As dores de Frida

Aline Cardoso
NeuroBreak
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8 min readSep 27, 2020

Com suas pinturas capazes de chocar qualquer expectador, Frida Kahlo foi capaz de representar suas dores através da arte. É praticamente impossível separar suas cicatrizes — físicas e mentais — de seu conteúdo artístico.

Mas antes de começar a falar sobre como a dor influenciou nas obras de Frida Kahlo, é preciso entender um pouco sobre a neurobiologia da dor.

Afinal, o que é dor?

A dor pode ser descrita como uma experiência desagradável que está relacionada a alguma lesão real ou potencial. Porém, muitas pessoas dizem sentir dor sem ter sofrido lesão. Além disso, essa experiência pode ser sensorial¹ e/ou afetiva².

A dor possui uma função protetora!

A dor é responsável por nos alertar sobre possíveis lesões que necessitam de tratamento. Por exemplo, quando encostamos as mãos em um forno quente sentimos dor. Quase imediatamente puxamos as mãos, evitando uma queimadura perigosa.

A percepção da dor é subjetiva e pode ser influenciada por diversos fatores.

Isso significa que o mesmo estímulo doloroso pode gerar respostas distintas em pessoas diferentes. E até respostas diferentes na mesma pessoa, mas em momentos ou ambientes diferentes. Por exemplo, é bem comum ver atletas que mesmo com alguma lesão grave continuam jogando e só percebem a dor depois do jogo terminar. E é bem provável que você conheça alguém que diz sentir mais dor nos joelhos ou nas costas quando o tempo está frio do que quando está calor.

Portanto, a dor não é uma experiência que se manifesta de maneira única e invariável. Na verdade, é uma soma de diferentes sinais processados pelo cérebro e que podem gerar diferentes respostas.

A dor está presente em boa parte das doenças.

Ela pode se manifestar de forma direta (sendo sintoma da doença) quanto de forma indireta (fazendo parte do tratamento). Existe uma linha tênue entre a transição de “estar saudável” e “estar doente”, e essas mudanças envolvem fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais.

¹Componente sensorial — que nos permite distinguir o local da dor, por quanto tempo está doendo e qual a intensidade da dor.

²Componente emocional/afetivo — que está relacionado aos sentimentos desagradáveis que surgem após uma experiência dolorosa.

Dor aguda e dor crônica

A maioria das pessoas experimenta sintomas de dor temporariamente. Por exemplo, quando nos machucamos acontece a ativação de nociceptores. Os nociceptores são neurônios sensoriais, presentes em qualquer área do corpo humano, sendo responsáveis por enviar o sinal do local da lesão para o sistema nervoso central. São os nociceptores que geram a percepção da dor! Essa dor é chamada de dor aguda, pois dura um tempo limitado e é responsável por nos alertar sobre a lesão.

Algumas pessoas podem sofrer dores crônicas — que têm duração maior que três meses. Às vezes, as dores crônicas são tão intensas que podem interferir no dia a dia da pessoa. Os componentes afetivos têm uma grande influência na percepção desse tipo de dor, pois controlam a atenção ou expectativa da dor, e também como lidamos com ela. Além disso,

o adoecimento físico, em particular a dor crônica, pode levar a um estado de dor emocional.

Já se sabe, por exemplo, que existe uma associação entre dor crônica e transtornos de humor (como depressão) e ansiedade. Mas ainda não se sabe como e por que essa relação acontece.

A dor física

As dores de Frida tiveram início quando a pintora era muito jovem…

A pintora nasceu com espinha bífita, uma má formação da coluna vertebral que acontece quando o bebê está ainda no útero. Já em sua infância Frida foi diagnosticada com poliomielite. A doença fez com que a pintora ficasse com uma perna mais fina que a outra, levando à diminuição da circulação do sangue e dores crônicas.

Mi nacimiento (Meu nascimento) — 1932

Aos 18 anos, Frida sofreu um acidente em que o ônibus que estava bateu com um bonde. No acidente, um corrimão de ferro perfurou sua pélvis, além do deslocamento de três de suas vértebras. Após o acidente, Frida teve que passar por diversas cirurgias para reparação da coluna, além de usar um espartilho feito de gesso que a deixou de cama por meses. A soma de todos esses acontecimentos fizeram com que Frida sofresse de graves dores crônicas por toda vida.

“Frida era vermelho e dourado. É mentira que a gente se dá conta da dor no momento da tragédia […]Minha primeira reação foi procurar o bilboquê colorido que havia comprado naquele dia e caiu do meu colo. Não percebi que um pedaço de ‘corrimão’ tinha transpassado meu corpo como a espada de um toureiro atravessa um touro. […]Perdi minha virgindade neste acidente. […]E meu corpo se partiu em várias Fridas. […]Assombroso! No meio da tragédia, Alejandro, ao me procurar, se deparou com um quadro que nenhum pintor jamais sonhou. Frida-nua, toda ensanguentada e coberta de ouro. Alguém no ônibus levava um pacote de ouro em pó e esse se foi pelos ares […]Diante daquela maravilha as pessoas exclamavam: a bailarina! Olhem! A bailarina!”(KAHLO, 1995)!

