A caixinha de Natal de 100 bilhões — Entenda o impacto do #PLdasTeles

Victor Veloso
nets_USP
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8 min readDec 22, 2016

Os últimos dias foram marcados por diversas manchetes anunciando o “presente de natal” que o governo Temer daria para as empresas de telecomunicações. O Projeto de Lei 79/2016 (originalmente PL3453/15 e popularmente conhecido como PL das Teles) pretende alterar a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), alterando os contratos de concessão para autorização. Isso pode significar um repasse de mais de 108 bilhões de bens públicos para o controle privado das teles. Além dessa perda ser um absurdo dentro de um contexto de austeridade promovido pela gestão Temer, a aprovação do PL coloca em risco o futuro da Internet no Brasil, possivelmente aumentando o preço e piorando a qualidade do serviço, que ocupa o nono lugar entre os piores do mundo no quesito conexão.

Mas pera, qual a diferença entre concessão e autorização? Lei Geral de Telecomunicações? Porque isso alteraria a qualidade do serviço e aumento do preço? E qual a justificativa que esse projeto apresenta? Se a alteração é para telefonia fixa, por que ela afeta a Internet? As mesmas notícias que vêm informando sobre a medida acabam tramitando muitas vezes com estes termos técnicos, que acabam não transmitindo para usuário comum o real impacto que essa mudança pode trazer a longo prazo. Esse texto foi feito justamente pra traduzir e demonstrar esse impacto. E pra entender melhor, vamos por partes então.

O que é Lei Geral de Telecomunicações e o que ela prevê?

A Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/97, conhecida também como LGT) foi promulgada no final da década de 90 com o intuito de regular a franca expansão do mercado das teles, fruto de um processo de liberalização econômica do período que acarretou na venda de empresas de capital misto (estatal e privado) como a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel), juntamente com a Telebrás e suas 27 subsidiárias estaduais (lembra do “Telesp informa, esse número de telefone não existe”?).

Todas essas empresas conjuntas formavam o Sistema Telebrás, criado em 1972 para ordenar e promover a expansão das telecomunicações no Brasil de forma regulada, fazendo com que essa expansão não apenas atendesse os interesses econômicos que as então quase 900 companhias de telefone no Brasil possuíam. O desenvolvimento dessas empresas geralmente se guiava de forma desordenada e focando apenas nos grandes centros urbanos. O Sistema Telebrás cresceu com uma infraestrutura unificada, que permitiu que a chegada do serviço de telefonia fixa além das capitais naquela época.

Dentro do contexto de privatização das estatais iniciado na gestão Collor e continuado durante toda a década de 90, ocorre uma divisão da Telebrás em controladoras regionais, que ofereceriam os contratos de concessão para as empresas que estivessem interessadas em operar naquele estado. Nesse momento, acabariam existindo duas companhias pra cada Estado: uma operadora e uma concessionária (ou seja, existia a Telesp que oferecia os serviços e a Telesp que oferecia as concessões). Com o passar do tempo, entretanto, as concessionários foram sendo incorporadas ao capital privado, passando ao ponto de operar com o mesmo CNPJ em alguns casos. Com o intuito de regular o setor, foi promulgada a LGT, que redefiniu as obrigações dos serviços e criou um novo modelo de mercado competitivo, o qual seria fiscalizado e regulado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), também criada por meio da lei.

Mas que modelo e quais obrigações são essas criadas pela LGT?

A primeira medida é a concessão em regime público da malha de infraestrutura de Telecom do Brasil (aquela da Telebrás, lembra?). Um regime de concessão público é uma espécie de contrato, no qual o governo autoriza as prestadoras de serviço (como Vivo, Oi, Tim e Claro) utilizem toda a infraestrutura das telecoms (pertencente ao governo), podendo cobrar os usuários pelos serviços prestados.

Entretanto, com esse modelo, as concessionárias têm obrigações de compartilhamento das redes com pequenas e médias empresas, além do valor da comercialização da capacidade dessas redes ser regulado por uma tarifa fixada pela ANATEL. Além disso, está previsto a obrigação da expansão e universalização dos serviços, podendo assim sobrepor os interesses comerciais das operadoras (Que operadora vai querer gastar recursos para levar seu serviço para, por exemplo, uma cidade de 10 mil habitantes no meio do Centro-Oeste?).

Dessa forma, a LGT garante que a infraestrutura se expanda cada vez mais pelo país e que seja levada por um preço justo para o usuários, tornando esse processo teoricamente imune aos interesses comerciais das operadoras. Se a Anatel faz isso bem ou não, isso já é outra discussão, mas a qual eu pretendo abordar em outro texto no futuro.

Recapitulando até aqui: O Governo construiu a malha de telecom até a década de 90 (Sistema Telebrás), oferecendo seus serviços por meio da Telebrás e suas filiais estaduais. O Brasil entra em um período de desestatização dos serviços nos anos 90, dividindo a Telebrás em concessionárias e operadoras locais, as quais aos poucos foram incorporadas ao capital privado. Com o intuito de regular esse processo, é promulgada a Lei Geral de Telecomunicações, que garante o modelo de concessão em regime público. Ou seja, a malha é do Governo, que permite as empresas a utilizarem a malha e lucrar com isso, tendo como contrapartida a universalização dos serviços e a garantia de preço justo, regulado pela Anatel. Tudo certo até aqui? Então vamos para polêmica.

