O exercício da reescrita criativa

Ou: o que você pode aprender copiando seus textos favoritos

Tales Gubes
Ninho de Escritores
5 min readMay 4, 2018

--

Como escritor e treinador de escritores, gosto de roubar exercícios e práticas de outras artes. Um dos meus exercícios favoritos é a escrita de observação, um modo simples de experimentar a descrição daquilo que somos capazes de perceber. Outro exercício que gosto bastante é o desafio diário, copiado dos desafios para desenhistas e fotógrafos no Instagram.

Uma das coisas que mais me incomodam na escrita é que, diferente de outras artes, nós escritores aprendemos pouco se simplesmente copiamos um texto do qual gostamos. Por exemplo, esse trecho de O Peru de Natal, de Mário de Andrade:

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos demancha-prazeres.

Que parágrafo! Que potência! Que pouca coisa eu aprendi simplesmente copiando palavra por palavra.

É pouco desafiador e, portanto, pouco engajante.

É diferente do que aconteceu quando comecei a copiar desenhos a olho nu.

Eu que fiz esse desenho e ele demonstra o ápice da minha habilidade com lápis (até hoje).

Copiar um desenho já é desenhar.

Copiar um texto ainda não é bem escrever.

No desenho, é minha habilidade de desenhar que está sendo posta à prova quando tracejo no papel. Na escrita, é meramente minha capacidade de reconhecer e escrever letras. Ou digitar, no caso do computador. Se consigo desenhar igual à imagem que copiei, desenho bem. Se consigo digitar igual ao texto que li, no máximo isso significa que estou de bem com o alfabeto.

Na música é parecido: o domínio do instrumento é parte fundamental para a reprodução e invenção de sons. Copiar uma música do Chopin diz da minha habilidade como músico muito mais do que copiar aquele parágrafo do Mário de Andrade jamais será capaz de dizer sobre a minha habilidade como escritor.

Isso acontece porque a escrita não está na escrita.

A escrita está na justaposição de palavras, na escolha de cada uma delas, na decisão ponderada de trocar umas por outras, na deliberada exclusão de todas as milhares de palavras possíveis excluídas sempre que uma palavra específica ganha o seu lugar.

Então não dá pra aprender com bons textos?

Ah, dá sim.

O exercício de reescrita criativa

Vem comigo de volta ao texto do Mário (já estamos íntimos, viu?):

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar.

Há várias formas de aprender com textos que nos marcaram. O básico é começar a ler como escritor. Para além disso, podemos explorar pelo menos dois exercícios de reescrita criativa.

Reescrita criativa: mesma estrutura, palavras diferentes

A regra para esse exercício é simples: vamos reescrever o trecho destacado mantendo a estrutura, mas sem preocupação em manter o significado. É um exercício para entender como as diferentes palavras se conectam. Para manter a estrutura, basta preservar a classe gramatical de cada palavra na frase.

Temos o seguinte:

Artigo pronome numeral substantivo preposição substantivo (vírgula) advérbio preposição artigo substantivo preposição pronome substantivo verbo numeral substantivo advérbio (vírgula) verbo preposição substantivo adjetivo preposição artigo substantivo adjetivo.

Sete substantivos, cinco preposições, apenas dois verbos. O que será que consigo fazer com isso?

A minha sexta tentativa de escrita, antes do término deste artigo realizado sete minutos atrás, serviu como base fundamental para a produção textual.

Ficou bom? Não ficou, mas serve de exemplo. O que aprendi reescrevendo esse trecho? Consultando o dicionário, lembrei que numeral é uma classe gramatical (e que primeiro ou sexta são numerais e não adjetivos). Observei também que essa estrutura me incomoda, o verbo no particípio (acontecida, realizado) me soa antiquado. Inadvertidamente, criei uma rima (fundamental, textual) que pouco agrega ao ritmo do texto — mas por causa disso estou observando o ritmo do texto.

Esse exercício serve pouco à criação de bons textos, mas ajuda a frear a leitura voraz ao nos dar algo para fazer com o texto. Quando escolhemos textos bem escritos, é também uma baita lição de gramática.

Reescrita criativa: mesmo significado, outro texto

Digamos agora que eu decida reescrever esse trecho do Mário de Andrade. Ou, que o valha, o texto inteiro. A proposta aqui é manter os sentidos, mas adaptá-los para o meu vocabulário, as minhas escolhas de palavras, talvez até mesmo o meu contexto. Em vez de peru de natal, pode ser um primeiro carro. Em vez de pai modorrento, talvez um marido, namorado ou filha. Com isso, começamos a brincar com as possibilidades de recriar trabalhos que já funcionaram e temos uma base para a comparação — algo que muitas vezes falta na hora de avaliar trabalhos originais.

No caso da frase com a qual estou brincando,

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar.

posso reescrevê-la de várias formas. A primeira que me vêm à cabeça diz sobre uma redução de palavras:

Nosso primeiro natal em família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar.

Gostei, achei mesmo que aquele primeiro artigo estava sobrando e acho que o em informa mais que o de sobre a composição da festa familiar. Dá pra brincar mais:

Nosso primeiro natal em família, cinco meses após a morte de meu pai, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar.

Ou

cinco meses depois que meu pai morreu

Ou

depois de arrastados cinco meses desde a morte de meu pai

Ou o que eu quiser.

Posso, inclusive, mudar tudo.

Precisou meu pai morrer para, cinco meses depois, minha família ganhar algum vislumbre de felicidade.

Essa frase já é bem diferente da original, mas aponta para a mesma direção que o texto escrito pelo Mário de Andrade. Além disso, é um estilo mais próximo do meu, então estou me apropriando dela.

E assim, brincando com o texto dos outros, estou explorando possibilidades e ampliando meu próprio repertório. Escrevendo este texto de hoje, cresci como escritor.

O que você acha de reescrever seu texto favorito (ou um trechinho dele)?

--

--

Tales Gubes
Ninho de Escritores

Um olhar não-violento para uma vida mais livre, honesta e conectada. Criador do Ninho de Escritores, da Oficina de Carinho e do Jogo pra Vida.