Alguns autores, na tentativa de explicar e analisar suas obras, acreditam que Kahlo pode ter sofrido de fibromialgia pós-traumática. A doença poderia ter sido resultado de todas as experiências traumáticas sofridas por ela. Por exemplo, dentre as características da fibromialgia traumática estão a dor crônica generalizada, a fadiga persistente e os distúrbios do sono. Sintomas presentes na vida de Kahlo.

Outro sintoma é a presença de pontos dolorosos que se espalham por todo o corpo. Este sintoma parece ter sido representado pela pintora em sua obra “A Coluna Quebrada”, na qual Frida representa a si mesma tendo pregos fincados por todo seu corpo.

La columna rota (A coluna quebrada) — 1944

A dor emocional

Assim como suas dores físicas, as dores emocionais de Frida começaram ainda criança. Após ser diagnosticada com poliomielite, a pequenina Frida se viu obrigada a ficar isolada, longe de seus amigos, pois precisou adiar o início de seus estudos.

Além das dores emocionais associadas a suas dores crônicas, a artista carregava consigo a dor de um relacionamento conturbado com seu marido Diego Rivera. Após anos de casados, essa dor se transformou na dor da separação. Frida e Diego se divorciaram! Sua dor emocional foi expressada em arte. Na obra “As Duas Fridas”, a artista usou sua pintura para digerir a enorme turbulência emocional que passava.

A pintora representou seus dois “eus”. O retrato de sua dor emocional é pintado como uma Frida usando vestes europeias, com peito dilacerado e coração partido. Já a segunda Frida é pintada com vestes mexicanas e coração inteiro, representando sua força e suas origens.

Las Dos Fridas — 1939

Já em “Hospital Henry Ford”, a pintora representou sua dor emocional causada pela perda. Dor que carregava devido sua impossibilidade de ter filhos por conta da fratura pélvica sofrida no acidente de bonde.

Henry Ford Hospital (La cama volando) (A cama voando) — 1932

Assim como diversas de suas obras, “As Duas Fridas” e “Hospital Henry Ford”, são exemplos da presença da dor emocional na vida e arte de Frida, e de que

o sofrimento emocional é real e vai muito além do que parece…

A dor emocional tem sido alvo de estudo de diversos pesquisadores das áreas de neurociências e psicologia. Tais profissionais buscam entender por que a falta de conexão social, assim como a separação ou a perda de alguém amado, também podem ser dolorosas. Alguns trabalhos, já mostraram que essas dores são capazes de levar a ativação dos mesmos componentes neurais — sensoriais e afetivos — que estão associados a dor física. Ou seja,

a dor emocional também pode ser sentida!

Por isso, assim como Frida, também usamos termos como “peito dilacerado” e “coração partido” para descrever fortes dores emocionais.

Uma possível explicação é que o sistema neural envolvido com o processamento da dor física se manteve ao longo da evolução. E esse sistema teria emprestado o seu sinal de dor para indicar também quando as relações sociais estão ameaçadas. Ou seja, sentir dor por conta de separação ou perda pode ser uma forma de evitá-las e assim promover a sobrevivência da espécie.

Nota sobre a romantização da dor

Não é de hoje que a humanidade carrega consigo a ideia de que “A dor é necessária para o crescimento”. Frases como “sentir dor têm seus benefícios”, ou, a melhor de todas, “sem dor, sem ganho”, só servem pra nos fazer acreditar que a dor é sempre necessária. Entretanto, é preciso entender que, ao contrário do que muitos pensam…

não existe benefício na romantização da dor.

Mas não é só em frases de camiseta de academia que vemos essa lógica. Na arte, de forma geral, o artista é constantemente associado a um ser sofredor. Cheio de angústia, raiva e tristeza. Alguém que só consegue ser criativo e produtivo se estiver carregado de sentimentos negativos.

Mas na verdade, a lógica de que “não existe arte sem dor” e que “ é na dor e no sofrimento que o artista encontra a criatividade” é apenas um mito.

É possível sim ser criativo sem carregar toda a carga, física e emocional, de ter passado por experiências dolorosas.

Mas veja bem, é possível usar da arte como ferramenta para tentar explicar e externalizar tudo aquilo que te aflige. Além disso, muitas vezes a arte ajuda a minimizar o estigma e a vergonha da dor. Mas é preciso lembrar que sofrer de dores crônicas têm um impacto real no dia a dia das pessoas. E isso pode resultar em um ciclo de angústia e sofrimento. Em especial,

não existe benefício na romantização da “dor do artista”.

Referências

Russo, C. M., & Brose, W. G. (1998). Chronic pain. Annual review of medicine, 49(1), 123–133.

Crofford, L. J. (2015). Chronic pain: where the body meets the brain. Transactions of the American Clinical and Climatological Association, 126, 167.

Siqueira-Batista, R., Mendes, P. D., Fonseca, J. D. O., & Maciel, M. D. S. (2014). Arte e dor em Frida Kahlo. Revista Dor, 15(2), 139–144.

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Aline Cardoso
NeuroBreak

Estudando o comportamento humano e tentando entender o meu; (ela/dela); Doutoranda em Fisiologia — Neurociência (UFRJ); Brasil