Crítica — Helter Skelter

Juan Duarte
nanicriticas
Published in
5 min readJun 6, 2018

A sobriedade da decadência.

Ficha técnica:

Título: Helter Skelter

Autor(a): Kyoko Okazaki

Não é editado no Brasil.

Algumas considerações para quem ainda não leu:

Se você olha para as celebridades e a primeira coisa que lhe vem à mente é futilidade, burrice, ou qualquer coisa pejorativa, talvez esta seja a obra que te faça repensar um pouco essa imagem. Nesta história relativamente curta, são exploradas as diversas nuances da vida privada de Ririko, uma celebridade jovem que tem plena consciência de sua própria efemeridade. Trazendo toda a decadência e desespero de uma mulher que faz de tudo para se encaixar nos padrões de perfeição para adiar o máximo possível o seu descarte.

Fim da zona protegida por spoilers.

Coerência com a proposta:

Se por um lado Perfect Blue retrata muito bem a confusão e a loucura do que é ser uma celebridade por meio da utilização de metáforas, Helter Skelter faz isso de forma objetiva e pragmática. A consciência que eu invoco no subtítulo deste post é justamente sobre isso: Ririko sabe que está sendo submetida à um padrão de beleza, que está sendo usada e explorada por sua empresária e que tudo isso está destruindo ela aos poucos. Mas se por um lado ela compreende no que está metida, ela também é fortemente controlada por meio do medo, persuasão e medicamentos. Mesmo que ela saiba o que está sofrendo, o contexto sobrepuja todo e qualquer ímpeto de mudança: Ela sabe que se ela não se submeter, será esquecida e descartada da noite pro dia.

Verossimilhança:

Todos os momentos de cada personagem são respeitados e trabalhados detalhadamente entre suas próprias crises e euforias. É claro que existe um foco muito maior em Ririko, mas cada personagem que entra na história, conta sutilmente em suas próprias palavras como é viver no entorno de Ririko, complementando assim a construção da celebridade em sua vida privada. Um dos elementos que mais complementam essa realidade e a própria construção da Ririko como uma pessoa consciente do seu contexto, são os diversos diálogos internos que ela tem. Todos eles trazendo constatações e pensamentos sobre as situações que vive. Ririko é real porque ela é imperfeita, elemento ressaltado também pelo investigador, que diz que ela tem um dos rostos mais “peculiares” que já viu. É esse paralelo entre perfeição e imperfeição, que tornam todos os personagens tridimensionais, trazendo um espectro completo de sentimentos e reações, mas é claro, sempre acabado na melancolia decadente provocada por todo o contexto deturpado do mundo comercial das celebridades.

Coesão:

Este é um ponto em que infelizmente, assim como tantas outras obras, Helter Skelter peca bastante. A arte é funcional, mas não agrega elementos interessante na narrativa da obra, propondo um traço bem simples e muitas vezes a própria inexistência de desenho, existem momento em que a leitura acaba ficando monótona em sem muitos apelos. Diferentemente de My Lesbian Experience (obra criticada aqui no blog também: https://medium.com/nanicriticas/critica-my-lesbian-experience-with-loneliness-2a23307319e9) essa simplicidade não propõe uma diferenciação dos tons dos momentos nem a composição de uma climática imersiva. Os momentos parecem não casar com o desenhos. A história não acaba por se tornar chata, porque os temas são bem abordados e o roteiro consegue ser interessante por si só. Mesmo que este também tenha certos problemas, já que os inúmeros monólogos e pouquíssimos silêncios acabam deixando a obra muito pouco dinâmica.

Relevância:

As interações de abuso físico e mental, tanto como a persuasão e manipulação que a empresária de Ririko lhe submete é um dos primeiros tons que a obra propõe. É o lucro o objetivo, consequentemente a pessoa que gera lucro não é uma pessoa, mas sim, o objeto do lucro, consequentemente tratar essa pessoa como um objeto é um efeito colateral natural. Esse aspecto trás consigo não só o elemento do mundo das celebridades, mas sim, como as interações no mundo capitalista são sempre permeadas por uma constante artificialização do ser humano para que se torne algo comum este virar apenas algo lucrativo. A medida que a mídia é adicionada na história mais facetas dessas interações são mostradas, onde se aproveitam da imagem privada de alguém para vender suas próprias publicações, resumindo tal pessoa em constatações emblemáticas e polêmicas. A crítica aqui é que a mídia não quer falar sobre pessoas, mas sim, a hipocrisia da mídia que finge uma enorme “surpresa” com o fato de que a aparência de Ririko ser totalmente artificial, uma vez que eles ignoraram as mulheres suicidadas e os próprios padrões de beleza que eles aplaudem e corroboram.

Enquanto isso, na esfera pessoal e íntima de Ririko, mostra-se todo o colapso gradual de uma pessoa que sabe que é descartável, afundando-se cada vez mais em drogas e procedimentos de beleza. Ela despreza as pessoas em sua volta, e não apenas por uma vingança romântica, mas sim pelo fato de ela saber que todos eles estão aplaudindo e sorrindo para a sua própria autodestruição, fingindo que não sabem de nada. A medida que a decadência toma conta dela e os trabalhos diminuem, esse ódio pelas pessoas cresce e não se manifesta mais como uma dissimulação manipulatória, mas sim com ações imprevisíveis e explosivas. Antes, no auge, a consciência de ser descartável era algo com o que ela conseguia lidar, mas à medida que essa consciência se reflete de fato na realidade, ela percebe o quão horrível é ser vista apenas como um objeto, não tendo ninguém com conversar, passear, amar, a não ser milhões de pessoas que a adoram sem mesmo conhecê-la, ou seus “amigos” que só o são por interesse.

Conclusão:

É uma obra muito interessante, objetiva e pragmática em sua proposta e com uma construção excelente de seus personagens bem como temáticas. Carece de um cuidado maior na narrativa, mas mesmo com esse defeito consegue trazer uma mensagem densa que poucas obras conseguem transmitir mesmo com uma leitura dinâmica e de fácil assimilação.

A objetificação feminina é tratada de forma clara e sem clichês românticos, até mesmo as interações amorosas são contrapostas com a indiferença e desprezo de Ririko. É uma obra que vai na contramão da hegemonia e mostra todo o horror de uma sociedade que subjuga, objetifica e estereotipa a mulher.

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