A sensibilidade de Yasunari Kawabata e minha paixão pela literatura japonesa

Felipe Massahiro
Nerd / Articles
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9 min readOct 26, 2015

Escrevi um artigo há algum tempo sobre o storytelling nos games e uma das coisas que fiz referência foi na metodologia de ensino para se criar uma história. Um elemento que é apresentado deve ter relevância para a trama. Se eu apresento uma faca, ela tem um significado, nada é colocado por um acaso. Foi assim que aprendi e é assim que muitos ainda aprendem.

Quer dizer, era assim que eu pensava até meu primeiro contato com a literatura japonesa.

Kyoto de Yasunari Kawabata, publicado no Brasil pela Editora Liberdade, foi a primeira obra do autor, assim como a primeira obra japonesa que li em minha vida e que me impulsionaria à estudar a narrativa do país.

A história de Kawabata é acometida de morte logo cedo quando seu pai faleceu de tuberculose quando não tinha nem dois anos de idade. Sua mãe faleceria logo depois. Sua irmã, adotada por seus tios, morreria na adolescência e ele a veria uma única vez no funeral. Já o avô cego que o adotou, também morreria quando ele ainda era jovem.

Segundo o próprio autor ele havia superado tais mortes, mas ainda assim percebemos, através das obras dele, uma busca incessante pela figura paterna e materna, a procura por amores proibidos — até inalcançáveis.

Especialistas, como mencionado no ensaio complementar “O Século de Kawabata” escrito por Meiko Shimon na obra “A Dançarina de Izu” da editora Liberdade (2008), dizem que há três períodos criativos na vida do autor. A primeira é a fase modernista, o segundo vai de 1934 até o fim da segunda guerra mundial — período marcado pela obra “País das Neves” (Yukiguni) — e a terceira que é no pós guerra, onde escreve muitas obras, dentre elas “Mil Tsurus” (Senbazuru), que rendeu o primeiro prêmio Nobel de literatura do Japão.

“Mil Tsurus” (Senbazuru) — Traduzido por Drik Sada, editora Estação Liberdade (2006)

Kawabata mesclava poesia, prosa e sensibilidade em sua escrita. Abordou temas que envolviam uma beleza poética — do proibido ao impossível — e uma tristeza melancólica.

Através de seu estilo único, o autor tratava temas de sua época que envolveu cada período.

O terceiro período em especial em que o autor via a ocidentalização sobrepondo a tradicional cultura japonesa. Em suas obras, Kawabata não forçava a resistência à entrada da cultura ocidental, muito menos abandonava a cultura japonesa. Pelo contrário, o autor via um universo em que as mudanças são inevitáveis, mas nem por isso as pessoas devem perder sua identidade. “Mil Tsurus,” coloca a tradicional cerimonia do chá, pura e reservada, como, então em tempos pós guerra, um cenário para discutir casamentos.

Torna-se assim a cerimônia do chá, um evento casamenteiro. Parece uma crítica, e em muitas partes o é, mas há algo mais íntimo na construção da história: existe a realidade em que se encontrava Kawabata. O velho não é abandonado, o novo não apaga o velho, mas sim estabelece-se uma harmonia cultural.

Os tempos mudam, Kawabata sabia, ele então estabelece uma espécie de ponte cultural do antigo para o moderno, através de muitas de suas obras.

Kyoto e meu primeiro contato com o universo da literatura japonesa

Kyoto — tradução Meiko Shimon, editora Estação Liberdade (2006)

Kyoto narra a história de Chieko, filha adotiva de um proeminente comerciante de quimonos que sofre um pouco com a ocidentalização das vestimentas, que descobre a existência de uma irmã gêmea, Naeko, criada na periferia da cidade e que trabalha no bosque de cedros.

Além do autor revelar uma Kyoto repleta de beleza, ele ainda trabalha com uma desenvoltura sutil e sensual o despertar da sexualidade, o amor e o período em que se passa a história, com a moda de roupas ocidentais, a loja de quimonos sofre um pouco. Ainda assim, de um lado, temos Chieko, doce e insegura, enquanto do outro Naeko, de personalidade forte, mas gentil, que vê na irmã seu sonho realizado, tentando-a proteger, apesar da incessante curiosidade e desejo de reconciliação da irmã.

