’s Drag Race com fãs incondicionais. Mas eu não deixei de estudar sobre drag queens e não há como negar que o reality show, desde que começou, é uma fonte produtiva de reflexões sobre a arte drag, além de obviamente oferecer uma plataforma internacional para performers norte-americanas que, de outra forma, ficariam restritas a bares e casas noturnas — como de fato ficam todos os demais artistas que não passam pelo programa.

Ultimamente, a maior fonte de controvérsias foi o desempenho de Alaska Thunderfuck e o fato de ter sido “cotada” como vencedora da segunda temporada do All Stars — e, aqui, o uso de “cotada” vem sendo feito num sentido negativo. Em primeiro lugar, sabemos que, para toda temporada, há uma participante cotada para vencer a competição por uma série de fatores que não envolvem apenas seu desempenho durante o programa. As motivações das escolhas de RuPaul não parecem se restringir à competição principalmente porque o apresentador tem um entendimento maior e mais amplo a respeito do quanto drag é algo político — e escolher alguém para lhe representar à frente das demais drag queens durante um ano certamente tem a ver com a postura do performer também fora dos palcos.

Diferentemente do próprio RuPaul, o que parece fazer a cabeça dos fãs é uma performance “fierce” e um look bem elaborado. O entendimento de que uma drag superior é aquela capaz de se parecer mais com uma “mulher fatal” não é novo quando falamos em drag queens, mas está se reforçando a cada nova temporada do programa, enquanto grande parte dos fãs prefere deixar de lado as nuances de uma forma de entretenimento que sempre se pretendeu questionadora e pautada em um humor crítico.

Desde que participou da quinta temporada de RuPaul’s Drag Race, Alaska evoluiu a olhos vistos, tirando o maior proveito possível da fama que alcançou a partir do programa. Como drag queen, ela não é só uma paródia do feminino artificial, mas também das próprias drags que levam a questão do feminino tão a sério que não se dão conta do que essa arte põe em jogo: a construção da feminilidade e os essencialismos internalizados. No princípio de sua carreira, Alaska era mais voltada à tendência “tranimal” (bem mais tosca e de estética nada refinada), mas ela soube adaptar sua personagem a fim de se tornar mais comercial — estratégia também adotada por RuPaul. Nem por isso, ela deixou de seguir uma linha voltada para o estranhamento.

Analisando mais amplamente, foi Alaska quem construiu o maior legado até então — como havia sido o caso de Chad Michaels, vencedor da primeira edição do All Stars. A razão pela qual sempre esteve cotada para vencer é que, entre as competidoras, nenhuma foi capaz de produzir tanto e, ainda mais, brincando com a falsa “essência” do que é ser drag — a própria ideia de que existe uma essência a ser usada como critério para essa manifestação artística mostra uma falta de entendimento sobre a mesma. Como já havia dito em um texto sobre Raja e pioneirismos, determinar critérios fixos para drag queens seria matar a própria arte drag.

É importante lembrar ainda que, em um programa de TV, a atuação é inerente ao jogo, até mesmo quando os competidores não estão claramente performando. O simples fato de haver uma câmera ligada nos condiciona à criação de personagens e de narrativas sobre nós mesmos e no reality show não seria diferente. Uma característica como a autenticidade, nesses casos, precisa ser relativizada justamente porque os posicionamentos que testemunhamos são tomados em função de um jogo. Nós, como fãs, não conhecemos as pessoas por trás das câmeras e nem mesmo sabemos como elas são em seu cotidiano. Nossa relação com aqueles artistas não é pessoal.

Por fim, retomo uma afirmação de Bianca Del Rio que sempre será válida: assistir às temporadas de RuPaul’s Drag Race faz da pessoa uma fã, mas não uma especialista. Para análises e críticas mais profundas, é preciso fazer o “dever de casa drag” e, acima de tudo, aprender a ter certo distanciamento analítico, afinal, sem isso, tudo o que a pessoa tem é sua opinião pessoal.

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Francine Oliveira
Nada Errado

Doutore em Estudos Literários e pesquisadore de Estudos Queer e extrema direita. Tradutore, revisore e escritore.