O que propõe o PL 3453/15 (atualmente 79/2016) ?

O Projeto de Lei 3453/15 propõe basicamente que o regime público de concessão seja alterado para um regime privado de autorização. Ok, e qual a diferença entre essas duas modalidades?

Na concessão em regime público, o governo cede a infraestrutura por meio de um contrato que possuí contrapartidas. No caso da LGT, as contrapartidas são os investimentos que as operadoras precisam fazer para a universalização do serviço, contando que oferecerão o serviço por um preço justo.

No regime de autorização, não existe contrapartida. O governo, de forma unilateral, simplesmente autoriza que a malha seja utilizada sem que as empresas tenham alguma contrapartida. Dessa forma, praticamente se elimina a possibilidade de algum tipo de controle estatal em relação a um serviço essencial para população.

Além disso, com alteração do regime público de concessão para o regime privado de autorização, se abre uma justificativa para as operadoras aplicarem os chamados bens reversíveis. Tudo que foi investido na malha pelas empresas (cabos, prédios, serviços de manutenção, postes, etc) seria passado para elas. Um bem público, avaliado em R$ 108 bilhões (conforme Acórdão 3311/2015 TCU), passado diretamente para o controle da iniciativa privada, sem nenhuma contrapartida. Uma bela caixinha de Natal, não?

E qual a justificativa para que ocorra essa alteração?

A justificativa do autor do projeto, Deputado Daniel Vilela (PMDB/GO), é que o atual modelo de concessão da telefonia fixa representa um empecilho para o investimento em infraestrutura.

Deputa Daniel Vilela (PMDB/GO)

O prazo final do contrato de concessão das operadoras vai até 2025, voltando assim a malha ao poder da União. Como não são renováveis, o deputado crê que “os incentivos à ampliação e modernização da rede por parte das concessionárias serão reduzidos” e que isso acarretaria em um serviço pior, já que não existe interesse econômico em investir em algo que será entregue ao Estado em curto prazo. Flexibilizando as regras, as empresas investem mais no serviço de Internet, já que não precisariam realizar as obrigações impostas no regime de concessão.

Até que parece justo isso, já que não vejo mais ninguém utilizando telefonia fixa. Por que ser contra essa medida então?

Primeiro, a malha de infraestrutura da telefonia fixa também é utilizada em quase 50% para Internet, fato que o Deputado parece não dar importância. Com o regime público de concessão, se garante que possa haver uma estrutura que faça com que a Internet possa chegar a locais que não seriam interessantes economicamente para as operadoras. É importante lembrar que os serviços de Internet não estão sob regime de concessão pública, sendo esse um dos motivos que faz com que não exista Infraestrutura de banda larga em todas as regiões do país.

Sem a obrigação da universalização do serviço de telefonia fixa, acabam-se por vez as esperanças de que se possam conectar os mais de 70 milhões de brasileiros que ainda não possuem acesso a Internet.

Segundo, através dos bens reversíveis, uma estrutura estratégica e de interesse coletivo importantíssima para o país estaria na mão da iniciativa privada. Sem contar o valor, avaliado pelo Tribunal de Contas da União em mais de 108 bilhões de reais.

Por fim, sem estar sob o regime de concessão público, não existe regulação sobre o preço que deve ser cobrado pelos serviços oferecidos. Somando a falta de investimento com a falta de regulação sobre o preço, o cenário futuro é de uma Internet mais lenta, mais cara e continuando inacessível para mais de 75 milhões de brasileiros.

A política de austeridade do governo Temer, que promoveu o congelamento de investimentos em setores como Saúde e Educação, parece se fazer diferente no caso das telecomunicações. O único objetivo do PL 3453 é aliviar a crise econômica das operadoras, problema que foi gerado por incapacidade de gestão interna mais do que fruto da crise econômica global. Deve-se lembrar que no meio do ano, a Oi abriu pedido de falência avaliado em mais de 60 milhões de reais.

Ainda existem muitos pormenores que devem ser apontados dentro desse projeto. Entretanto, o intuito desse texto foi tentar dar um panorama geral da situação e pontuar o porquê desse PL ser tão prejudicial para o futuro da Internet no Brasil. Deixo aqui indicado outros textos da Coalizão Direitos na Rede para quem desejar se informar mais sobre o assunto.

Perguntas e Respostas sobre o PL

Os riscos do PL para o futuro da Internet no Brasil

A reforma oculta das telecomunicações: O que está em jogo?

5 motivos para ser contra a #PLdasTeles

Hoje, sexta-feira (23), o projeto precisa apenas da sanção de Michel Temer para que entre em vigor. Ainda que esteja sendo divulgado por diversas entidades sociais, é necessário que a sociedade civil esteja cada vez mais ciente dos danos que a PL das Teles trará no futuro. Apenas dessa forma será possível combater essa medida retrógrada para o acesso, qualidade e preço da Internet no Brasil.

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Victor Veloso
nets_USP

Pesquisador em tecnologia, ciências sociais e outras ficções.