Vê-se o comportamento e as diferenças das castas sociais e a transformação cultural pela qual o Japão passava.

A história, narrada em um jeito simples e direto, sem complexidade e com uma desenvoltura tão suave, fez-me com que me apaixonasse pelas obras de Kawabata. Também foi o “ponta pé” inicial pela minha paixão pela literatura japonesa no geral. Hoje a minha biblioteca conta mais com livros de autores japoneses.

O storytelling dos sentimentos

No começo do artigo discuti uma grande diferença que encontrei no estudo de roteiros e storytelling em geral. Kawabata, e muitos outros autores, mudaram meu modo de pensar a respeito.

Um dos grandes diferenciais de Kawabata está em sua estrutura narrativa. Não há uma preocupação com repetições como o temos em nossa literatura. Há muitos “eu,” “ele” e “ela” que se repetem constantemente. Os cenários e as situações colocadas pelo autor não possuem relevância na trama, muito pelo contrário, muito do que o autor escreve é intimista e trivial. É o fluxo de consciência poético e reflexivo do seu personagem.

Toda a ideia é compreender o íntimo do personagem. A forma de pensar e seu cotidiano. Para quem gosta de anime, deve estar familiarizado com o gênero slice of life ou “fatia da vida”. O fragmento da vida é uma constante nas obras de Kawabata, já que seu processo criativo é simplesmente ir escrevendo, sem saber para onde vai sua história.

O livro mais recente que li, “O som da Montanha” (Yama no Oto) narra a história de Shingo, que vive em um cenário rotineiro dentro de casa. Sua filha Fusako, com duas filhas, se divorcia e vem morar com ele e a esposa, juntamente com sua nora Kikuko e o marido — seu filho — Shuichi.

“O Som da Montanha” — Tradução Meiko Shimon, editora Estação Liberdade (2009)

A bela e gentil Kikuko, com problemas com seu marido que possui uma amante vive em harmonia com Shingo, que a aprecia mais que a própria filha. Já Shingo, mergulhado em reflexões de sua idade avançada, ouve o som da montanha que interpreta como um presságio de sua morte. Entre sonhos lascivos e proibidos, uma família com diversos problemas que ele tenta compreender, Kawabata apresenta uma literatura como todas as suas outras, em que os cenários são repletos de sentimentos, de beleza, feiuras e melancolias.

Ler um livro do Kawabata é como apreciar um quadro. Kawabata “pinta” com as palavras cenários e situações que inspiram sentimento e poesia. Não é para menos que três de suas obras “O Som da Montanha,” “O País das Neves” e “Mil Tsurus” sejam considerados “a trilogia dos sentimentos humanos”.

A preocupação do autor, assim como muitas outras obras da literatura japonesa, está em contar uma história transmitindo sentimentos, emoções e poesia. Longe de cenários complexos, estruturas e técnicas frívolas, muito da literatura do Japão possui uma ênfase de expressão.

Uma vez, assistindo ao filme “Brother, a mafia japonesa Yakuza em Los Angeles” de Takeshi Kitano, um professor de roteiros perguntou-se o motivo de uma cena, em que os personagens ficam ao longo da praia observando as ondas. Acredito que não há um motivo para a trama, mas há um motivo mais humano, mais íntimo, em cenas como essa — seja na literatura, seja no cinema, seja nos animes ou qual for a mídia — é o sentimento, a sensibilidade do momento que importa. É transmitir uma emoção para quem lê, assiste ou ouve.

A beleza da feiura e a feiura da beleza

Possivelmente devido à seu passado, o autor considerava a morte como a quintessencia do belo. Talvez um dos motivos por ter cometido suicídio. Também é possível notar essa busca pelo belo e o paralelo com certa tristeza, feiura e o sentimento de impermanência em suas histórias.

Kawabata não teme em mostrar esses lados e consegue fazer o belo, o grotesco e o improvável, elementos de uma beleza exótica e sensível.

O velho com dividido em seus pensamentos eróticos e a decrepitude da idade, como em “O som da montanha” e “A casa das belas adormecidas,” são exemplos do uso desses elementos que, ainda que pareçam vulgares, nas mãos do autor, tornam-se poéticos e belos.

“A casa das belas adormecidas” conta a história de Eguchi que passa a frequentar um bordel onde as jovens moças, sob efeito de um forte entorpecente, dormem a mercê desses homens velhos que são proibidos de maculá-las.

Tal obra é tão famosa que inspirou autores como Gabriel Garcia Márquez e o roteirista David Henry Hwang. Acredito que o filme “Sleeping Beauty” (2011) da diretora Julia Leigh, que contou com a atuação de Emily Browning também teve uma forte influência de Kawabata.

As obras de Yasunari Kawabata

Além de suas temáticas humanas e de uma narrativa que preza pelo sentimento, reflexão e poesia. Os livros de Kawabata não possuem começo meio e fim, muitos deles são anacrônicos e os capítulos possuem sentido próprio, mas, ao fim, contam um fragmento na vida de seus personagens, diversos momentos de suas existências no mundo comum deles.

Contudo, é necessário um pouco de paciência para ler as obras. A poética existente em muitas de suas histórias, as situações inusitadas e muito distantes da nossa cultura ocidental (distantes não apenas geograficamente como também cronologicamente) podem parecer exagerados e até hilárias, onde deveriam ser trágicas e tristes.

É preciso ter uma mente aberta e livre de preconceitos, assim como o próprio autor que escrevia suas histórias através da vivência de sua época. O leitor deve encarar a obra com uma visão ampla, como se observasse um quadro ou como se lê-se poesias, pois no fundo são esses os cenários que Kawabata pinta com suas palavras, repletos de sentimentos, de beleza e de algo inalcançável pelo qual todos nós procuramos ao longo de nossas vidas.

No Brasil existem diversas obras de Yasunari Kawabata traduzidos. A maioria pela editora Estação Liberdade, dentre os quais eu li: “Kyoto”, “O som da montanha”, “A dançarina de Izu”, “Mil tsurus”, “A casa das belas adormecidas”, “Contos da palma da mão”, “O lago” e o “País das neves”.

A editora Globo também traduziu o livro “Beleza e tristeza”.

Há ainda os livros “A gangue escarlate de Asakusa” e “O mestre de Go” da Estação Liberdade. Não os li ainda.

Para quem quer ingressar no universo de Kawabata, ainda que eu tenha começado por “Kyoto” eu recomendo “A dançarina de Izu,” pois além de ser uma das primeiras obras do autor, também conta com um Ensaio de Meiko Shimon. Ela é talvez a única especialista no autor aqui no Brasil, e nesse adendo que é praticamente metade do livro, ela faz um amplo estudo sobre o autor, de sua vida à sua criatividade e estilo.

É um excelente livro para iniciar e estudar Yasunari Kawabata.

Além dele “Contos da palma da mão” é algo único e inusitado no ocidente. São pequenos contos que variam de algumas linhas, para uma página no máximo. Tais contos exponham a maestria em transmitir e beleza, poesia e sentimento do autor.

A trilogia dos sentimentos humanos: “País das neves,” “Mil tsurus” e “O som da montanha” são excelente livros também, os três também são talvez os mais importantes do autor, contudo, também são bons, mas são mais “densos.” Admito que entre todas as obras que li, “A dançarina de Izu” e “Kyoto” possuem uma certa leveza e um maior senso de direção. O livro possui um começo, um meio e um fim mais definidos, enquanto nessas três obras há um uso maior do fluxo de consciência do autor e um maior anacronismo em sua narrativa.

“A casa das belas adormecidas,” já é um titulo bem diferente do autor. Há um erotismo mais explícito e um uso mais impactante na dualidade da velhice e do amor proibido.

No fim, se seguir minha sugestão e ler alguns dos livros e gostar, tenho certeza que logo estará lendo todos os livros de Kawabata.

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Felipe Massahiro
Nerd / Articles

Jogador compulsivo, escritor obcecado, amante perturbado da literatura e jornalista de vez em quando.